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As transformações estruturais e socioculturais da globalização

Capítulo I – Pressupostos e tendências das sociedades contemporâneas

1. As transformações estruturais e socioculturais da globalização

No sentido de contextualizar de forma holística a abordagem do desenvolvimento pessoal e social e da cidadania, procura-se neste capítulo, analisar os pressupostos e as tendências da sociedade atual, uma sociedade em constante transformação, onde emergem novas formas e práticas de cidadania, como atributos de realizações pessoais e plurais.

Parte-se do princípio de que a abordagem desses pressupostos e tendências adquire relevo superlativo no campo da educação e, especificamente, da educação escolar, uma vez que se torna impossível separar as vivências/realizações/práticas socioculturais daquelas que são protagonizadas e veiculadas no dia a dia escolar e nos aspetos pedagógicos e didáticos, fazendo coexistir tipologias, paradigmas tradicionais e modernos e formas plurais de vida portadoras de interrogações e propostas educativas.

1. As transformações estruturais e socioculturais da globalização

A par do progresso científico, tecnológico e informacional, com influência real na vida comunitária e individual, assiste-se atualmente e à escala mundial, a uma transformação das estruturas que outrora alicerçavam a vida em sociedade. Refiro-me, concretamente, aos aspetos culturais, políticos, económicos, educacionais, éticos e religiosos, entre outros.

Esta transformação estrutural é, na expressão de Giddens, um processo de mudança acelerada, um “runaway world” (2000: 11), que transporta em si mesma potencialidades de novas formas de estar e de sentir, quer pela atração do novo, quer pela perturbação que trazem às estruturas e processos tradicionais.

Este processo não surge do nada, mas resulta de um percurso histórico evolutivo consequente. Esta perspetiva é reforçada por Alvin Toffler (1980) ao referir-se à “terceira vaga” como a da revolução tecnológica informacional, que inicia uma sociedade pós-industrial, ou seja, uma “vaga” que se sobrepõe à “segunda vaga” da industrialização e à “primeira vaga” da revolução agrária.

Na mesma linha de pensamento, Morin (2002), Waters (2002) e Morin, Motta & Ciurana (2003) reforçam que a era planetária que começamos a viver se desenvolveu pela colonização, pela escravatura, pela ocidentalização e por uma multiplicação das relações e interações entre as diferentes partes do globo. Associada à evolução do conhecimento humano e ao progresso científico e tecnológico no processamento da informação e na comunicação, vive-se,

contemporaneamente, uma transformação estrutural mundial rápida, sustentada por uma crescente interdependência planetária, por via de um aumento cada vez maior de incorporação tecnológica produtora, facilitadora e potenciadora de comunicações e de relações transoceânicas e transnacionais, concretizadas numa enorme circulação, real e virtual, de pessoas e de bens.

Este processo global e complexo, que tem vindo a designar-se por globalização, sobretudo a partir de meados do século XX, tem reunido consenso de utilização e significado em autores como Santos (1994; 2001), Hargreaves (1998), Magalhães (1998) e Giddens (2000). Outros autores, referem-se a este processo como mundialização e internacionalização (Mialaret, 2000) e planetarização (Morin, Motta & Ciurana, 2003).

Em termos globais, e tal como afirma o economista e sociólogo Alexandre Melo, com toda a pertinência, a globalização na sua aceção mais geral e abstrata confunde-se com a história da humanidade, tendo atingido, ao longo do último século e, mais ainda ao longo das últimas décadas, níveis de extensão, de aceleração, intensidade e aprofundamento que, para além de terem gerado a voga de uso da palavra, justificam que se diga que estamos a viver a era da globalização mesmo se, em rigor, esta sempre existiu (Melo, 2002: 24).

Ultimamente, o termo globalização tem vindo a tornar-se um lugar-comum e recorrente na explicação dos processos que condicionam grande parte da nossa vida social, adquirindo significados diferentes e “graus variáveis de precisão” (Robertson, 1994: 28). Este fenómeno, em franca expansão, pode também definir-se como

A intensificação das relações sociais de escala mundial, relações que ligam localidades distantes de tal maneira que as ocorrências locais são moldadas por acontecimentos que se dão a muitos quilómetros de distância e vice-versa (Giddens, 1996: 45).

No entender de Boaventura Sousa Santos, trata-se de “um fenómeno multifacetado com dimensões económicas, sociais, políticas, culturais, religiosas e jurídicas interligadas de modo complexo” que “parece combinar a universalização e a eliminação das fronteiras nacionais, por um lado, o particularismo, a diversidade local, a identidade étnica e o regresso ao comunitarismo, por outro” (Santos, 2001: 32).

