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Entre a tendência de homogeneização cultural e a afirmação das identidades particulares

Capítulo I – Pressupostos e tendências das sociedades contemporâneas

5. Entre a tendência de homogeneização cultural e a afirmação das identidades particulares

Este sentido globalizador, supostamente natural e espontâneo, transporta em si a tentativa de homogeneização cultural das especificidades identitárias locais e nacionais, perspetivando um “padrão de normalidade” (Carvalhais, 2004: 70), enquadrado no consenso neoliberal económico. Como defende Boaventura Sousa Santos, “no domínio cultural o consenso neoliberal é muito seletivo. Os fenómenos culturais só lhe interessam na medida em que se tornam mercadorias que como tal devem seguir o trilho da globalização económica” (Santos, 2005: 49). Daí decorre o interesse pelos produtos das indústrias culturais como as tecnologias da comunicação e da informação, os direitos de propriedade intelectual, e tudo aquilo que pode ser revertido em lucro.

As clivagens decorrentes deste processo intentado de globalização refletem grandes preocupações relativas a um sentimento crescente de perda de identidade de grupos e comunidades locais. O ideário de uma comunidade global, suportado por uma vasta gama de redes comunicacionais, de multinacionais e de superpotências parece não criar espaço de sobrevivência para a diferença dos pequenos Estados e das identidades comunitárias e individuais. Rothes refere que a perda de referência a uma identidade:

Conduz os indivíduos a uma situação em que a sua história deixa de ser eficaz para interpretar a realidade quando inseridos em novos contextos; à neutralização das culturas regionais, com a predominância das culturas dominantes; à redução da cultura regional ao papel do pitoresco, sem vida, dinamismo e funcionalidade (Rothes, 2000: 65).

Octávio Ianni (1999) afirma que o globalismo, sendo problemático e contraditório, tanto promove a homogeneização como a fragmentação e a ressurgência de localismos, provincianismos, nacionalismos, racismos e fundamentalismos, que tanto se modificam como se reafirmam, naturalmente noutros termos, com outros elementos, compreendendo outros significados. Na mesma ordem de pensamento, Francis Fukuyama sustenta que com a globalização

Haverá uma certa construção de capital social global ao longo do tempo mas, em muitos aspetos, o mundo vai continuar a ser um mundo diversificado no que respeita à cultura e talvez até venha a haver significativos recuos culturais, com as pessoas a tentarem defender essas comunidades de valores partilhados face à globalização da economia (Fukuyama, 2001: 284).

Por isso, como faz notar Anthony Smith (1994), a ideia de uma cultura global é praticamente impossível, a não ser em termos interplanetários, uma vez que as tentativas de pressão da globalização e da homogeneização sobre a diferenciação e a diversidade, promovem também formas de resistência e de reivindicação, do específico, do local e do particular. Neste sentido, não se pode obnubilar, nos mais variados campos, o reconhecimento e o valor das diversidades como formas coexistentes e multiculturais e como via desejável de entrecruzamento da uniformidade e da diversidade ou do global e do local. Assumindo que a construção do ser humano se desenvolve na relação com a alteridade, importa perceber os contornos do reconhecimento dessa mesma alteridade, traduzida na categoria de identidade. Na perspetiva de Gaulejac (2005), a identidade apresenta-se como uma noção complexa, multirreferencial e até contraditória, uma vez que se situa entre a ideia de similitude e de diferenciação, e evoca a permanência no tempo de indivíduos que não cessam de se transformar para tentarem dominar o curso da sua existência. Também McAdams & Marshall (1996) se referem à noção de identidade como uma construção dialética entre o cultural, o social e o individual e que, por essa razão, envolve incompatibilidades, inconsistências e conflitos, seguidos de síntese e resolução.

A tentativa de perceção das identidades pessoais e sociais que traduzem as novas configurações da sociedade atual remonta, em certa medida, às teorias culturais que conheceram o seu auge em meados do século XX, enriquecidas com os trabalhos pioneiros de Jacques Lacan, Claude Lévi-Strauss, Louis Althusser, Michel Foucault, Roland Barthes, Raymond Williams, Pierre Bourdieu, Jacques Derrida e Jurgen Habermas entre outros, na procura de interpretação das mudanças e tensões que entretanto foram emergindo (Oliveira, 2006). Esta dificuldade de definição de uma matriz da identidade está ainda ligada ao seu caráter parcial pela “vivência e a absorção dos conteúdos pragmáticos, abstratos, míticos, valorativos e afetivos da matriz da identidade” (Brito, 1998: 128), tornando-se, por isso, num processo lento e cumulativo.

