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PROBLEMAS DA IDEIA DE GÊNERO MUSICAL

1 INTRODUÇÃO

3.2 PROBLEMAS DA IDEIA DE GÊNERO MUSICAL

O estudo sobre música que parte da ideia de gênero/estilo envolve a busca contínua de uma tipificação para que se possa enquadrar a expressão artística em determinados rótulos. Entretanto, esse processo não deixa de apresentar problemas.

Tomando inicialmente a conceituação do gênero do samba do início do século XX de Matos82 acima reportada, definir a malandragem enquanto a temática do samba é esquecer de todo o conflito entre a malandragem e o trabalhismo que envolveu os sambistas e o Estado brasileiro nas décadas de 1930/1940.

O paradigma rítmico ao qual a Matos83 se refere também é passível de

79 BAIA, Silvano Fernandes. A historiografia da música popular no Brasil (1971-1999). 2010, 279f. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo.

80 Idem, ibidem, p.12.

81 MATOS, Cláudia Neiva de. Gêneros na canção popular, op. cit. 82 Idem.

questionamento uma vez que a definição rítmica do samba também foi ponto de conflito. O próprio critério de definição do samba a partir do paradigma fundado na percussão não permitiria que Pelo Telefone84, um marco para a formação e consolidação do campo do samba, gravado em 1916, pudesse ser classificado como pertencente a tal gênero, uma vez que sua produção não utilizou instrumentos de percussão por limitações tecnológicas na captação do som.

Por fim, o que Matos85 chama de contexto cultural do samba, o carnaval, não deixa de constituir outro ponto de confusão, pois desconsidera a grande variação de outros ritmos que figuram no carnaval, como o frevo e a marchinha carnavalesca, além de não levar em conta que houve um processo longo até que samba se consolidasse como a música emblemática do carnaval. A própria autora86 acaba reconhecendo que tal conceituação de gênero do samba se aplica à maioria das músicas que são chamadas de samba no período referido, e não à sua totalidade.

A ideia de gênero musical está atrelada inexoravelmente à busca de uma exatidão na definição dos elementos que compõem as músicas estudadas. Tal exatidão acaba forçando o pesquisador a investir numa eterna produção de gêneros para definir qualquer variação nas músicas estudadas.

Em função de tais circunstâncias, torna-se difícil falar em um único gênero de samba, pois há variações nítidas em muitas músicas tidas como sambas. Tais variações são perceptíveis tanto quando se comparam sambas de uma mesma época como de períodos diferentes; ou seja, tanto numa perspectiva sincrônica quanto diacrônica.

O samba-enredo, de acordo com Lopes87, é “uma modalidade de samba que consiste em letra e melodia criadas a partir do resumo do tema elaborado como criação: falavam da natureza, do próprio samba, da realidade dos sambistas”88

, enquanto que a Enciclopédia da Música Brasileira89 define samba de gafieira como “modalidade de samba de ritmo sincopado, geralmente apenas instrumental, feito para dançar, criado durante a década de 1940 pelas orquestras de salões de danças públicas”90

. Nessa mesma enciclopédia, constam

84 Donga. Pelo Telefone, 1916. Ver anexo A2.

85 MATOS, Cláudia Neiva de. Gêneros na canção popular, op. cit. 86 Idem.

87 LOPES, Nei. A presença africana na música popular brasileira. Artcultura, Uberlância, n. 9, p. 46-55, jul./dez. 2004.

88 Idem, ibidem, p. 53.

89 ENCICLOPÉDIA DA MÚSICA BRASILEIRA: popular, erudita e folclórica. 3ªed. São Paulo: Art Editora; Publifolha, 2003.

nada menos que 21 tipos de samba, quais sejam: samba carnavalesco, samba de breque, samba de exaltação, samba de gafieira, samba de partido-alto, samba de quadra, samba de terreiro, samba-batido, samba-canção, samba-choro, samba-chulado, samba-corrido, samba- de-chave, samba-de-lenço, samba-enredo, samba-exaltação, sambalada, sambalanço, samba raiado, sambão e sambolero.

A noção de gênero musical tende a gerar uma nítida fragmentação entre as tipificações e costuma manter aversão a qualquer inexatidão. O problema é que a imprecisão costuma acompanhar este tipo de definição. O mesmo nome pode ser usado de diferentes formas, a depender do sentido em que é empregado. Saussure91, com sua clássica divisão dos signos em significante e significado, mostra como a mesma palavra pode ter qualquer tipo de conteúdo.

