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O PROCESSO DE RACIONALIZAÇÃO DO SAMBA E SUA ENTRADA

1 INTRODUÇÃO

3.6 O PROCESSO DE RACIONALIZAÇÃO DO SAMBA E SUA ENTRADA

Para se tornar uma mercadoria, o samba precisava passar por um processo de racionalização120. Isso quer dizer que se fazia necessário uma definição precisa dos seus elementos. Tal exigência significava para o samba perder a sua característica de improviso e, para isso, era imprescindível a escrita musical. Exigia-se que tudo fosse pré-definido antes da execução. Os arranjos tinham que ser previamente determinados, assim como o número de compassos e, talvez o mais importante, a letra, que não podia mais ter o seu caráter mutável. Isso influenciava a duração da música: se antes o samba surgia nas rodas a partir do improviso, podendo durar tanto quanto a criatividade do grupo pudesse criar novos versos, não havia espaço para tal circunstância no samba enquanto mercadoria.

Ao registrar Pelo Telefone, Donga precisou operar essa racionalização da música feita coletivamente nas festas que frequentava. Foi necessário que escrevesse a música, determinasse seu arranjo, escolhesse que estrofes seriam aproveitadas e quais outras seriam removidas. Só assim era possível ir ao estúdio, gravar a música e produzir suportes para vender sua composição.

O samba, que antes era inconcebível sem o contexto festivo, uma vez racionalizado e transformado em produto, passa a poder ser apreciado por qualquer um isoladamente. Se antes o samba era produto da festa e da improvisação, agora passaria a ser o som emitido pelo suporte tecnológico. É neste ponto que o samba alcança o “estágio de produção e apropriação individualizadas, com fins comerciais”121, caracterizando uma “nova inserção sociocultural para o samba”122

.

No caso de Pelo Telefone, ao racionalizar a composição e transformá-la em produto, Donga enfrentou problemas. Isto, pois, uma vez que a composição foi sucesso no carnaval de 1917, várias pessoas reclamaram sua autoria123. Com efeito, Pelo Telefone não era uma composição feita apenas por Donga. Por outro lado, seria impossível determinar todos os seus compositores e o nível de participação de cada um. Em parte, Pelo Telefone é um produto coletivo. Donga tem o mérito de tê-la transformado em um produto, de ter racionalizado tal criação e tê-la inserido nas dinâmicas do mercado capitalista.

Esta talvez seja a última etapa da saída do samba em estado folclórico para o samba inserido na indústria cultural: a determinação autoral. Se antes o samba tinha arranjo indefinido, letra mutável , duração indeterminada e autoria coletiva, ao ser racionalizado ele passa a ser o oposto de todas essas características. Como mostra Matos124, o samba passa a ter uma voz elocutora que, mesmo sendo individual ou coletiva, “desenha e projeta uma identidade una, uma persona autora”125.

A mercadoria cultural precisa ter um dono a lucrar com a sua venda; por isso, a determinação autoral se coloca como mais um requisito obrigatório da transformação do samba em um produto.

Apesar de Donga ter sido acusado de não ser o autor de Pelo Telefone, era necessário que se apresentasse como autor para que a música fosse gravada. E, mesmo que tivesse tentado inserir o máximo de pessoas que realmente contribuíram para sua criação, muito provavelmente seria impossível inserir como autores todos aqueles que realmente tiveram alguma influência no desenvolvimento da música, pois a mesma foi composta ao longo de sucessivas festas com diferentes participantes, cada um contribuindo com algo para o seu desenvolvimento.

121 PARANHOS, Adalberto. A invenção do Brasil como terra do samba, op. cit., p. 82. 122 MATOS, Cláudia Neiva de. Gêneros na canção popular, op. cit., p. 16.

123 SEVERIANO, Jairo. Uma história da música popular brasileira, op cit. 124 MATOS, Cláudia Neiva de, op. cit.

Uma vez que todos os requisitos para a transformação do samba em um produto foram cumpridos, o samba finalmente pôde entrar na indústria cultural. No caso de Pelo

Telefone, também foi necessário o registro da sua partitura na Biblioteca Nacional do Rio de

Janeiro – “requerimento de 6 de Novembro, concedido a 20 e registrado a 27 do mesmo mês”126

– e a gravação do seu respectivo fonograma.

O samba passou a ser uma mercadoria elaborada pelo artista, gravada num suporte (o disco) por um conjunto de músicos num estúdio, para posteriormente ser reproduzida em larga escala, permitindo que qualquer pessoa pudesse comprá-lo e executá-lo onde quisesse. As diversas etapas de sua produção evidenciam seu caráter industrial, que contrasta com a sua original forma de produção e apreciação festiva.

