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1 INTRODUÇÃO

3.5 O SAMBA COMO FESTA IMPROVISADA

Voltando à discussão em torno do samba anterior à indústria cultural, para Matos111, que chama esse samba tanto de “folclórico” quanto de velho samba, embora também possa ser chamado de samba de terreiro, o traço principal do mesmo era a dança. Outra característica era o fato de não haver uma letra fixa; a mesma era mutável, baseando-se num ciclo composto normalmente por um refrão consagrado alternado com estrofes construídas de forma improvisada.

Essa descrição do samba anterior à indústria cultural oportuniza um melhor entendimento da música Pelo Telefone112, lançada em 1916. Este foi um dos primeiros sambas gravados, tendo sido registrado como “samba carnavalesco”, embora não seja possível afirmar que tenha sido o primeiro samba gravado, pois, segundo Ribeiro113, outros dois sambas foram gravados respectivamente em 1911 e 1913. É possível que muitas outras músicas que poderiam ser entendidas como sambas tenham sido gravadas anteriormente, com denominações diferentes, pois a definição da música por gênero/estilo não consegue alcançar uma precisão exata.

Muitas marchas e maxixes que poderiam ser categorizados como samba, ou seja, que estariam de acordo com um número suficiente de regras do campo do samba para que pudessem ser reconhecidas como pertencentes a este mercado, podem não ter recebido esse nome antes de o samba passar oficialmente a se inserir nas dinâmicas da indústria cultural, quando este começou a se configurar como um campo de proporções mais amplas. Antes de o samba se tornar um produto na indústria cultural, poderia não fazer sentido gravar e registrar uma música com tal denominação, pois não havia um mercado do samba organizado no qual tais composições pudessem concorrer.

Este samba “folclórico”, como afirma Paranhos114, tinha funções lúdicas e religiosas. Estava atrelado a um contexto festivo. Não reunia as características de um campo no qual os sambistas pudessem disputar pelo capital deste mercado (legitimidade) para, possivelmente, tentar convertê-lo posteriormente em outros capitais, como o social e econômico.

111 MATOS, Cláudia Neiva de. Gêneros na canção popular, op. cit. 112 Donga. Pelo telefone, 1916. Ver anexo A2.

113 RIBEIRO, Manoel Pinto. As formações discursivas sobre a mulher na música brasileira (1930-1945). 2007. 338f. Tese (Doutorado em Letras) – Instituto de Letras, Universidade Federal Fluminense, Niterói. 114 PARANHOS, Adalberto. A invenção do Brasil como terra do samba, op. cit.

Segundo Tinhorão115, Pelo Telefone foi registrado por Donga, que ficou como o seu autor, mas foi construída a partir do aproveitamento de algumas estrofes ouvidas repetidamente em festas. Posteriormente, o arranjo foi ampliado e novos versos adicionados com a ajuda do repórter Mauro de Almeida.

Essa descrição do processo de construção de Pelo Telefone está em harmonia com o relato de Severiano116. Este autor afirma que Pelo Telefone provém de um quintal, localizado numa residência da Rua Visconde de Itaúna, número 117, onde vivia a baiana Hilária Batista de Almeida, a Tia Ciata, no qual uma roda de batuqueiros, no ano de 1916, composta por diversas pessoas, entre eles Donga, Germano Lopes da Silva, Hilário Jovino Ferreira, Sinhô, João da Mata e a própria Tia Ciata, desenvolveu, ao longo de seguidas noites, uma música intitulada “O Roceiro”, que foi registrada por Donga no mesmo ano como Pelo Telefone.

Essa descrição do processo de construção de tal composição mostra que o mesmo ainda partilha de características do samba anterior à indústria cultural, como o propósito lúdico117, já que foi composto nas rodas de batuque de festas, e a mutabilidade da letra118, que mostra que tal composição foi feita a partir da improvisação.