De acordo com Gomes92, o termo samba “estava longe de ter um sentido claro nos anos 20 e ainda era aplicado a ritmos rurais ou usado no sentido mais amplo de festa ou dança”93

. Um exemplo disso é a relação entre samba e maxixe. O maxixe, de acordo com Severiano94, surgiu no final do século XIX e, segundo Faour95, é uma dança proveniente dos guetos mais pobres e excluídos do Rio de Janeiro, região em que se encontravam negros recém libertos tidos como a escória máxima da sociedade brasileira. O maxixe possuía em sua coreografia o que o autor chama de alto teor libidinoso, o que fez com que fosse considerado imoral, de última categoria e contrário à decência, ao pudor, pelas elites. Isto fez com que o maxixe acabasse sendo perseguido pela polícia, intelectuais e autoridades.

Tal perseguição, ainda de acordo com Faour96, fez com que muitos compositores, como Chiquinha Gonzaga e Sinhô, para não assustarem seus consumidores, mudassem o rótulo dos maxixes que compunham para samba, no caso de Sinhô, e tango ou tango brasileiro, no caso de Chiquinha Gonzaga.

De acordo com Severiano97, no período inicial do samba, que o mesmo toma como se estendendo entre 1917 e 1928, há uma forte influência do maxixe, influência esta que o autor considera como positiva, pois permitiu que o samba fosse rapidamente aceito pelo público.

91 SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de linguística geral. op. cit.

92 GOMES, Tiago de Melo. O mistério do samba. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 42, p. 525-530, 2001. Resenha de: VIANNA, Hermano. O Mistério do Samba. Rio de Janeiro: Zahar/UFRJ, 1995.

93 Idem, ibidem, p. 529.

94 SEVERIANO, Jairo. Uma história da música popular brasileira: das origens à modernidade. São Paulo: Editora 34, 2008.

95 FAOUR, Rodrigo. História sexual da MPB. Rio de Janeiro: Record, 2006. 96 Idem.

Este podia aproveitar uma música dançante, sacudida e sensual, sem se preocupar com o rótulo imoral do maxixe.

Sandroni98 vai mais além e afirma que os primeiros sambas, do ponto de vista rítmico e instrumental, eram antes maxixe que samba.

Provavelmente, o mais emblemático exemplo de que não há um consenso a respeito das características rítmicas do samba é um diálogo retratado por Cabral99 entre dois dos maiores nomes do samba – Donga e Ismael Silva –, no qual surge a interrogação sobre o que seria o samba. Donga afirma que os parâmetros que definem o samba são aqueles que se encontram em uma composição sua, Pelo Telefone100. Ismael Silva discorda e afirma que

Pelo Telefone não é samba, é maxixe. Naturalmente, Donga então inquire Ismael Silva a

respeito do que seria o samba e este afirma que o samba é o que está na sua música Se Você

Jurar101; dessa vez, é Donga quem discorda, afirmando que tal composição seria uma marcha.

O chefe da folia

Pelo telefone manda me avisar Que com alegria

Não se questione para se brincar [...]

Pelo Telefone, Donga, 1916.

Se você jurar que me tem amor Eu posso me regenerar

Mas se é para fingir, mulher A orgia assim não vou deixar [...]

Se você jurar, Ismael Silva, et. al., 1930.

É importante ressaltar que ambas as músicas citadas pelos sambistas são consensualmente conhecidas como clássicos do samba.

98 SANDRONI, Carlos. Feitiço Decente, op. cit.

99 CABRAL, Sérgio. As Escolas de Samba do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Lumiar, 1996. 100 Donga. Pelo telefone, 1916. Ver anexo A2.

Se dois grandes sambistas não conseguem entrar em acordo a respeito do que seria o samba, pode-se inferir que a tarefa de encontrar uma única forma musical que dê conta de tal definição é no mínimo ingrata, senão inexequível. Resultam nítidos, assim, os limites do conceito de gênero musical.

A tentativa de buscar as características comuns à músicas para agrupá-las por gêneros leva a definições sincrônicas que tendem a cair numa fragmentação excessiva em busca de uma exatidão inalcançável. O que surge como mais complicado ainda é que a ideia de gênero musical tal como discutida acima não permite pensar as dinâmicas que engendram mudanças nas músicas e tampouco possibilita um entendimento da interação entre os diversos gêneros musicais. O intento de lançar luz a respeito, por exemplo, do que é samba ou maxixe, das diferenças entre ambos e de quando o samba começa a ser mais ou menos amaxixado acaba sendo uma grande perda de tempo, uma vez que as perguntas deveriam estar sendo direcionadas para o entendimento dos usos sociais de tais categorias, partindo-se do princípio de que os elementos definidores de uma música não são exatos nem estáticos; são relacionais e mutáveis.

No fim das contas, o conceito de gênero nada mais costuma ser que uma tipificação ideal que, assim como o tipo ideal de Weber102, não consegue ser percebido em sua totalidade em todos os exemplos empíricos que tenta explicar. No momento em que se constrói uma definição para o gênero do samba, por exemplo, essa definição dará conta apenas de uma quantidade limitada de sambas.