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Capítulo III – O papel do DPS e da educação para a cidadania numa sociedade de tensões,

3.5. Promover o desenvolvimento pessoal e social no contexto da educação escolar

3.5.4. O social

A sustentabilidade deste desenvolvimento integral pressupõe, para além da dimensão pessoal, o desenvolvimento da dimensão social de cada pessoa. Constatando que a humanidade de cada ser é uma construção e um processo que ultrapassa os limites da individualização, importa considerar a amplitude da dimensão social consubstanciada na aquisição de saberes e competências que possibilitem a compreensão do próprio desenvolvimento, pela via do “ser- em-relação” e do impacto da alteridade diversa. Neste particular, assumo com Isabel Menezes que

A ação humana e o desenvolvimento psicológico são, inevitavelmente ação e desenvolvimento em contexto. Assim, os processos de construção de significado e de realização de projetos de ação só adquirem sentido no contexto em que decorrem, sendo, portanto, indissociáveis das características espácio-temporais, físicas, relacionais, organizacionais, institucionais, ideológicas e políticas dos ecossistemas de vida (…). Reconhece-se, consequentemente, a existência de estruturas transpessoais que determinam, na dupla medida em que proporcionam e constrangem, oportunidades de desenvolvimento e ação. Mais, assume-se que o desenvolvimento e ação não são apenas individuais, mas que os grupos sociais, instituições e comunidades são também autores no processo de produção de significados e de implementação de projetos de ação (Menezes, 1998: 19-20).

A conjugação de todos estes fatores – ação humana, contextos, e estruturas transpessoais – sublinhados por Isabel Menezes, tornam-se determinantes na construção da própria identidade, e que tem em EriK Erikson (1968) expressão pioneira no estudo do desenvolvimento humano, através da teoria do desenvolvimento da identidade.

Para este autor, o desenvolvimento ocorre através de oito estágios e resulta da interação da pessoa com o meio em que vive. Assim, o desenvolvimento coaduna-se à capacidade de resposta gradativa aos desafios, cada vez mais complexos que a sociedade lhe oferece. Estes desafios originam crises que necessitam de ser superadas e, nessa medida, irão influenciar a capacidade de resolução dos conflitos, bem como a formação da identidade.

Quadro III: Estádios do desenvolvimento psicossocial segundo Erikson (1968)

Idade Crises bipolares

0-24 Meses Confiança Desconfiança

2-3 Anos Autonomia Vergonha

4-6 Anos Iniciativa Culpa

6-12 Anos Mestria Inferioridade

13-18 Anos Identidade Difusão

18-35 Anos Intimidade Isolamento

35-65 Anos Generatividade Estagnação

+ 65 Anos Integridade Desespero

Com base na teoria de Erik Erikson, interessa sobretudo realçar, pela sua relevância nesta pesquisa, o quinto estádio, que decorre dos treze aos dezoito anos e que, segundo o autor, se revela particularmente importante no processo complexo de desenvolvimento, atendendo a que se aprofundam e conjugam, nesta fase, os aspetos da maturação física e as exigências da sociedade. Neste período em que se adquire uma identidade psicossocial, a tarefa principal prende-se com as respostas às interrogações: “Quem sou eu?” e “O que quero ser?”.

Na consciência da sua singularidade, o adolescente procura entender o seu papel no mundo e construir a sua própria identidade em áreas tais como profissionais, sexuais, religiosas e políticas. A não resolução destas tarefas pode originar a confusão da identidade. (Erikson, 1968: 128-135). A perda dos laços familiares e a falta de apoio no crescimento, as expectativas parentais e sociais divergentes do grupo de pares, as dificuldades em lidar com a mudança, a falta de laços sociais exteriores à família e o insucesso no processo de separação emocional entre a criança e as figuras de ligação, são fatores que contribuem para essa confusão manifesta em incertezas e dúvidas, que obrigarão a uma redefinição e recapitulação da identidade (ibidem).

Ora, tendo em conta todas as mudanças socioculturais ocorridas nas últimas décadas, que estão a alterar uma boa parte das estruturas de vida em sociedade, e tendo ainda em conta que é precisamente neste período crísico da vida que a maior parte dos estudantes passam o seu tempo na escola, importa perceber qual a relevância e o papel da educação escolar atual na construção do seu desenvolvimento pessoal e social, bem como da sua identidade.

