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Mandatos que se colocam à educação no contexto atual

Capítulo III – O papel do DPS e da educação para a cidadania numa sociedade de tensões,

3.1. Mandatos que se colocam à educação no contexto atual

Ao longo de toda a sua história, a educação escolar desempenhou um papel central nos diferentes âmbitos do progresso, nomeadamente ao nível do desenvolvimento humano, social e económico, ora como impulsionadora desse progresso, ora como reprodutora dos sistemas políticos e das instituições. Subjacente a esta evolução, esteve sempre um ideal de pessoa e de cidadania. Atualmente, como afirma Teresa Ambrósio, da Universidade Nova de Lisboa,

Assistimos no contexto nacional e europeu a um conjunto de tendências no campo da educação (como em outros setores de serviços públicos) de desestatização, privatização, desregulamentação, flexibilização. Reclama-se, por outro lado, políticas comuns de educação sobretudo com enorme ênfase no campo da formação profissional e da formação de quadros superiores que valoriza sobretudo a cultura técnica, da estandardização de modelos de formação, de acreditação europeia de

diplomas para garantir a mobilidade da mão de obra qualificada, etc. As escolas constituem-se assim (como meio necessário) para a construção de uma sociedade pós-nacional – o espaço europeu de educação necessário para um possível mercado comum. Porém, o modelo de coesão social e política, que simultaneamente está pressuposto na construção da Nova Europa, reclama igualmente um papel estrategicamente necessário à construção da identidade “europeia”, à formação “cultural”, à formação para a Cidadania Europeia (Ambrósio, 2005: 13).

Neste quadro, a investigadora questiona

Até que ponto as escolas – desde a primária às universidades, agora “desconstruídas” e amplamente orientadas para a formação técnica por um lado e científica, em sentido restrito, porque essencialmente orientadas para a inovação tecnológica, de efeito a curto prazo – estão capazes de assegurar simultaneamente a formação cultural, generalista, garantindo a expressão simbólica e ética? Até que ponto estas expressões, substituídas pelo cientismo, o tecnicismo, o pragmatismo não vão ser o fundo ideológico sobre o qual se constrói a Europa? E que tipo de cidadania se gerará numa sociedade essencialmente baseada no trabalho, que rejeita a reflexão histórica, filosófica, literária, e a cultura humanística? (Ambrósio, 2005: 13).

Estas pertinentes interrogações obrigam a revisitar brevemente o itinerário que nos transporta à compreensão da missão da educação escolar no contexto em que vivemos.

Instruir, educar e socializar têm sido os vetores pelos quais a missão da escola, através do ensino, difunde e recria o saber acumulado pela humanidade permitindo a cada sujeito integrar valores e normas culturais que visam o bem e a justiça social e permite pelo processo educativo a construção da pessoa através da descoberta do sentido de si e da sua identidade. Porém, a relação entre esses vetores funcionais tem evoluído ao longo da história, traduzindo o pensamento educativo da época, dando maior ou menor ênfase à formação do indivíduo pelo ensino/aprendizagem das ciências e tecnologias, ao seu desenvolvimento global enquanto sujeito de cultura e ao cidadão capaz de agir em liberdade no seio das comunidades de pertença.

Esta ligação entre educação escolar e cidadania, presente na história da humanidade ocidental, não foi posta em causa, não obstante, nos discursos sobre educação, se ter ligado à crise das sociedades à crise da educação escolar. Não surpreende, pois, que os vários ensejos de reforma, intentados ao longo das últimas décadas, se venham pautando pela consciência da necessidade de transformações profundas na educação em consequência das demandas sociais, do mercado de trabalho e do desajustamento da escola face às novas exigências (Magalhães & Stoer, 2002).

Atualmente, o desempenho desta demanda exige que as instituições de ensino formem e preparem, de facto, os estudantes, “proporcionando-lhes a obtenção de graus, fornecendo-lhes saberes que lhes permitam integrar-se na vida ativa de forma a exercer tarefas diferenciadas para o desenvolvimento económico e social” (Crespo, 2003: 41). Esta perspetiva evidencia o desenlace entre um elevado padrão de esperança depositado na escola como instituição de educação e formação e o baixo índice de resultados alcançados. De forma incisiva, Thornburg reforça a ideia de que “se não compreendermos como a natureza do trabalho está a mudar, muito dificilmente podemos esperar preparar alguém para a vida fora da escola” (Thornburg, 2002: 5).

