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Para um desenvolvimento equilibrado

Capítulo III – O papel do DPS e da educação para a cidadania numa sociedade de tensões,

3.5. Promover o desenvolvimento pessoal e social no contexto da educação escolar

3.5.2. Para um desenvolvimento equilibrado

A possibilidade de engrandecimento da pessoa e do cidadão pela educação escolar sublinha ainda a necessidade de perspetivar outras dimensões e processos que estejam orientados para a valorização dos sujeitos em construção, para além dos aspetos cognitivos.

Neste contexto, vale a pena aportar a crítica de António Damásio ao “Erro de Descartes” (1995) relativa à proeminência do cogito ergo sum sobre as restantes dimensões constitutivas do ser humano, segundo a lógica do dualismo e do mecanicismo, que “continuam a prevalecer e a influenciar a ciência e a cultura hodiernas” (Damásio, 1995: 255) e consequentemente a educação escolar. Nesta obra, como nas subsequentes, como O Sentimento de Si (2001), Ao Encontro de Espinosa (2003) e O Livro da Consciência (2010), Damásio debate sobre o tema dos sentimentos, das emoções e da construção da consciência, demonstrando a importância das emoções, no pensamento racional e na tomada de decisões, bem como no papel que estas desempenham no sentimento de si e na construção da identidade.

Esta importância, tal como ficou referido, também é evidenciada no teor da LBSE, relativa à formação pessoal e social, bem como nas demais reformulações e reorganizações curriculares, até à atualidade. No âmbito da comunidade europeia, o Parlamento Europeu adotou, em 2006, a competência da sensibilidade, no quadro de referência das oito competências essenciais relativas à aprendizagem ao longo da vida, que todo o cidadão deve possuir.

Estes dados reforçam a ideia de que a promoção do desenvolvimento pessoal e social, em espaço escolar, deve ponderar a aprendizagem afetiva e relacional, a par da cognitiva, numa perspetiva de desenvolvimento equilibrado e integral.

É neste sentido que Rui Santiago (1997) salienta a necessidade de se encarar

A preparação do aluno para a inserção socioprofissional em todas as componentes. Aos objetivos educacionais de tipo cognitivo ou instrumental são interligados outros objetivos dos domínios afetivo, social e moral, que ocupam um espaço importante na relação e na aprendizagem (Santiago, 1997: 47).

A (boa) relação e (boa) aprendizagem são, assim, indissociáveis. Pela imbricação equitativa destas vertentes, muitos dos problemas de relacionamento, de conflito pedagógico-didático e de indisciplina, que gravitam na escola, poderiam ser ultrapassados. Ao invés do reforço de medidas reguladoras dos comportamentos, das ameaças e das punições, consagradas nos regulamentos das escolas, a aposta na aprendizagem de relações sadias, poderia tornar-se num importante contributo para o desenvolvimento da robustez das identidades, da autonomia e da participação dos alunos na vida da escola e da sociedade.

Em abono desta perspetiva, Miguel Santos Guerra (2004, 2006) apela à necessidade da desocultação das dimensões afetivas e relacionais, na vida da escola, uma vez que “muitas das relações que se estabelecem na escola, giram à volta da dimensão afetiva” (Guerra, 2004: 34), nas dimensões do tempo e do espaço. Para este autor, a desvalorização/ocultação dos afetos e dos sentimentos, bem como o significado de muitas das relações, que aí se estabelecem, tem muito a ver com categorias de visibilidade e invisibilidade, por influência da cultura (ibidem:25-36). Segundo o mesmo investigador, estas categorias são normalmente traduzidas em atitudes discriminatórias, relativamente aos alunos que se evidenciam pouco, aos marginalizados, às minorias e às questões de género (ibidem). Por tais motivos, considera que as relações afetivas constituem uma das faces ocultas da escola, onde “as dimensões intelectuais cobriram com um manto de obscuridade as preocupações pelo mundo dos sentimentos” (ibidem: 37), que apenas merece atenção quando constitui obstáculo e não enquanto objeto de atenção educativa.

A educação para os valores pessoais (entendidos como princípios orientadores do indivíduo, que afetam o seu pensamento e ação) e sociais (os princípios consensuais que revelam tradições culturais, estruturas práticas e leis), continua a manter-se como uma outra face oculta da escola (Menezes, 1994; Guimarães, Sobral & Menezes, 2007). Na perspetiva desta investigadora, “as recomendações governamentais e a divulgação de publicações não são suficientes para a transformação das práticas” (Menezes, 1994: 18), reduzindo a formação pessoal e social dos alunos a “uma declaração de intenções” (ibidem) ou à “boa vontade de alguns professores” (Guimarães, Sobral & Menezes, 2007: 85).

A insistência descabida no desenvolvimento desequilibrado mostra a inoperância de um sistema educativo, preocupado sobretudo com um “currículo uniforme pronto-a-vestir de tamanho único” (Formosinho, 1987), vinculado “a uma estratégia mercantil”, (Bolívar, 2007:25) cujos rankings (ibidem) subsidiam a deportação e a emigração de muitos jovens cidadãos que não encontram, no país, resposta (nem pessoal, nem profissional) para aquilo que o ensino escolar, eficientemente, os preparou.

