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Cultura escolar e cultura profissional docente

Capítulo II – Globalização e educação

2.4. Cultura escolar e cultura profissional docente

As diferentes dinâmicas que atravessam a organização e a cultura escolar (Torres, 2001) estão intimamente ligadas com a cultura profissional docente, ou seja, com os valores, crenças e modos como os professores atuam e se relacionam entre si (Caria, 2000; Hargreaves et al., 2001; Guerra, 2002; Morgado, 2003, 2010). Este jogo de inter-relações desempenha um papel

crucial ao nível micropolítico, nomeadamente no que diz respeito à forma como os textos da lei são interpretados e implementados nos contextos da prática (Ball, 1992). É, nesse sentido, que Moreira refere que a escola é “uma arena política e cultural na qual formas de experiências e de subjetividades são contestadas, mas também ativamente produzidas” (Moreira,1999: 9).

Joaquim Azevedo (2011) considera que o objetivo da educação escolar é que todos os alunos aprendam, que compreendam conceitos fundamentais e críticos e adquiram capacidades cognitivas relevantes. É nessa tarefa que, segundo este autor, os professores têm que se embrenhar. Na sua opinião, um professor não deve comportar-se

Como um quase-profissional, que está colocado no fim de uma linha de montagem, a cumprir ordens superiores e prescritas, mas como um profissional autónomo, reflexivo e que atribui prioridade ao trabalho em equipa, não só porque ele é mais fecundo, mas também porque aquele objetivo só se pode cumprir de modo cooperativo, interdisciplinarmente, interprofissionalmente, com o apoio de especialistas em educação, tais como psicólogos escolares, mediadores familiares, terapeutas, técnicos de saúde, bibliotecários e documentalistas (Azevedo, 2011: 312-313).

A cultura da colaboração e da colegialidade é defendida por Joaquim Azevedo, que a considera crucial para a melhoria do desempenho institucional das escolas. Dentro deste enquadramento, assume-se a importância de os professores conversarem “uns com os outros sobre os seus alunos, os seus avanços e hesitações, os seus temores e ousadias” (Azevedo, 2011: 309). A crítica é encarada como um elemento essencial, pois é a partir dela que se parte para a reflexão. Pretende-se que os professores sejam encarados pelos pares como amigos críticos (Leite, 2002b), isto é, como elementos cujo papel é, por um lado, apoiar e, por outro, desafiar e criticar construtivamente o seu par (ibidem).

O trabalho e a cultura de colaboração não acontecem por acaso (Santos Guerra, 2002; Morgado, 2003). Cabe à escola criar condições que favoreçam o encontro e a partilha entre todos, pois como refere Joaquim Azevedo,

De que adianta falar do professor como um profissional autónomo e que reflete com os seus colegas sobre o trabalho que em conjunto desenvolvem se não existem quaisquer condições nas escolas para que os docentes se reúnam, em equipa, todas as semanas e se isso é profundamente desvalorizado nas suas práticas e na avaliação do seu desempenho? (Azevedo, 2011: 310).

Este autor considera, no entanto, que este não é o caminho que tem vindo a ser seguido pelas escolas portuguesas:

Reforçam-se mecanismos burocráticos de controlo do desempenho profissional, que nada servem e só se traduzem em destruição de valor profissional; alimentam-se práticas de isolamento de cada docente na sua sala de aula e com os seus “meninos”, como se isso servisse algum modelo de educação assente no cuidado e apontada ao sucesso nas aprendizagens; criam-se mecanismos de ocupação frenética e individualista do tempo escolar, que não deixam qualquer oportunidade para o trabalho colaborativo, seja para professores seja para alunos (Azevedo, 2011: 314-315).

Também Linda McNeil refere que, “ao aumentar os controlos burocráticos, estas reformas, inadvertidamente, fortaleceram as próprias forças que fizeram ruir o ensino e a aprendizagem, uma vez que os professores e os alunos reagem contra os controlos ao limitarem o seu próprio trabalho” (2000: xiv). William Pinar acrescenta que a enfâse colocada em todos os processos de avaliação e de prestação de contas

Não tem que ver com “aprendizagem”, mas com controlar o que ensinamos às nossas crianças. Diz respeito ao controlo do currículo. Para alcançar este controlo – que é, em última análise o controlo da mente – as escolas públicas são separadas tanto do social como do subjetivo. Os professores são reduzidos a técnicos, a “gerir” a produtividade dos alunos. A escola já não é uma escola, mas um negócio (Pinar, 2007: 52).

Joaquim Azevedo partilha desta mesma perspetiva, afirmando que “a obsessão avaliativa é e será cada vez mais, (...) um instrumento de controlo, de reforço do poder e da iluminação do centro, transformando-se em mais desresponsabilização e mais mentira organizacional” (Azevedo, 2011: 291).

Perante a situação que se vive na educação, o mesmo autor considera que os professores “precisam de ser mais assertivos acerca dos critérios de qualidade a alcançar para ajudarem a edificar eficazmente os sucessos dos seus alunos” (Azevedo, 2011: 313). Joaquim Azevedo sustenta que os professores “poucas vezes são veementes acerca do que a escola pode ou não fazer, ou melhor, acerca de qual deve ser o novo quadro institucional em que as escolas devem laborar para alcançarem o que politicamente a sociedade (...) atribui à escola como missão nuclear” (Azevedo, 2011: 313).