Espera-se da escola o que está para além dela, isto é, um possível direcionamento e preparação para o mercado de trabalho. Deste modo a escola assume posição instrumental de um outro fator – a vida ativa – que não ela própria, como se não existisse(m) vida(s) e dinamismo(s) dentro dela. Entretanto, se se atender ao expresso no texto da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI, damo-nos conta de uma mudança de perspetiva e de fundamentos orientadores da educação, seja ela formal ou informal:

Para poder dar resposta ao conjunto das suas missões, a educação deve organizar-se à volta de quatro aprendizagens fundamentais que, ao longo de toda a vida, serão dalgum modo para cada indivíduo, os pilares do conhecimento: ‘aprender a conhecer’, isto é adquirir os instrumentos da compreensão; ‘aprender a fazer’, para poder agir sobre o meio envolvente; ‘aprender a viver juntos’, a fim de participar e cooperar com os outros em todas as atividades humanas; finalmente ‘aprender a ser’, via essencial que integra as três precedentes. É claro que estas quatro vias do saber constituem apenas uma, dado que existem entre elas múltiplos pontos de contato, de relacionamento e de permuta (Delors, 1996: 77).

Esta redefinição de educação assenta, já não na questão da preparação para a vida ativa (preparação para o mundo do trabalho), mas antes numa visão mais lata – a do desenvolvimento humano, entendido como um dos principais papéis reservados à educação e à cultura: “dotar a humanidade da capacidade de dominar seu próprio desenvolvimento” (Delors, 1996: 73). Esta era já também a perceção da UNESCO, em 1998, quando considerava ser função da educação: “promover a educação de cidadãos responsáveis, e fornecer um espaço aberto para as aprendizagens vitais, bem como a preparação para constantes aprendizagens ao longo da vida.” (Crespo, 2003: 43).

Ao assumir esta perspetiva de educação como prioritária, não incorro na ingenuidade de obnubilar outras funções consequentes, nomeadamente aquelas que concorrem, de forma

instrumental, para o desenvolvimento social e económico e que, em última análise, possibilitam e forjam recursos de bem-estar e de realização humanas. Perspetiva-se, no entanto que, no que respeita à função essencial da educação escolar, pré-exista relevância do primado do desenvolvimento humano sobre o do desenvolvimento económico. A constatação deste dado é-nos fornecida pelas manifestas desigualdades sociais e pelos custos humanos e ecológicos que o modelo de desenvolvimento económico (de recurso científico e educacional) das últimas décadas fez evidenciar.

Em abono desta perspetiva, António Nóvoa (1988) dá conta que no atual contexto de rápidas mutações tecnológicas e da desatualização constante dos conhecimentos, de pouco serve fornecer aos indivíduos conhecimentos cuja utilidade pode ser nula amanhã. Para Nóvoa (2006) o sucesso da função educativa atual passa pela capacidade de formar indivíduos capazes de se atualizarem continuamente, de adquirirem novas atitudes e capacidades, de responderem eficazmente aos apelos constantes de mudança. A educação escolar não pode já confinar-se à transmissão de conhecimentos definitivos, mas na sua própria revisão de função, deve perspetivar a preparação de pessoas que elaboram, ao longo de toda a vida, um saber em constante renovação e que aprendam a aprender, a fazer, a viver juntos e a ser.

Em diferentes registos, esta questão tem merecido a atenção de vários investigadores, sobretudo no relacionamento das funções da educação com os dados de abandono escolar e as taxas de retenção (Tavares, 2000, 2002; Carneiro, 2003; Correia, 2000; Simão, Santos & Costa, 2003, 2005; CNE, 2013). Nos últimos anos, a “preocupação” tem vindo a aumentar, sobretudo na retórica política, suportada pelos indicadores da OCDE e da União Europeia, que situam Portugal nos últimos lugares da tabela no que respeita aos indicadores de qualificação dos portugueses (Simão, Santos & Costa, 2005: 21).