Segundo Erikson (1968), é fundamental que ocorra o chamado período de moratória, em que o jovem tem possibilidades de explorar hipóteses e escolher caminhos. De facto, é nesta altura que vários agentes de socialização exercem pressão, para o assumir de responsabilidades e

para a tomada de decisões, principalmente do foro escolar e profissional. Este autor considera que a moratória institucionalizada – rituais sociais para a entrada na idade adulta, como a escolha da área profissional no ensino escolar – facilitam a preparação para a aquisição de papéis na sociedade. Por outro lado, um contexto social não estruturado pode levar a uma crise de identidade. Como não é possível separar a crise de identidade individual do contexto histórico da sociedade em que se insere o indivíduo, momentos de crise como guerras, epidemias e revoluções influenciam o adolescente em larga escala, quanto aos seus valores morais, por exemplo (ibidem).

Os outros têm um importante papel na definição da identidade: o jovem vê refletido no seu grupo de amigos, parte da sua identidade e preocupa-se muito com a opinião dos mesmos. Por vezes, procura amigos com “maneiras de estar” divergentes daquela em que cresceu, de forma a poder pôr em causa os valores dos pais, testando possibilidades para construir a sua própria “maneira” de ser. O grupo permite um jogo de identificações e a partilha de segredos e experiências essenciais para o desenvolvimento da personalidade (ibidem).

Segundo Erikson, o adolescente que adquire a sua identidade é aquele que se torna fiel a uma coerente interação com a sociedade, a uma ideologia ou profissão, que é também uma tarefa deste estágio. A fidelidade permite ao indivíduo a devoção a uma causa – compromisso com certos valores. Também permite confiar em si próprio e nas outras pessoas, como tal, a interação social é fundamental. A formação de identidade envolve a criação de um sentido de unicidade: a unidade da personalidade é sentida por si e reconhecida pelos outros, como tendo uma certa consistência ao longo do tempo (ibidem).

A visão do desenvolvimento social assenta no pressuposto de que nascemos sociais e que, pela relação com a diversidade comunitária, nos vamos tornando individuais, com estilo próprio, com significação de vida. Isto significa que o desabrochar das potencialidades e capacidades de cada um resulta, em grande medida, da complementaridade e sinergias que vão sendo geradas pela construção do pensamento e pela ação humana, seja pela distância temporal, ou pela proximidade relacional comunitária. É esta sinergia – que em grego significa energia posta em comum, ou conjugação de energia, cooperação – que possibilita ao ser humano o desenvolvimento das próprias faculdades, que permitem a capacidade de visualizar novos horizontes, de projetar, de transformar e atuar conscientemente no âmbito dos diferentes contextos em que a vida se constrói (Jardim, 2007).

Não perde, portanto, atualidade o relatório Delors, ao enfatizar que o sucesso da educação passa por “se conseguir transmitir às pessoas o impulso e as bases que façam com que

não se constrói de forma solitária ou solipsista. Pelo contrário, preconiza a relação interpessoal e o “aprender a viver com os outros” (ibidem: 83), com o legado histórico, situacional e axiológico, do qual provém e aponta para o engrandecimento da construção humana.

Contudo, este lado social da aprendizagem não pode pretender ignorar ou tão pouco secundarizar a dimensão pessoal de cada um, sob pena de se diluir ou subjugar o individual ao social, a parte ao todo, o que constituiria uma mera integração das diferenças sem voz própria. Neste caso estaríamos perante a destituição de sentido da particularidade diferenciadora d e cada ser humano e das suas próprias opções de vida, em prol de uma tentativa homogeneizadora, provinda de qualquer quadrante ideológico, político, religioso ou comunitário.

Por isso, pode sustentar-se, a par das máximas propostas pelo relatório Delors (1996) – “aprender a ser” e “aprender a viver com os outros” – a conexão destas expressões no contexto da aprendizagem, orientada para o “aprender a viver bem consigo e com os outros”. Por esta forma, situa-se aqui o aspeto fulcral desta investigação: o desenvolvimento pessoal e social no contexto da educação escolar – diversidade de aprendizagens que possibilitem a diversidade de realizações pessoais e sociais.

Estas dimensões conjugadas constituem, por um lado, um importante desafio à ação educativa e, em particular, à educação escolar, entendida como fator de desenvolvimento da dimensão pessoal e social. Por outro lado, supõem uma visão da pessoa humana o quanto mais ampla possível e onde se possam enquadrar todas as suas sub-dimensões, quer do pessoal, quer do social, perpassando a biológica, a psicológica, a espiritual, a cultural, a social, a ética e a moral.