Ainda segundo o mesmo autor, a visão tradicional de aprendizagem, centrada no conhecimento de baixo valor cognitivo, na regurgitação de conhecimentos e procedimentos superficiais, não responde às exigências do tempo presente e do futuro. Importa, por isso

Dominar e hierarquizar os saberes estruturantes de cada disciplina, analisar problemas complexos e muito dependentes de saberes multidisciplinares, adquirir um saber profundo e conceptual, que perdure para lá dos testes, avaliar argumentos, analisar criticamente as torrentes de informação disponíveis, fazer escolhas informadas (Azevedo, 2011: 312).

O poder reflexivo e crítico é uma competência considerada fundamental na sociedade do conhecimento. Crucial também é a relação dos professores “com os alunos e o desenvolvimento pessoal e social destes” (Nias, 1989; Best, 1994). Como afirma Margarida Fernandes, “para o sucesso da mudança educativa, são também importantes as dimensões culturais do ensino, particularmente a qualidade das relações humanas entre os professores, refletindo-se os seus efeitos sobre a qualidade do trabalho realizado na sala de aula” (Fernandes, 2000: 82-83). Ao se valorizar em demasia os conteúdos curriculares, perde-se, por vezes, a ideia do professor “como dinamizador cultural do seu meio” (Fernandes, 1977), ou seja, o professor como agente de transformação social. Também Azevedo (2011) considera que o professor não pode limitar-se a ser um mero transmissor de conhecimentos. Ele deve ser “um inspirador de valores, que ajuda no quotidiano cada aluno a construir uma visão do mundo e da cidadania ativa” (Azevedo, 2011: 323). No mesmo sentido, Giroux (1988) fala do professor como intelectual transformador, ou seja, alguém a quem é reconhecida a competência de educar estudantes que se pretende venham a ser cidadãos críticos e ativos, de forma a “tornar a pedagogia mais política e a política mais pedagógica” (ibidem: 127). Mclaren (1988) sintetiza o pensamento de Giroux, afirmando que o ensino deve ser encarado como uma prática emancipatória

Na criação de escolas como lugares públicos da democracia, na restauração de uma comunidade de valores progressistas partilhados, no encorajamento de um discurso público comum ligado aos imperativos democráticos de igualdade e justiça social (...). Os intelectuais transformadores encaram seriamente a primado da ética e da política no seu compromisso crítico com estudantes, administradores e comunidade envolvente (Mclaren, 1988: Prefácio, xviii).

Margarida Fernandes afirma, contudo, que não é fácil assumir este desafio, uma vez que “os professores têm vindo a perder poder e controlo sobre as condições básicas do seu trabalho, que passou a estar subordinado a outros (especialistas, diretores, supervisores), proletarizando-se o seu trabalho” (Fernandes, 2000: 81). Por outro lado, as teorias sobre o ensino têm vindo a tornar-se cada vez mais técnicas e obcecadas com a eficácia e a gestão do controlo de diferentes formas de conhecimento (Giroux, 1988).

A racionalidade técnica, os objetivos da eficácia e o controlo do conhecimento passaram a dominar todas as esferas de atividade, incluindo o trabalho dos professores. Como refere Margarida Fernandes, a racionalidade técnica

Não prepara os professores para participar de forma crítica na conceção e elaboração do currículo, isto é, na tomada de decisão sobre o que deve ser ensinado e com que finalidade, reduzindo significativamente a sua autonomia e limitando o seu papel como práticos reflexivos produtores de saberes (Fernandes, 2000: 81).

A mesma autora refere a ambiguidade do atual sistema, que pede ao professor que seja autónomo e responsável para com os seus alunos e, ao mesmo tempo, regulamenta minuciosamente as suas obrigações, não lhe deixando espaço para projetar e desenvolver a sua atividade de forma criativa:

Quando se subordina a dimensão educativa à administrativa, não só se impede que os professores desenvolvam a sua capacidade de responder às necessidades dos estudantes, como, com o passar do tempo, se desencoraja a capacidade de procurar respostas diversificadas, de alargar o seu repertório de estratégias e de desenvolver sensibilidade às diferenças individuais (Fernandes, 2000: 82).

Lieberman (1988) considera que, ao se reduzir a autonomia e a criatividade dos professores, o ensino transforma-se num processo repetitivo e rotineiro, que não mobiliza pessoas capazes e independentes de espírito para esta profissão. Também Nóvoa (1991) salienta a situação de mal-estar entre os docentes em consequência da desvalorização do seu estatuto profissional, insuficiente remuneração, degradação da carreira, falta de reconhecimento e isolamento profissional, falta de estímulo, difíceis condições de trabalho, novas e complexas alterações do seu papel e funções. Fernandes afirma que a compreensão do papel do professor implica necessariamente

A análise das forças materiais e ideológicas que contribuíram para a proletarização do seu trabalho, invertendo a tendência para reduzir os professores ao estatuto de técnicos especializados na burocracia da escola, cujas funções se tornaram essencialmente as de gerir e implementar programas, em vez de reinterpretar e desenvolver criticamente o currículo para o adequar à pluralidade de situações pedagógicas com que deparam na sua atividade profissional (Fernandes, 2000: 83).

Almerindo Afonso (2004), realça também a preocupação com a dimensão instrutiva, centrada nas didáticas da educação em detrimento da dimensão formativa. Segundo este autor, esta é uma lacuna que cumpre suprir, pois a formação pessoal e social dos alunos é uma questão

transversal a todos os professores e a todas as disciplinas. Neste sentido, torna-se necessário investir em projetos “que deem conta de formas novas e criativas de educar, de avaliar, de organizar a escola, de aprender, de ser aluno(a) e de ser professor(a)” (Afonso, 2004: 21).