É a partir desse ponto também que começa a se organizar um campo do samba. Entretanto, este “novo” samba não deve ser inteiramente dissociado daquele que lhe precede. O samba improvisado, que nunca foi uma exclusividade do Rio de Janeiro, passa a servir como “matéria prima” para o samba racionalizado. Enquanto que o samba como festa era algo presente em diversas localidades do Brasil, a indústria fonográfica se organiza a partir do Rio de Janeiro em função de condições materiais, ou seja, da instalação de gravadoras e emissoras de rádio nesta cidade. Essa união entre samba racionalizado e indústria cultural vai permitir o surgimento do campo do samba, ou seja, de uma esfera social relativamente autônoma com regras próprias na qual diversos agentes disputam por legitimidade (capital). O processo de expansão do campo do samba a partir do Rio de Janeiro para o resto do país engloba um movimento de racionalização dos diversos sambas improvisados que já se faziam presentes em outras localidades. Quando o campo do samba chega a Salvador, o samba improvisado que já era praticado nesta cidade passa a servir como matéria prima da indústria cultural.

O processo de racionalização é aplicado ao samba improvisado para se produzir o samba enquanto mercadoria, sem o qual o campo do samba não poderia existir. Não há aqui uma escala de valores que tenta afirmar que o samba só é samba a partir da indústria cultural. O campo do samba necessitou do samba improvisado, do processo de racionalização imposto pela indústria cultural, das condições materiais (estúdios de gravação, emissoras de rádio, discos, gramofone etc.) entre muitos outros elementos para se consolidar como esfera social autônoma. O campo do samba não deve ser confundido apenas com a simples relação entre samba e indústria cultural e tampouco é o sinônimo do mercado fonográfico do samba. Esta

esfera social autônoma que configura o campo do samba é algo muito mais amplo, englobando diversos elementos que vão além da indústria fonográfica.

3.7 Tecnologia e Indústria fonográfica no Brasil

O desenvolvimento tecnológico é condição para o estabelecimento da indústria fonográfica. No Brasil, o marco do início da indústria do disco foi o ano de 1902, quando a Casa Edison, sediada na Rua do Ouvidor, número 6, como se pode ouvir nas suas gravações, publicou um anúncio nos jornais da época propagandeando a venda de 228 chapas, discos, para gramofone. Estas foram gravadas num estúdio na própria Casa Edison no Rio de Janeiro e prensados em Berlim pela International Zonophone Co. Entretanto, a prática de gravação em cilindro no Brasil data de 1897127. O cilindro foi o primeiro suporte para a gravação musical, inventado por Thomas Edson para ser tocado no fonógrafo e depois substituído pelas chapas – os discos – inventadas por Emil Berliner para o gramofone.

Essas chapas registravam modinhas, lundus, tangos, valsas e dobrados interpretados em sua grande parte por Bahiano e Cadete com a Banda do Corpo de Bombeiros128.

Muitas outras empresas fonográficas tentaram se estabelecer no Brasil no início do século XX, como Casa Faulhaber, Brazil-Grand Record, Savério Leonetti, Popular, Phoenix, Victor e Columbia, embora nenhuma delas tenha conseguido competir com a Casa Edison, que se consolidou como a empresa hegemônica no mercado fonográfico brasileiro em 1913129.

No período que vai de 1902 a 1927, foram lançados cerca de sete mil títulos, em sua maioria com o selo Odeon, empresa que, na Alemanha, prensava e transformava em discos as gravações feitas pela Casa Edison no Rio de Janeiro130. Isto mostra que o disco, no Brasil, foi desde o início produto do processo de globalização do capitalismo, no qual a mercadoria perde o seu caráter local, colocando a implantação da indústria fonográfica em terras brasileiras como um elemento no desenvolvimento do Brasil através do que Giddens chama

127 SEVERIANO, Jairo. Uma história da música popular brasileira, op. cit. 128 Idem.

129 Idem. 130 Idem.

de modernidade131. Ou seja, nesse sentido, a indústria do disco indica a intensificação do processo de modernização do Brasil.

Vale apontar também que esse primeiro período é marcado pela precariedade das gravações. Segundo Ribeiro, “os cantores quase gritavam (não existia o microfone elétrico, mas o autofone), os estúdios eram montados com cortinas e forros de aniagem para o isolamento acústico etc.”132.

As dificuldades no processo técnico de gravação eram tantas que os instrumentos de percussão não fizeram parte do processo de gravação dos discos até 1929 em função do sistema de captação mecânica prejudicar o registro dos instrumentos de percussão133. Isso significa que apenas a partir de 1929 os sambas passaram a incluir nas gravações a percussão, um de seus componentes fundamentais.