Considera-se, por último, o currículo oculto da escola como mais uma das outras faces ocultas na escola.

Muito para além do espaço físico, a escola revela-se como um espaço humano, cultural e social, onde “a adolescência acontece” (Guimarães, Sobral & Menezes, 2007: 85). Por estes motivos “espaciais”, a escola não pode, também, deixar de ser considerada como espaço(s) e tempo(s) totalmente pedagógicos. A conjugação e a complexidade de cada um destes fatores, não permite à escola a arrogância de se intitular “a escola das certezas” (Canário, 2005: 67) ou “escola das promessas” (ibidem: 78), através de currículos estandardizados, com uma organização pedagógica consubstanciada no princípio de “ensinar a muitos como se fossem um só” (Barroso, 2001: 69).

A inversão desse processo poderá ocorrer, quando o currículo se configurar como instrumento flexível e integrador das múltiplas dimensões dos seres humanos que coexistem na escola. Ao valorizar a existência de “currículos informais” (Santos, 1999: 199), a escola poderá transformar-se num espaço privilegiado de encontro de saberes que, para além de promover a memória do conhecimento científico, também valorizam o conhecimento das “várias vozes” (ibidem), certamente interessadas na expressão e na participação naquilo que lhes diz respeito. A reconfiguração dos ambientes educativos fica inerente a esta valorização do currículo oculto. Neste contexto, Ramiro Marques (1989), enuncia alguns dos aspetos que constituem obstáculos à prossecução da formação pessoal e social: a “ausência de espaços e tempos geridos pelos alunos e destinados à participação coletiva e à resolução de problemas que afetam os indivíduos, os grupos e a escola” (Marques, 1989: 106) e o remeter “a aprendizagem e o exercício dos direitos e deveres do cidadão para a família dos alunos e os meios de comunicação de massa, sobretudo a televisão e a rádio” (ibidem).

Para este investigador, a escola falha, no desenvolvimento moral e de cidadania dos alunos, porque:

Não lhes concede responsabilidade na gestão dos projetos, de espaço e do tempo. Sem o exercício da participação, os alunos não experienciam a troca de opiniões, o confronto de pontos de vista, de ideias e de valores, atividades que são essenciais para que construam um código de conduta marcado pela autonomia, espírito crítico e capacidade de tomar decisões, aceitar pontos de vista diferentes e mudar de opinião ou atitudes (Marques, 1989: 107).

O diagnóstico destes problemas constitui-se já, em si mesmo, como um prenuncio da recriação dos ambientes educativos escolares, aos quais se colocam o desafio de

Olhar para o adolescente na sua necessidade de desenvolvimento situado no cruzamento das linhas da consolidação da identidade e da capacidade de interrelação; catalisar o seu processo de descoberta de si próprio como pessoa única, valiosa, digna; possibilitar o contacto, pessoal e estável, com figuras significativas, bem como o confronto com valores, atitudes e ideias que poderão dar sentido e objetivos à sua vida. Esse ambiente educativo deverá proporcionar ao adolescente a possibilidade de encontro consigo mesmo, num contexto simultaneamente protegido e aberto, que lhe dê todo o tempo necessário para se ir consolidando como pessoa, sem ter que esconder ou recalcar, ou converter em agressividade descontrolada, as suas fragilidades, dúvidas e descobertas (Guimarães, Sobral & Menezes, 2007: 85-86).

Estes três pressupostos, porém, não esgotam todas as dimensões e possibilidades que a educação escolar pode proporcionar no sentido do desenvolvimento pessoal e social dos educandos. No entanto, abrem um campo de novas possibilidades de atuação pedagógica pela perspetiva da intervenção que valoriza as características e os recursos de cada um, tornando - se, deste modo, um instrumento valioso do sucesso pessoal, social e escolar a ter em conta. O desenvolvimento da diversidade individual, da identidade, da personalidade, de estilos e opções de vida a que se tem vindo a aludir, poderá fortalecer-se pela via da ativação das próprias potencialidades. O desenvolvimento pessoal e social torna-se assim numa expressão que abarca dinamismos pedagógicos, onde os diferentes intervenientes participam, partilham e assumem escolhas, riscos e responsabilidades, onde se confrontam diferenças e perspetivas conducentes à reflexibilidade e à autonomia. Porém, como fazem notar Magalhães & Stoer, esta autonomia

Não é redutível a um processo de individualização, no qual o indivíduo se vê confrontado, sem escolha, de não ser mais do que isso mesmo, um indivíduo. É antes no sentido de individuação em que todo o processo emancipatório visa entregar o indivíduo a si próprio (Magalhães & Stoer, 2002: 92).

Este sentido de individuação em desenvolvimento, que acontece ao longo da existência, nos mais variados contextos e relações, possibilita que cada um se sinta produtor ativo do seu próprio desenvolvimento e ao mesmo tempo colaborativo no desenvolvimento dos outros. Em última análise, tal está de acordo com a expressão adotada por Magalhães & Stoer, quando se referem à “reconfiguração da cidadania individual e coletiva” (Magalhães & Stoer, 2002: 95), que não se compadece com um tipo de ensino estandardizado, que informa mais do que enforma (ibidem: 101).