Também Aldaíza Sposati afirma que, em si mesma, a globalização não é negativa nem positiva. Quando a globalização se traduz num processo de horizontalização de valores, perspetivas e ética, torna-se altamente positiva. Ao contrário, enquanto processo vertical, revela-se uma nova forma de hierarquização dos cidadãos e de dominação das elites, sendo

muito negativa. A autora considera, ainda, que esta é uma lógica de segregação social, em oposição à lógica da cidadania, na construção de padrões de civismo, em que globalização, igualdade e homogeneidade não se apresentam como processos convergentes (Sposati, 1998). Certo é que, no contexto da atualidade, este processo possibilita, em todos os humanos o desenvolvimento da consciência da vivência num planeta de grandes interdependências, nos campos económico e financeiro, alimentar, da saúde, da segurança ou ambiental e ecológico, entre muitos outros, ou seja, a consciência de que, contemporaneamente, quase nenhum assunto se pode resolver exclusivamente por conta própria nos tradicionais contextos local, regional, ou nacional, apelando a contextos, mais do que internacionais, globais. Somos, como bem identifica Giddens

A primeira geração a viver nesta sociedade, cujos contornos ainda mal conseguimos vislumbrar. É ela que está a agitar a nossa forma atual de viver, qualquer que seja o local em que habitamos (…), está a emergir de forma anárquica, ao acaso, movida por uma mistura de influências” (Giddens, 2001: 29).

A globalização é, assim,

Um processo que transporta cada pessoa e as sociedades para uma possível ordem global, ou para uma ordem que se vive a nível local influenciada pelo global, que se pode caracterizar como uma teia de Interdependências, algumas mais visíveis e percetíveis do que outras e também umas mais desejáveis do que outras (Patrocínio, 2004: 39).

Como sustenta Giddens na obra “O mundo na era da globalização”:

É um erro pensar-se que a globalização só diz respeito aos grandes sistemas, como a ordem financeira mundial. A globalização não é apenas mais uma coisa que «anda por aí» remota e afastada do indivíduo. É também um fenómeno «interior» que influencia aspetos íntimos e pessoais das nossas vidas (Giddens, 2001: 23).

Os acontecimentos marcantes dos últimos tempos da contemporaneidade evidenciam essa interligação/afetação global ou planetária. Efetivamente, a partir das últimas grandes guerras (1914-1918 e 1939-1945) e do fim da Guerra-Fria, o caráter de abrangência mundial tem predominado sobre as visões nacionalistas e regionalistas, transformando consequentemente a ideia de Estado-nação. Na perspetiva de Giddens, o Estado-nação “está a transformar-se diante dos nossos olhos” e “agora que as velhas formas de geopolítica se estão a tornar

obsoletas, as nações veem-se obrigadas a repensar as próprias identidades” (Giddens, 2001:28).

Além de económica, a globalização expande-se, articuladamente, nos domínios tecnológico e cultural numa correlação sinergética e sistémica, sendo que uma é a causa e/ou o efeito das outras e vice-versa (Giddens, 2001). Deste modo, “a intensificação da interação que atravessa fronteiras e as práticas transnacionais corroem a capacidade do Estado-nação para conduzir ou controlar fluxos de pessoas, bens, capital ou ideias” (Santos, 2001: 42-43).

Vários acontecimentos, mostram que a afetação global se evidencia nos domínios público e privado, gerando a consciência da vivência numa teia de interdependências. Cita-se, a título de exemplo, a destruição do muro de Berlim (1989), a enorme instabilidade no Médio Oriente, os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001 nos EUA, a guerra no Iraque ou os atentados de 11 de março de 2004 em Madrid, bem como a atual crise económica e financeira que afeta diversos países europeus, entre os quais Portugal.

Numa visão otimista, Giddens refere-se à globalização como “algo que tem a ver com a tese de que agora vivemos todos num único mundo” (Giddens, 2001: 20). Porém, esta convergência aparente “não está firme nem segura, carrega muitas angústias e está ferida por divisões profundas” (ibidem: 29). Também Federico Mayor, ex-Diretor Geral da Unesco, faz notar essas divisões: “Falar de globalização implica necessariamente a existência daqueles que globalizam e daqueles que são globalizados, ou seja, de uns poucos globalizadores e uma imensa maioria de globalizados” (Mayor, 2001: 90).

Esta é também a perspetiva de Milton Santos, ao definir o atual período histórico como período de crise estrutural em que as soluções que emergem, surgem do exclusivo interesse dos atores hegemónicos, a partir da “forma como a informação é oferecida à humanidade” (Santos, 2000: 38). Constata-se a “emergência do dinheiro em estado puro como motor da vida económica e social” (ibidem: 47), entendidos como uma disciplina da administração das coisas ao serviço do sistema ideológico.

Na mesma linha de pensamento, Paulo Freire refere-se à ditadura do mercado como sustentadora dos discursos ideológicos da globalização, fundada na perversidade do lucro, imposta de forma irreversível em nome do desenvolvimento universal. Este autor considera que o privilégio de uns esmaga os direitos de muitos, transgredindo assim a ética universal em favor da ética pequena – o mercado (Freire, 1997b).