A par destes aspetos e ponderando a trajetória histórica social e o caráter imparável do avanço tecnológico e científico que culmina no incremento das tecnologias de comunicação de massa, com repercussões no campo social, cultural, económico e em muitas das áreas da vida individual e comunitária, vamos assistindo a constantes reconfigurações de modos de vida fundados em “relações sociais globalizadas” (Stoer, Magalhães & Rodrigues, 2004: 26). A relação informação, cultura e tecnologia, como base da construção de identidades, tem sido trabalhada por Manuel Castells (2003) e Stuart Hall (1998), pelo que importa ponderar sobre

algumas das ideias-força deste autores, com o intuito de captar os fundamentos e desenvolvimentos das identidades que a sociedade atual regateia e exprime.

Na sociedade atual, a atenção sobre as formas de construção das identidades recai sobre as perceções acerca do impacto das produções culturais, a circulação e a troca de produtos. As leituras de Manuel Castells e de Stuart Hall referem-se a esta abordagem, “tendo como pano de fundo a aceleração, a flexibilização, a informacionalização e a globalização dos sistemas de produção” (Stoer, Magalhães & Rodrigues, 2004: 97), embora Castells dê maior relevo ao papel das tecnologias no processo das transformações globais.

No início da sua obra O poder da identidade, Castells (2003) afirma que o nosso mundo e a nossa vida estão a ser moldados pelas tendências conflituantes da globalização e da identidade. A revolução da tecnologia da informação e a reestruturação do capitalismo introduziram uma nova forma de sociedade, a sociedade em rede, onde a globalização induzida pela tecnologia, o poder da identidade (em termos sexuais, religiosos, nacionais, étnicos, territoriais e sociobiológicos) e as instituições do Estado se entrecruzam. Tendo como pano de fundo esta sociedade em rede, Castells considera que a construção social de uma identidade coletiva, ocorre sempre num contexto de relação de poder, no âmbito de uma tripla dimensão: a identidade legitimadora, a identidade de resistência e a identidade de projeto.

A “identidade legitimadora” é introduzida pelas instituições dominantes da sociedade no intuito de expandir e racionalizar a sua dominação em relação aos atores sociais. Este tipo de identidade dá origem a uma sociedade civil, ou seja, a um conjunto de organizações e instituições, bem como a uma série de atores sociais estruturados e organizados que, por vezes de modo conflituante, reproduzem a identidade que racionaliza a estrutura social.

A “identidade de resistência” é criada por atores que se encontram em posições ou condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica da dominação, construindo, assim, trincheiras de resistência. Origina estruturas organizacionais semelhantes a comunas ou comunidades.

A identidade de projeto refere-se à construção de uma nova identidade, por parte dos atores sociais, servindo-se de qualquer tipo de material cultural ao seu alcance. Essa nova identidade deve ser capaz de redefinir sua posição na sociedade e, ao fazê-lo, tais atores procuram transformar toda a estrutura social (Castells, 2003: 4-5).

Para o autor, a identidade de resistência é talvez a forma mais importante de constituição identitária, já que desenvolve um tipo de identidade que reforça os limites da resistência e reverte os valores dominantes gerando uma “exclusão dos que excluem pelos excluídos” (os excluídos que formam tais comunidades, excluem delas mesmas aqueles que os excluem dos

demais espaços) (ibidem: 7). Neste quadro, apresentam-se como exemplos o fundamentalismo religioso, a autoafirmação nacionalista e as comunidades territoriais.

A identidade de projeto constrói-se na base de um projeto levado a cabo por indivíduos que, nesse processo, se tornam sujeitos e capazes de criar opções de vida diferentes. Castells realça ainda que o entendimento sobre a questão da identidade não pode ser desvinculado do contexto social, devendo, por isso, ser situado historicamente, independentemente da sua tipologia. Por isso, como sustenta, o advento da sociedade em rede faz emergir os processos de construção identitária que ocorrem durante um determinado período produzindo, assim, novas formas de transformação social, através de uma “disjunção sistémica” entre o local e o global e de uma separação entre poder e experiência, em diferentes estruturas de tempo e espaço. Neste contexto, “a maior parte das ações sociais organiza-se ao redor da oposição entre fluxos não identificados e identidades segregadas” (ibidem: 9).