Mas, tal como refere Almerindo Janela Afonso (2005), esta ideia de crise da educação escolar é tão antiga como a própria escola e remete (implícita e explicitamente) para condicionantes económicas, sociais e político-ideológicas muito diversificadas e, consequentemente, as explicações produzidas e divulgadas são hoje mais heterogéneas e contraditórias do que em outras épocas e conjunturas históricas.

Uma das explicações por mim assumidas, no que respeita ao trajeto desta investigação, é veiculada por Rui Canário ao referir que este desencanto relativo à crise da escola decorre do “desacordo entre a instituição escolar e a diversidade de expectativas e lógicas de ação, presentes num público escolar cada vez mais diferenciado” (Canário, 2000: 19). Na mesma linha de pensamento Stoer & Araújo (2000) justificam a crise da escola atual com a sua

com a própria promoção de desigualdade por esta mesma escola. De facto, o passaporte escolar também já não conduz às expectativas de inserção social, de igualdade de oportunidades a todos os diplomados no caso do modelo democrático, nem ao equilíbrio garantido pelo Estado entre a oferta e a procura de quadros como no modelo liberal.

Como refere Joaquim Azevedo:

Esperava-se mais igualdade social e mais mobilidade social ascendente, mas convive-se com enormes desigualdades dentro dos percursos escolares; esperava-se, ingenuamente, que todos aprendessem do mesmo modo que a elite que frequentava a escola do passado, mas esse é um objetivo impossível dentro do mesmo quadro institucional escolar de outrora; esperava-se mais capacidade de socialização e encontram-se elevados caudais de insucesso e de abandono escolar; aguardavam-se melhores condições de inserção socioprofissional dos jovens e depara-se com um desemprego crescente de diplomados e com uma crise no valor das credenciais escolares (Azevedo, 2011: 42).

Aceitando estes dados como um dos motivos impeditivos do desenvolvimento pessoal e social e tendo presente que não existe autonomia entre indivíduo singular e cidadão, importa perspetivar possibilidades de superação deste sentir crísico inoperante e aparentemente insolúvel. Na linha do que se tem referido, relativamente à educação escolar entendida como “desafio constante”, adota-se a perspetiva de Rui Canário na construção de um novo sentido para o trabalho escolar, que permita revalorizar o valor do uso dos saberes, por oposição ao seu valor de troca, como a condição de uma resposta pertinente ao défice de legitimidade da instituição escolar (Canário, 2000). Neste sentido, como bem expressa este autor,

A aprendizagem passa a ser reconhecida pelo seu valor de uso, no presente, como forma de ‘ler’ e intervir no mundo e não, sobretudo, pelos benefícios materiais ou simbólicos que promete, no futuro. Consequentemente, a conceção de escola poderá assentar numa estrutura onde se produza, ou seja, onde se aprende pelo trabalho, como forma de criação e realização pessoal, e não o sítio onde se aprende para o trabalho, (…) bem como o espaço onde se ganha o gosto pela política, isto é, onde se vive a democracia, se aprende como ser intolerante com as injustiças e a exercer o direito à palavra (Canário, 2000: 196).

Se é certo que, no decorrer histórico, a educação escolar se encontra vulnerável aos contextos políticos e culturais e às orientações socioeconómicas predominantes em cada época, tal como nos projetos de sociedade (Gómez, 2000; Lima, 2005), a ideia de progresso e de desenvolvimento pessoal e social não pode dissociar-se da sua dimensão teleológica e dinâmica (Sacristán, 2003).

A adoção de uma perspetiva reflexiva e problematizadora da escola pode contribuir para torná-la mais significativa e valorizada na construção dos fundamentos da humanização, condizente com os seus propósitos. Por outro lado, e tal como defende Teresa Ambrósio, atualiza o paradigma humanístico presente na Declaração Universal dos Direitos do Homem e nos Direitos Sociais, que desenvolverão uma cultura, uma ética da era científica e que pressupõe uma afirmação humana em todos os domínios cognitivos e de intervenção em todos os problemas contemporâneos de relação dos cidadãos consigo próprios, com os outros e com a natureza (Ambrósio, 2005: 14).