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O INÍCIO DA PROFISSIONALIZAÇÃO DO SAMBA

1 INTRODUÇÃO

3.8 O INÍCIO DA PROFISSIONALIZAÇÃO DO SAMBA

A estruturação do mercado musical abriu a possibilidade para que os sambistas se tornassem cada vez mais profissionais da música134. As condições para tal processo, as circunstâncias que abriram possibilidade para o início da profissionalização dos sambistas, no qual estes puderam começar a transformar sua arte em trabalho, são: a implantação da indústria do disco no Brasil, a racionalização do samba e sua transformação em mercadoria voltada para as dinâmicas do mercado fonográfico e o início do desenvolvimento do samba enquanto um campo.

Não se trata, aqui, de afirmar que antes desse processo não havia músico profissional no Brasil. Os músicos eruditos há muito eram vistos como profissionais e, portanto, detinham a prerrogativa de cobrar por suas partituras, pelas apresentações ou pelo magistério. No campo da arte, o subcampo da música erudita havia conquistado alto nível de legitimidade, que podia ser convertida em capital social e econômico, daí a possibilidade de os músicos eruditos adotarem a música como trabalho.

131 GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: UNESP, 1991.

132 RIBEIRO, Manoel. As formações discursivas sobre a mulher na música brasileira, op. cit., p. 168. 133 NAPOLITANO, Marcos; WASSERMAN, Maria Clara. Desde que o samba é samba, op. cit.

134 FENERICK, José Adriano. Noel Rosa, o samba e a criação da música popular brasileira. História em

Reflexão (UFGD), Online, v. 1, p. 1-23, jan./jun. 2007. Disponível em: <http://www.periodicos.ufgd.edu.br/

No caso do samba, as coisas não eram tão simples. Como busquei apontar, o samba, em seu estado folclórico, era um componente de uma festa, produto construído coletivamente e de improviso. Seriam escassas as possibilidades de auferir ganhos em tais circunstâncias, a menos que tentasse se transformar em produto a própria festa, o que não ocorria então.

Apenas para efeito de exemplo, para se transformar a festa do samba em um produto, era necessário promover algo parecido com o que os governos promovem atualmente com as chamadas “expressões genuínas da cultura popular”, atrelando o turismo e o consumo numa região às suas “festas populares”. Somente construindo a roda de samba como algo diferente e curioso para ser assistido por outras pessoas é que poderia ser mantido seu caráter coletivo e de improviso. O lucro viria do pagamento para assistir à roda de samba, bebidas, comidas, souvenires etc., algo parecido ao que acontece com muitas festas tidas como “regionais” pelo interior do Brasil.

Em todo caso, essa não é uma opção para a indústria fonográfica, que necessitava de um produto padronizado para ser produzido em escala industrial.

Com a racionalização do samba e sua gravação em discos, tal música passa a ser um produto. Isto possibilitava que o samba adentrasse as dinâmicas do mercado, o que criava condições para algum lucro por parte dos sambistas, através da venda dos discos e, principalmente, através da venda das partituras de suas músicas.

Curiosamente, a entrada do samba na indústria fonográfica não garantiu de imediato que o sambista pudesse se transformar em um profissional, no sentido que poderia ter a música como fonte prioritária do seu sustento financeiro e não apenas como um complemento orçamentário. Isto se verifica porque, durante muito tempo, o sambista era solicitado para tocar gratuitamente, já que a sua condição enquanto profissional da música ainda não havia se consolidado.

No caso de Donga, a profissionalização só se deu com a formação do grupo 8 Batutas, em 1919, três anos após a gravação de Pelo Telefone. O grupo era formado por Donga (violão), Pixinguinha (flauta), China (canto e violão), Raul Palmieri (violão), Jacó Palmieri (pandeiro), Nelson Alves (cavaquinho), Luís Pinto da Silva (bandola e reco-reco) e José Alves de Lima, apelidado de Zezé (bandolim e gazá). Posteriormente, o grupo teve seu nome mudado para Os Batutas, em 1922, ocasião da sua viagem à França, cuja formação tinha sido alterada para: Donga, Pixinguinha, China, Nelson Alves, José Alves de Lima, Feniano

(pandeiro) e José Monteiro (canto)135.

Donga expõe que o grupo tinha se tornado simpático e que sempre era solicitado para tocar de graça nos salões do Rio de Janeiro. As circunstâncias eram as mais variadas, chegando ao ponto de serem repentinamente abordados enquanto conversavam para tocarem em algum lugar, pedido normalmente aceito pelos Batutas136. Cansados de tocar de graça, Donga e seus companheiros começam a cobrar pelas apresentações.

Houve, então, um espaço de três anos entre a gravação de Pelo Telefone e a transformação de Donga em um profissional da música. Nesse meio tempo, Donga foi construindo o seu capital no campo da arte, o que fez com que se tornasse pouco a pouco conhecido e requisitado. Este processo alcançou também outros sambistas, entre eles, os outros componentes dos 8 Batutas. Em determinado momento, Donga percebeu que poderia converter aquele capital artístico em capital econômico, passando a cobrar por suas apresentações. Mas isso só foi possível porque houve a construção de uma legitimidade prévia no campo da arte. Mesmo que o campo do samba estivesse começando a tomar forma e mesmo que as apresentações dos 8 Batutas envolvessem diversos tipos de música, não necessariamente samba, o grupo conseguiu se impor como competente no que diz respeito ao entretenimento musical, como animadores de festas. Assim, acredito mais apropriado afirmar que os 8 Batutas acumularam, até a sua profissionalização, capital no campo da arte – ou melhor, no subcampo da música – e, mais especificamente, no interior deste último, no “sub- subcampo” da música popular não erudita, em vez de capital no campo do samba, que ainda estava em formação.

É importante ressaltar ainda que o processo de transformação do sambista em trabalhador foi muito longo, tendo apenas se iniciado na década de 1910.