Uma outra hipótese levantada por Castells é a de que a constituição dos sujeitos (no âmbito da identidade de projeto), na sociedade em rede, se dá de forma diferenciada daquela que marcou o período da modernidade, desde seu início até a sua fase mais tardia:

Os sujeitos, se e quando construídos, não são formados com base em sociedades civis que estão em processo de desintegração, mas sim como um prolongamento da resistência comunal (...). Na sociedade em rede, a identidade de projeto, se é que se pode desenvolver, origina-se a partir da resistência comunal (...). A análise dos processos, condições e resultados da transformação da resistência comunal em sujeitos transformacionais é o terreno ideal para o desenvolvimento de uma teoria de transformação social na era da informação (Castells, 2003: 9).

Interligam-se, assim, dois dos três tipos de construção identitária estabelecidos por Castells: na sociedade da informação, a construção dos sujeitos (identidade de projeto) só pode desenvolver-se a partir da resistência comunal (que já é consequência do processo de identidade de resistência). No primeiro volume da sua obra – A sociedade em rede – Castells releva a questão da identidade nestes termos:

A identidade está a tornar-se na principal e, por vezes, única fonte de significado num período da história caracterizado pela ampla desestruturacão das organizações, deslegitimacão das instituições, enfraquecimento de importantes movimentos sociais e pelas expressões culturais efémeras. Cada vez mais, as pessoas organizam o seu significado não em torno do que fazem, mas com base no que são ou no que acreditam ser. Enquanto isso, as redes globais de trocas instrumentais ligam e desligam seletivamente os indivíduos, grupos, regiões e mesmo países, de acordo com a sua importância no preenchimento dos objetivos processados na rede, num fluxo contínuo de decisões estratégicas. Daí

surge uma divisão básica entre um instrumentalismo universal e abstrato e as identidades particulares historicamente enraizadas. As nossas sociedades estruturam-se, cada vez mais, em torno de uma oposição bipolar entre a Rede e o Self (Castells, 2002: 4).

A questão da construção da identidade é também objeto de profunda análise de Stuart Hall. Numa das suas obras de referência – A identidade cultural na pós-modernidade (1998) – Hall procura demonstrar como, no contexto da globalização, a emergência de novas identidades (contrariamente ao período moderno), se baseia na pertença a culturas diferenciadas: nacionais, étnicas, de género, raciais, linguísticas.

Na base do desenvolvimento deste argumento, Hall (1998) apresenta três conceções diferentes de constituição identitária, baseadas na distinção das conceções de sujeito: o sujeito do iluminismo, o sujeito sociológico e o sujeito pós-moderno. A cada uma destas conceções corresponde um período histórico: a conceção iluminista traduz uma visão individualista da identidade, construída ao longo da vida de cada sujeito, “totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades da razão, de consciência e de ação” (ibidem: 10). A conceção sociológica, situada no século XIX e parte do século XX, e nas transformações das sociedades modernas, considera a individualidade do sujeito, o “eu interior” (ibidem) formado e moldado pela relação com as outras pessoas que medeiam os valores e a cultura em que o sujeito vive. A identidade do sujeito pós-moderno “torna-se numa celebração móvel: formada e transformada continuamente” (ibidem: 12), “fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado” (ibidem: 7). Como salienta Hall, esta nova realidade pode traduzir-se numa crise de identidade:

Um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades modernas no final do século XX. Isso está fragmentando as paisagens culturais de classe, género, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais. Estas transformações estão também mudando as nossas identidades pessoais, abalando a ideia que temos de nós próprios como sujeitos integrados. Esta perda de um ‘sentido de si’ estável é chamada, algumas vezes, de deslocamento ou descentração do sujeito. Esse duplo deslocamento – descentração dos indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos – constitui uma ‘crise de identidade’ para o indivíduo (Hall, 1998: 9).

Depois de estabelecer as noções de construção identitária, numa lógica evolutiva, desde o sujeito do iluminismo até ao sujeito pós-moderno, Hall fundamenta a afetação das identidades culturais pelo contexto da globalização, que decorre do tempo dos descobrimentos até à

atualidade entendido como um “complexo de processos e forças de mudança, que, tão poderosamente está a deslocar as identidades nacionais” (ibidem: 67). Além disso,

Os fluxos culturais, entre as nações e o consumismo global criam possibilidades de identidades partilhadas – como consumidores para os mesmos bens, clientes para os mesmos serviços, públicos para as mesmas mensagens e imagens – entre pessoas que estão distantes umas das outras no espaço e no tempo (ibidem: 74).