Trago as quatro primeiras estrofes, de um total de dez, de Pelo Telefone:

O chefe da folia

Pelo telefone manda me avisar Que com alegria

Não se questione para se brincar Ai, ai, ai

É deixar mágoas pra trás, ó rapaz Ai, ai, ai

Fica triste se és capaz e verás Tomara que tu apanhe

Pra não tornar fazer isso Tirar amores dos outros Depois fazer teu feitiço Ai, se a rolinha, sinhô, sinhô Se embaraçou, sinhô, sinhô É que a avezinha, sinhô, sinhô Nunca sambou, sinhô, sinhô Porque este samba, sinhô, sinhô

115 TINHORÃO, José Ramos. História social da música popular brasileira. São Paulo: Ed. 34, 1998. 116 SEVERIANO, Jairo. Uma história da música popular brasileira, op. cit.

117 PARANHOS, Adalberto. A invenção do Brasil como terra do samba, op. cit. 118 MATOS, Cláudia Neiva de. Gêneros na canção popular, op. cit.

De arrepiar, sinhô, sinhô Põe perna bamba, sinhô, sinhô Mas faz gozar, sinhô, sinhô […]

Pelo Telefone. Donga, 1916.

Como pode ser percebido, não há conexão entre quaisquer estrofes da composição. A primeira estrofe, cujos versos originais eram “O chefe da polícia pelo telefone mandou avisar que na Carioca tem uma roleta para se jogar”, falava da relação clandestina entre o Estado e a contravenção colocada na imagem do chefe da polícia indicando onde havia uma roleta – jogo ilegal –, o que obviamente precisou ser substituído para não gerar problemas. Tal passagem tem um caráter urbano, indicado pelo telefone.

Por sua vez, a quarta estrofe tem uma conotação nitidamente suburbana, senão rural; portanto, bem distinta daquela do Largo da Carioca.

A terceira estrofe tem um caráter moralizante, através da ameaça de coação punitiva física em função da prática socialmente repudiada de interferir no relacionamento alheio. Este conteúdo evidencia, agindo através da música, a coerção durkheimiana119, ou seja, neste caso, a arte serve também como instrumento de imposição das normas morais coletivamente determinadas. Numa visão bourdiana, a música está reforçando, através da contínua repetição da informação sonora, disposições para agir no habitus dos ouvintes, reproduzindo as regras do campo social que dizem respeito às boas condutas. Um indivíduo será bem quisto, legitimado como alguém “de bem”, se seguir tais regras do campo social. Do contrário, será repudiado, perseguido, caracterizado como um marginal no campo social, alguém com baixo capital, com pouca legitimação, que não deve ser respeitado, que é o caso exposto na passagem em questão.

A segunda estrofe, contrastando com a mensagem da terceira, é uma mensagem positiva de que não se deve guardar mágoas, que se deve buscar ser feliz.

Tendo em vista a disparidade temática contida na sua letra, é bastante razoável interpretar a composição como uma colagem de diversas estrofes feitas de improviso num ambiente festivo por diversas pessoas ao longo de um período indeterminado de tempo. Dessa forma, Pelo Telefone evidência, de muitas maneiras, o que era o samba em seu estado “folclórico” anterior à indústria cultural.

Isto considerado, o samba em estado “folclórico”, ou samba improvisado, não constitui um campo; o campo do samba é que emerge do samba improvisado.

Enquanto campo, o samba é capaz de englobar diferentes vertentes musicais concorrentes, como o maxixe e a marcha. O que se pode aduzir, nesta reflexão, é que, quando um autor reporta determinada composição como “samba”, “maxixe” ou “marcha”, pode estar utilizando critérios outros que não aqueles de que se serve outro autor.

Quando Pelo Telefone foi gravado, muitos músicos perceberam que aquela composição alcançou boa receptividade diante do público e, o mais interessante, a mesma era parecida o suficiente com outras músicas que já circulavam no mercado musical, como o maxixe, com a vantagem de ser apresentada como algo novo sem o estigma de marginal. Assim, gravar suas composições como samba tinha duas vantagens: a novidade e a ausência do estigma. Por isso, houve uma migração de artistas para o rótulo do samba o suficiente para que o mesmo fosse transformado em campo, em um mercado próprio.