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A CIRCULARIDADE CULTURAL DO SAMBA ENTRE O EQUILÍBRIO

1 INTRODUÇÃO

3.10 A CIRCULARIDADE CULTURAL DO SAMBA ENTRE O EQUILÍBRIO

Pode-se até dizer que havia uma “circularidade cultural”, nos termos de Ginzburg142, entre a cultura das classes subalternas e a cultura dominante no Rio de Janeiro do início do século XX. Entretanto, acredito que o problema é mais complexo.

Não considero essa perspectiva destituída de sentido completamente. Num hipotético exercício mental, se se tomar como verdadeira a afirmação de que às classes econômicas no Brasil das primeiras décadas do século XX no Rio de Janeiro correspondiam culturas

141 CARDOSO FILHO, Marcos Edson. Pelo gramofone: a cultura da gravação e a sonoridade do samba (1917-1971). 2008. 215f. Dissertação (Mestrado em Música) – Escola de Música, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, p. 28.

142 GINZBURG, Carlo.O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Cia. das Letras, 1987.

separadas, é fácil perceber que trocavam elementos entre si, dando uma ideia de “circularidade” entre tais culturas.

Seguindo essa linha de raciocínio, pode-se recorrer à Gilberto Freyre143 para construir uma explicação dos motivos de tal “circularidade”. Como mostra o autor de Casa Grande &

Senzala, a colonização portuguesa no Brasil produziu uma sociedade com características

singulares. A predisposição portuguesa para a miscigenação, que tinha como uma de suas raízes a experiência do hibridismo genético e cultural em virtude da ocupação da Península Ibérica pelos mouros entre os séculos VIII e XV, fez com que a sociedade brasileira se caracterizasse, como mostra Cardoso144, pela plástica noção de “equilíbrio dos contrários”. O Brasil teria construído uma democracia racial, no sentido biológico, que significa dizer que não havia uma barreira na mistura de genes entre os grupos sociais no país, ao contrário do que ocorreu com a colonização inglesa na América do Norte. Isso possibilitou que as classes antagônicas, como senhores de engenho e escravos, desenvolvessem uma relação que não deixava de ser conflituosa, mas que tinha suas tensões de alguma forma lubrificadas, de acordo com Milton Moura145. Tal circunstância permitiu, desde sempre, que as diferentes classes no Brasil tivessem uma aproximação que não dissolvia as diferenças; antes, atenuava o conflito através desse trânsito sexual e cultural. Esta é a base do grande feito que Freyre vê na colonização portuguesa: um país pouco extenso, pouco povoado e com recursos limitados que conseguiu se impor na América com o êxito de colonizar uma área tão vasta como o Brasil e ainda manter sua unidade política. A colonização portuguesa não teria sido tão bem sucedida se, de alguma forma, não se firmasse uma controversa aliança entre os dominadores e dominados.

Numa ótica freyriana, uma “circularidade cultural” é perfeitamente compreensível como um subproduto das especificidades da construção do Brasil, que desde sempre permitiram um maior intercâmbio cultural entre os grupos antagônicos como forma de aliviar as tensões entre os mesmo, embora estas nunca tenham desaparecido em momento algum.

Por sua vez, tomando a noção de “cordialidade” de Holanda146, esta “circularidade cultural” no Brasil seria nada além de um produto da estratégia do brasileiro de o tempo todo buscar fazer alianças para um ganho pessoal. Por esse ponto de vista, o brasileiro é um povo

143 FREYRE, Gilberto. Casa grande e senzala, op. cit.

144 CARDOSO, Fernando Henrique. Um livro perene. In: FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 48ª ed. São Paulo: Global. 2003, p. 19-28. 145 (Informação verbal). O professor Milton Araújo Moura expôs essa interpretação durante o curso sobre Gilberto Freyre ministrado no semestre de 2007.1 para a graduação de Ciências Sociais na Universidade Federal da Bahia.

individualista que buscaria de todas as formas o benefício próprio e que utilizaria as alianças sociais para tais fins. Esse seria o motivo de o brasileiro ser tão propenso a travar amizades com qualquer um, principalmente aqueles em posição social superior, pois uma aliança com os mesmos poderia ser convertida em todo tipo de vantagem. Assim, a “circularidade cultural” seria algo normal no Brasil uma vez que o brasileiro, o “homem cordial” ao construir laços entre os diferentes grupos sociais, “amizades”, tenderia a promover um intercâmbio cultural entre os diferentes estratos da sociedade.