É, portanto, pela diversidade, sustentada nessas singularidades das capacidades e competências, que se vão prenunciando e desenvolvendo novas formas e projetos de referência individual e comunitária. Isto significa um desenvolvimento recíproco; ou seja, à medida que se promove o desenvolvimento pessoal, está-se a promover o desenvolvimento dos grupos e comunidades que o envolvem. E quanto mais desenvolvidos os grupos e comunidades, maiores possibilidades de desenvolvimento pessoal têm os seus membros (Arto, 1990).

Este é um dos grandes desafios que a escola atual enfrenta, como espaço de encontro e confronto das diferenças, e portanto de democracia, de participação e do exercício das cidadanias. É, pois, neste lugar democrático privilegiado, onde os jovens adolescentes ocupam grande parte do seu dia a dia, como sublinham Guimarães, Sobral & Menezes (2007), num

estudo sobre A adolescência na escola: o desafio do desenvolvimento integral. As opções pedagógicas e organizacionais de uma escola Kentenichiana, que

Acontecem muitas interações que contribuem para o seu desenvolvimento pessoal e social. A escola tem que dar resposta a tarefas educativas que antes não pertenciam ao seu âmbito, encontrando-se perante novos desafios educativos derivados das características da sociedade atual e da situação dos adolescentes no seio dessa mesma sociedade (Guimarães, Sobral & Menezes, 2007: 88-89).

A premência dos novos desafios atribuídos à instituição escolar decorre de “ser já generalizado o reconhecimento da insuficiência das funções de instruir e socializar classicamente atribuídas à escola” (Menezes, 1998: 89). A título de exemplo Guimarães, Sobral & Menezes (2007), referem alguns dos desafios colocados atualmente à educação dos adolescentes:

A instabilidade psicológica de muitos adolescentes a quem não é dado viver num ambiente familiar estável; o vasto leque de opções de estilos de vida, incluindo alguns de risco; a insegurança em relação ao futuro, consequência dos processos de entrada na universidade e/ou no mercado de trabalho (Guimarães, Sobral & Menezes, 2007: 89).

A par disso identificam, no sistema de ensino português, a acumulação de vários problemas associados a estes, nomeadamente,

O insucesso escolar de um grande número de adolescentes, a agressividade e a violência na escola, a droga e o álcool consumidos por adolescentes em idade escolar (…), sem que se vislumbrem projetos educativos verdadeiramente capazes de lhes dar resposta cabal (ibidem).

No contexto das reconfigurações sociais atuais, a emergência destas novas problemáticas faz um apelo de atenção inclusiva, dirigido ao sistema educativo em geral e à educação escolar em particular, como prioridades de ação, em ordem ao desenvolvimento das pessoas e da sociedade. É, no âmbito deste quadro, que Carlinda Leite (2005) salienta a necessidade de se promoverem projetos e debates que tenham em conta as alterações das características populacionais e culturais. No entanto, esta investigadora faz notar a discrepância entre as diretivas europeias ou orientações legais nacionais e a sua efetiva concretização, denotando “o retorno ao privilégio da instrução dos alunos sobre o de uma formação global” (Leite, 2005: 9), numa espécie de “patologia da normalidade” (ibidem: 17).

O esmorecimento da atenção relativa às questões da multiculturalidade na educação escolar, manifesta-se na secundarização de prioridades dadas aos “conceitos de inclusão, de diferenciação pedagógica, de aprendizagem colaborativa, de avaliação de tipo formativo, de diagnóstico de pontos de partida dos alunos, de programas de tutoria e de acompanhamento a alunos com dificuldades de aprendizagem” (ibidem: 9).

Em diferentes áreas e registos, estas preocupações são também evidenciadas por Almerindo Afonso (1998, 2004), José Alberto Correia (2000), Licínio Lima (2002), Magalhães & Stoer (2002), Carlos Estêvão (2004) e Stoer & Magalhães (2005).

Perante as constantes reconfigurações da democracia e as novas exigências da sociedade atual, a par das orientações que têm vindo a ser propostas para o sistema educativo, e a dificuldade de conciliação de perspetivas teórico-legais, políticas e educativas, estes investigadores assinalam algumas contradições que permitem visualizar o distanciamento que ocorre entre o ideário de desenvolvimento pessoal e social e de cidadania e a sua efetiva concretização. Esta será também para mim uma das preocupações a ter em conta na investigação empírica procurando, através dos instrumentos de análise (análise documental e entrevistas), descritos na metodologia de trabalho, perceber quais os impactos da educação e das vivências escolares na promoção do desenvolvimento dos alunos. Por outro lado, importará perceber a proximidade ou distanciamento entre os ideários propostos, quer a nível das políticas educativas, bem como da orientação regimental interna e a sua efetiva manifestação, nas vivências dos atores educativos.