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1 INTRODUÇÃO

4.4 O MALANDRO

Antes de tudo, o malandro é aquele que não gosta de trabalhar. Entretanto, esta característica não é suficiente para defini-lo por completo. Se se tomarem as categorias de Durkheim177 de normal e patológico, o fato de não gostar de trabalhar, em função da constituição socio-histórica do Brasil, por mais controverso que possa parecer, deveria ser enquadrado na ideia de normal. Em função de o trabalho ter se constituído historicamente como um estigma no Brasil, o patológico seria justamente o gostar de trabalhar... Ou ainda, utilizando o referencial de Foucault, aquele que não gosta de trabalhar não poderia ser considerado um anormal178 no início do século XX no Brasil. Este repúdio ao trabalho, que de certa forma ainda se apresenta como uma disposição durável no habitus179 do brasileiro, não é o único componente do malandro, mas é um dos seus principais.

Segundo Moura, o malandro é alguém “a quem 'não interessa trabalhar' e sobrevive às custas de estratégias que lhe permitem deslizar por entre os espaços preenchidos pelos

177 DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. op. cit. 178 FOUCAULT, Michel. Os anormais. São Paulo: Martin Fontes, 2001. 179 BOURDIEU, Pierre. Razões práticas, op. cit.

trabalhadores”180

. O malandro busca viver sem o trabalho formal, que seria a atividade com jornada definida de um número determinado de horas por dia, sob a fiscalização de alguém, com função pré-definida, para conseguir uma remuneração no final do mês. O malandro é radicalmente avesso à regularidade, às horas marcas, aos compromissos definidos etc. Desta forma, era um impedimento à modernização181 do Brasil perseguida, em especial, pelo Estado Novo na década de 1930.

O malandro também busca viver sem o trabalho dito informal. Mesmo as atividades como prestação de serviços ou a gestão de um pequeno empreendimento como a venda de produtos acessíveis aos mais pobres, como frutas em feiras, não encontram recepção no malandro. Toda a lógica capitalista do acúmulo de capital, investimento, gestão, lucro e reinvestimento visando mais lucro exige uma pulsão pelo trabalho que o malandro não suporta e ao qual resiste usando das mais diversas estratégias.

Dessa forma, como sobrevive o malandro? Érnica182 aponta um “jogo de cintura” da figura do malandro para driblar as adversidades, sendo que a principal delas seria conseguir seu sustento. A resposta para tal questão é que o malandro retira de outras pessoas os recursos que necessita. O malandro só pode ser entendido satisfatoriamente como antítese do trabalhador. Entretanto, acredito que um binômio que explicasse a possibilidade e a lógica do malandro não deveria ser o de malandro x trabalhador, mas o de malandro x otário. Na gíria carioca, dir-se-ia malandro x mané.

É certo que o malandro é o oposto do trabalhador no sentido que não suporta a racionalização, a subordinação e as regularidades impostas por esta atividade, mas só se torna possível com o “otário”, alguém do qual é possível se tirar proveito. Os malandros seriam um grupo “que consegue sobreviver às custas dos outros (dos 'otários'), usando de expedientes mais ou menos ilícitos”183

. Ou seja, para sobreviver, o malandro precisa se aproveitar de alguém, enganar, para conseguir o dinheiro dessa pessoa.

Em função dessa característica é que o malandro pode ser definido como aquele que vive entre os espaços ocupados pelos trabalhadores e ser aquele que desliza pelos interstícios

180 MOURA, Milton Araújo. Carnaval e baianidade: arestas e curvas na coreografia de identidades do carnaval de Salvador. 2001, p. 101. 370f. Tese (Doutorado em Comunicação e Cultura Contemporâneas) – Faculdade de Comunicação, Universidade Federal da Bahia, Salvador. , p. 101.

181 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência, op. cit.

182 ÉRNICA, Maurício. Batucada de bamba, cadência do samba: a formação de uma brasilidade crítica conservadora. 1999. 292f. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas.

183 MATOS, Cláudia Neiva de. Acertei no Milhar. Samba e Malandragem no Tempo de Getúlio. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982, p. 77.

do mundo social184. Por isso, o malandro quase sempre beira alguma atividade de contravenção, sendo muitas vezes visto com maus olhos pela sociedade e pelo Estado.

O malandro é antes de tudo um egoísta na concepção que Durkheim185 dá ao termo. Pensa em si mesmo em primeiro lugar e o faz de uma forma perigosa para a sociedade. Não tem receio de prejudicar outras pessoas para concretizar os seus interesses. Uma vez que não produz, nada acrescenta; é uma figura de caráter negativo para a coletividade, pois precisa tirar sem dar algo em troca para sobreviver. É portador de uma liberdade prejudicial à coletividade, que lhe permite fazer o que quiser através de seus artifícios, mesmo que isso signifique sempre que outra pessoa saia perdendo.

Nessa perspectiva, o malandro é um componente anômico numa sociedade de solidariedade do tipo orgânico que precisa que cada indivíduo desenvolva suas atividades em complemento àquelas dos demais para que todos possam se beneficiar e – o mais importante aos efeitos desta reflexão – uma sociedade que precisa que cada um tenha um senso moral de respeito por si e pelo outro, um individualismo moral, que permita que a vida coletiva seja cada vez menos conflituosa186.

Por outro lado, não seria correto apresentar o malandro apenas enquanto um contraventor qualquer, uma vez que o mesmo também se vale “das relações baseadas na afetividade”187

; ou seja, é fruto da sociedade brasileira que sempre buscou amenizar seus conflitos através da lubrificação conferida pelas relações afetivas e sexuais, pelo cultivo cuidadoso das relações de vizinhança, apadrinhamento, amizade etc.188 O malandro também é aquele que busca resolver seus problemas aproveitando-se desses mesmos mecanismos que aproximam as pessoas com tanta facilidade no Brasil e, talvez por isso mesmo, permite que muitas vezes haja uma maior vulnerabilidade dos outros perante as artimanhas de alguém que tira proveito dessas interações afetivas.

Quando se usa o termo malandro também para definir os membros da classe dominada caracterizados por suas especificidades, há aqueles que veem o malandro, em certa medida, como uma vítima.

Enquanto pobre, egresso de um grupo que vê no trabalho assalariado a mesma forma de exploração da escravidão e que não possui nenhum apoio ou incentivo do Estado para sua

184 MOURA, Milton Araújo, op.cit.

185 GIDDENS, Anthony. Durkheim e a questão do individualismo moral. In: ______. Política, sociologia e

teoria social. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998, p.147-168.

186 DURKHEIM, Émile. Da divisão do trabalho social. São Paulo: Martin Fontes, 2008. 187 ÉRNICA, Maurício. Batucada de bamba, cadência do samba, op. cit., p. 5.

inserção na sociedade, o malandro é visto também como aquele que busca “soluções individualizadas de dramas cotidianos por meio de vínculos pessoais”189

. Esta perspectiva considera que o malandro não teria encontrado outra saída senão repudiar o trabalho e fazer uso de todas as ferramentas, incluindo aí as relações afetivas, para tentar sobreviver, mesmo que necessite fazer isso às custas dos outros.

Dessa forma, ora o malandro pode designar características pejorativas, como práticas moralmente reprováveis, quando não ilícitas, ora pode designar uma estratégia de sobrevivência, um “jogo de cintura” que permite ao pobre desfavorecido sobreviver numa sociedade que não lhe oferece oportunidades.