A partir das perspectivas de Freyre e Holanda, a própria história do Brasil explica a facilidade com que o samba foi recebido pelas classes mais abastadas em função das características da própria sociedade brasileira: o “equilíbrio dos contrários” e a “cordialidade”.

3.11 Os limites da noção de circularidade cultural

A noção de “circularidade cultural” pode apresentar certa fecundidade para o estudo do samba; entretanto, seus limites não parecem menos evidentes aos efeitos desta Pesquisa.

Interpreto que não há grupos sociais com prática culturas separadas, mas campos diferentes que, obviamente, são compostos por grupos diferentes nem sempre completamente homogêneos. Por exemplo, no caso da música erudita, não considero correto afirmar que seja um componente exclusivo da cultura da classe dominante, uma vez que indivíduos das classes dominadas podem apreciar e até seguir a carreira de músico erudito, ainda que representem uma minoria. A música erudita é emblematicamente reconhecida como algo da classe dominante, mas o campo da música erudita não está vedado aos grupos mais pobres. Estes encontrarão todo tipo de dificuldade para se legitimarem neste campo, mas isso não torna a tarefa impossível.

Se a música erudita for tomada enquanto um campo, em vez de simplesmente um componente da “cultura da elite”, o que percebo é que as disposições para o entendimento e apreciação dessa música são construídas majoritariamente no habitus dos integrantes das chamadas elites. A reprodução dessas disposições, atreladas à educação e ao ambiente social, exatamente por envolver muito tempo para serem construídas, raramente contemplam

indivíduos das classes populares por faltar-lhes esse componente educativo e social147. Os que não foram agraciados com a reprodução familiar e de classe dessas disposições ainda assim podem se interessar por essa música em função dos mais diversos motivos, como o acúmulo de capital social, econômico, simbólico etc. proporcionados por esta prática artística148.

O interesse “tardio” obriga aqueles que não fazem parte da fração de classe representativa da música erudita, grupo no qual a reprodução do habitus para agir no campo da música erudita está mais bem desenvolvido, a percorrer o caminho mais difícil, qual seja, buscar uma educação “corrida”, muito aquém da educação “legítima”. Enquanto os que percorrem o caminho da educação tardia precisam demandar muito esforço para entender as regras deste campo, aqueles que foram educados nos trâmites dos processos legítimos agem no mesmo como se respaldados por uma competência natural. Na verdade, na educação legítima, as disposições para identificação e apreciação dos códigos da música erudita foram sendo elaboradas ao longo de anos por estímulos diários que tornaram “naturais” o contato, o gosto e a facilidade de lidar com esta música. Por isso, os que se interessam por música erudita e não tiveram a educação própria para isso se vêem diante de duas possibilidades: apreciar a música erudita de forma vulgar, sem entender o código fechado aos iniciados nesta arte, ou buscar através de uma educação “corrida” a construção dessas disposições de forma ativa, o que provavelmente não produzirá a mesma competência dos “legítimos” quando se tratar de agir no campo em questão149.

De acordo com esse ponto de vista, em vez de culturas diferentes trocando elementos entre si, o que proponho como mecanismo de explicação das dinâmicas estudadas é a configuração de campos nos quais os conflitos entre os agentes que disputam legitimação produzem um permanente processo de mudança. A construção da legitimidade num campo tanto pode se pautar em seguir as regras do mesmo quanto buscar impor aí novas regras. Por isso, o campo está sempre em mudança e sempre despontam novos princípios de legitimação em função da alteração das forças internas que aí atuam.