Decorrente do processo de globalização, Hall assinala três consequências:

- A desintegração das identidades nacionais, como resultado da homogeneização cultural: “quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado global (…) mais as identidades se tornam desvinculadas – desalojadas – de tempos, lugares, histórias e tradições específicos e parecem flutuar livremente” (ibidem: 75);

- o reforço das identidades nacionais e outras identidades locais ou particularistas, pela resistência à globalização. Hall refere que não há substituição do global pelo local, mas sim um redimensionamento da relação entre estes dois pólos, e que a globalização não destruirá a identidade nacional, como categoria, mas produzirá novas identificações globais e novas identificações locais;

- o declínio das identidades nacionais, e a emergência de identidades híbridas: “A formação de enclaves étnicos minoritários no interior dos Estados-nação no Ocidente levou a uma pluralização de culturas nacionais” (ibidem: 83). Simultaneamente, os grupos pertencentes às identidades híbridas abriram mão de “qualquer tipo de pureza cultural ‘perdida’ ou de absolutismo étnico” (ibidem: 89), o que fez com que na base do seu processo de construção identitária houvesse uma substituição do conceito de tradição para o de tradução: de identidades tradicionais para identidades traduzidas, numa lógica de coordenação das dimensões espaciais e temporais, atendendo a que diferentes épocas culturais têm diferentes formas de combinar essas coordenadas espaço-tempo (ibidem: 70).

A cultura representa para Hall o elemento condensador das formas de analisar e pensar as construções identitárias que se operam no espaço-tempo da globalização, que através da circulação de produtos culturais, promove novas formas de relação, sustentadas pelas novas tecnologias que encurtaram as distâncias e redimensionaram a relação com o presente e o futuro.

Numa perspetiva geral, Castells e Hall consideram que o desenvolvimento da identidade está ligado às relações de poder e às transformações globais decorrentes da centralidade das tecnologias e das consequências da nova ordem da globalização. Para ambos, as novas formas

de identidade que emergem nesta nova ordem refletem a desigualdade de trocas culturais e económicas, provindas de uma globalização centrada na tecnologia e no fluxo informacional. Esta desigualdade de trocas traz à memória a histórica relação entre dominantes e dominados, seja em termos territoriais, políticos, económicos, sociais ou informacionais. No entanto, os novos contornos de que se revestem e as relações que estabelecem não têm enquadramento de análise ou de leitura pelas categorias que vigoraram até ao século XIX. Como afirma Castells,

A nova forma de poder reside nos códigos da informação e nas imagens da representação em torno das quais as sociedades organizam as suas instituições e as pessoas constroem as suas vidas e decidem o seu comportamento. Esse poder encontra-se na mente das pessoas. É por isso que o poder na era da informação é simultaneamente identificável e difuso. Sabemos o que ele é, contudo, não podemos tê- lo, porque o poder é função de uma batalha interminável pelos códigos culturais da sociedade" (Castells, 2002: 440).

Decorrente destes novos contornos, as

(im)possibilidades da construção de identidade encontram-se delimitadas por aquilo que Santos (1995) denomina “espaços estruturais”, que incluem o espaço doméstico, o espaço de trabalho, o espaço da cidadania, o espaço comunitário, o espaço do mercado e o espaço mundial e que representam, ao mesmo tempo, tanto um lugar relativo como central na construção da identidade” (Stoer, Magalhães & Rodrigues, 2004, 97-98).

A relativização ou centralidade destes espaços decorre das variáveis tempo e espaço, pois como referem Stoer, Magalhães & Rodrigues, se por um lado proporcionam as matérias- primas da construção das identidades, por outro, encontram-se sempre num contexto específico (ibidem: 98).

Na interseção dos “espaços estruturais” com a configuração espácio-temporal, estes autores identificam cinco lugares possibilitadores de ativação dessa mesma interceção: “Corpo, trabalho, cidadania, identidade e território”. Porém, advertem que estes lugares, entendidos como “abstrações das possibilidades enquadradas pelo tempo e pelo espaço, só ganham vida, enquanto tal, em contextos concretos”, tais como a “família, a escola, o hospital, a prisão, o tribunal, a vizinhança, etc.” (ibidem: 98).

Na delimitação deste processo em que “os contextos” ativam os “lugares” e onde estes, por sua vez, ativam os “espaços estruturais”, apresentam-se possibilidades e implicações de gestão de escolhas tanto para os indivíduos como para os grupos (ibidem: 99). Fala-se,