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A REPRODUÇÃO DO HABITUS DO MALANDRO: A

1 INTRODUÇÃO

4.7 A REPRODUÇÃO DO HABITUS DO MALANDRO: A

Entendo que o processo observado de modo singular no Rio de Janeiro do início do século XX pode ser compreendido da seguinte forma: um grupo que ocupava uma posição desfavorecida no campo econômico e social acentuou um conjunto de disposições para agir (aversão ao trabalho, facilidade de construir amizades e individualismo) de tal forma que ocasionou o surgimento do malandro como negação radical do mundo moderno (na acepção

de Bauman)206 que começava a se implantar no Brasil.

Este processo pode ser compreendido mediante pelo menos duas linhas de interpretação: na primeira, o malandro é o produto de um grupo excluído que desenvolveu estratégias de sobrevivência que burlavam algumas regras sociais. Na segunda, o malandro é um tipo de indivíduo que desenvolveu patologias sociais no sentido durkheimiano e, por isso, não conseguia se adequar ao mundo em que vivia, sendo esta a interpretação das autoridades governamentais, em especial aqueles do primeiro período getulista. Qualquer que seja o viés conferido ao entendimento do malandro, é preciso estar atento para este ponto: malandro é nome do produto, experiência e atuação de um grupo e de condições sócio históricas específicas.

A construção dessas disposições acentuadas envolve um ambiente social, localizado originariamente nos lugares mais pobres do Rio de Janeiro – em especial, o morro carioca –, que se tornou o maior emblema do espaço social do malandro. A vida neste tipo de ambiente envolvia situações diárias nas quais os indivíduos mantinham essas disposições formadas e reforçadas a ponto de adquirem força no habitus.

É a partir desse ponto que me proponho falar acerca da malandragem.

Caldeira207 identifica na malandragem um tipo de escola de vida que ensinava ao pobre excluído como sobreviver numa sociedade na qual suas possibilidades de ascensão eram por demais restritas.

Aos efeitos desta reflexão, o malandro é eminentemente aquele que possui o habitus do malandro, que por sua vez seria o habitus do brasileiro com algumas disposições para agir acentuadas. Por malandragem, compreendo o processo de reprodução do habitus do malandro que envolve as práticas diárias que constroem e reforçam estas disposições para agir como algo durável.

A malandragem pressupõe, ao longo do tempo, a vida social, o habitus e o campo para agir, envolve o dia-a-dia, as disputas por capital, as estratégias de sobrevivência, o espaço social, o aprendizado e o discurso do malandro. Este último é certamente um dos fatores mais importantes para se compreendê-la.

Neste sentido, aquilo que poderia ser chamado de “discurso do malandro” corresponde a um tipo de narrativa presente no cotidiano do grupo produtor do malandro que não apenas apresentava o que era o malandro, sua forma de agir e de entender o mundo;

206 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência, op. cit.

trazia um conteúdo valorativo que normalmente o caracterizava como um tipo de propaganda afirmativa. O aprendizado da malandragem, então, se faria através de um tipo de educação diferente daquela correspondente à educação oficial da escola formal. Como aponta Noel Rosa, em Feitio de Oração: “Ninguém aprende samba no colégio”208.

4.8 A malandragem enquanto emblema do Rio de Janeiro

O que talvez pareça mais curioso na malandragem é que o discurso do malandro não ficou restrito ao seu grupo de origem. Tal discurso é um componente no processo de reprodução do habitus do malandro. O que aconteceu foi que muitos malandros levaram a indústria fonográfica para o universo da malandragem, ou seja, incorporaram a indústria cultural ao processo de reprodução do habitus do malandro. Assim, os artistas do morro reproduziram o discurso do malandro nas suas músicas e estas, por sua vez, ganharam os ouvidos da população através do disco e do rádio.

Não era mais necessário conviver diretamente com um malandro para saber no que consistia ser malandro. Seu discurso não estava mais restrito ao espaço social de atuação do malandro. Ao adentrar a indústria cultural, o malandro levou para todo o Rio de Janeiro suas aventuras, dramas e contravenções.

A população do Rio de Janeiro ouviu o que o malandro tinha a dizer e se reconheceu em certa medida em seu discurso. Neste momento, o malandro deixa de ser apenas um tipo de indivíduo excluído e problemático para se tornar uma “sinédoque de uma auto- representação que faz do Rio de Janeiro uma daquelas cidades em que a configuração explícita do próprio perfil é uma atividade que mobiliza boa parte de seus moradores”209. À malandragem foi atribuído um significado cultural210 que a tornava algo maior: um emblema do próprio Rio de Janeiro.

O discurso do malandro é um produto do grupo excluído proveniente do morro. Entretanto, este discurso ganha força, pois mesmo quem não era do morro podia identificar neste discurso elementos que diziam respeito ao Rio de Janeiro como um todo. A malandragem, enquanto processo de reprodução do habitus do malandro, envolvia a

208 Noel Rosa. Feitio de Oração, 1933. Ver anexo A15. 209 MOURA, Milton. Carnaval e baianidade, op. cit., p.81. 210 MATOS, Cláudia. Acertei no milhar, op. cit.

constituição socio-histórica do Rio de Janeiro, bem como o seu cotidiano.

O habitus do malandro pode ser assim compreendido como o habitus do próprio brasileiro com alguns elementos radicalizados, postos em primeiro plano, o que permitia uma percepção do malandro como alguém que de alguma forma apresentava elementos comuns a aos brasileiros, de modo geral.

Exemplificando estas afirmações: Noel Rosa, em 1932, na composição Coisas

Nossas211, lista um conjunto de elementos que, como o próprio título da música diz, seriam coisas do carioca, e aí estão presentes o samba e o malandro.

[…]

Malandro que não bebe, Que não come,

Que não abandona o samba Pois o samba mata a fome, Morena bem bonita lá da roça, Coisa nossa, coisa nossa

O samba, a prontidão E outras bossas, São nossas coisas, São coisas nossas!

Baleiro, jornaleiro

Motorneiro, condutor e passageiro, Prestamista e vigarista

E o bonde que parece uma carroça, Coisa nossa, muito nossa

[…]

São coisas nossas, Noel Rosa, 1932.