No caso do samba, se se tomar a ideia de “circularidade cultural”, o samba teria de alguma forma passado a circular nos grupos mais abastados mesmo sendo produto dos grupos mais pobres, ou seja, seria um movimento de baixo para cima, do samba “subindo” socialmente. Se a interpretação for realizada a partir da noção de campo, o movimento que

147 BOURDIEU, Pierre. A distinção, op. cit. 148 Idem.

observo é inverso.

Na indústria cultural, a alta possibilidade de conversão do capital artístico em capital social e econômico, em fama e dinheiro, é suficientemente atrativa para incentivar uma migração dos músicos dos campos atrelados às classes dominantes, como aqueles dos círculos eruditos, para campos compostos majoritariamente por grupos populares, como o do samba, já que o repertório correspondente a este campo alcançava amplo sucesso junto à população mais pobre. Este sucesso se dava em função de ser a população carioca, neste período, formada majoritariamente por pobres negros e/ou mestiços de baixa escolaridade com pouco acesso ao repertório erudito. Por isso, estava mais predisposta a consumir em larga escala uma música que lhe fosse mais próxima.

O atrativo de poder se tornar famoso e ganhar dinheiro com a música se colocava como uma força que promovia esse “intercâmbio cultural entre classes”, que na verdade era a entrada de músicos de outros campos no campo do samba, inclusive com migração de músicos de campos musicais emblematicamente atrelados à fração de classe mais rica da sociedade.

Dessa forma, os artistas perceberam que o campo do samba havia crescido e tinha surgido a possibilidade de obter bons “lucros” de diversos tipos de capitais no mesmo e, assim, deslocaram-se para este espaço social.

Nesse processo, obviamente, uma vez tendo que competir no campo do samba, estes novos sambistas buscaram impor novos princípios de legitimação que, por sua vez, podiam ser, inclusive, princípios legitimadores homólogos e/ou análogos àqueles de outros campos.

Um músico erudito que migrasse para o campo do samba não teria como abandonar completamente suas antigas formas de tocar para adotar exclusivamente as novas. Isso se dá em função de que estas antigas formas de tocar eram disposições duráveis no habitus desses músicos. Ainda que essas disposições estivessem atreladas a regras de outro campo, não seria possível livrar-se completamente das mesmas num curto período de tempo, pela força do habitus.

Ao entrarem no campo do samba, essas antigas formas de tocar no campo erudito acabavam se amalgamando às formas de tocar já praticadas nesse novo campo; misturavam- se e de certa forma se fundiam regras observadas em campos distintos, embora isto pudesse se observar, também, no interior do campo do samba. No contexto de disputa, o que se pode observar é que novas regras iam surgindo no campo do samba mediante a atuação dos músicos que precisavam o tempo todo se diferenciar uns dos outros. Assim, alguns músicos

que migraram do campo da música erudita lograram impor princípios legitimadores próprios do campo da música erudita no campo do samba.

A interpretação de Vianna150 a partir do conceito de mediadores culturais leva à proposição de que a elite tomou conhecimento do samba e que o mesmo sofreu uma “elevação cultural” rumo à elite. Ora, de acordo com o ponto de vista que defendo nesta Pesquisa, os mediadores culturais, se tiveram o papel de apresentar o samba à elite, promoveram uma migração de elementos da elite para a arena do samba. Não foi o samba que sofreu uma “elevação cultural” rumo à cultura de elite, promovendo a sensação de que a cultura do pobre ganhou elementos da cultura dos ricos e, numa proporção menor, vice-versa. Se se olhar a questão através da noção de campo, foi o campo do samba que se expandiu com a migração promovida pelas suas possibilidades de acumulação de capitais. Neste processo, muitos músicos “estrangeiros” trouxeram para o campo do samba novas regras e novos princípios de legitimação.