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1 INTRODUÇÃO

5.2 AS ESTRATÉGIAS DE LEGITIMAÇÃO

5.2.3 Com que roupa

Em Com que roupa306, gravada em 1929 e lançada com sucesso em 1930, o tema abordado seriam as dificuldades pelas quais a sociedade brasileira passava em função da crise de 1929. Esta peça é apresentada pelo autor como samba urbano e não mais contém “corruptelas caipiras” na sua letra.

A expressão “com que roupa” é recuperada por parte da literatura acadêmica como um modo de dizer “com que dinheiro” no início do século XX no Rio de Janeiro. Entretanto, proponho desenvolver uma interpretação alternativa para a peça de Noel à luz do referencial teórico-metodológico aqui utilizado.

Nesta composição, Noel apresenta como personagem principal o malandro que quer se regenerar para sobreviver, pois os novos tempos de crise financeira mundial não mais permitiriam que alguém pudesse continuar fugindo do trabalho e aproveitando-se dos outros como atividade de subsistência, como mostram os versos iniciais: “Agora vou mudar minha conduta/ Eu vou pra luta/ Pois eu quero me aprumar/ Vou tratar você com a força bruta/ Pra poder me reabilitar”307

e, alguns versos depois, acrescenta, “Mesmo eu sendo um cabra trapaceiro/ não consigo ter nem pra gastar”308

.

Noel apresenta um malandro que percebe as novas dificuldades econômico-sociais e tenta se regenerar, virar trabalhador. Entretanto, tal circunstância não era algo que dizia respeito a Noel Rosa especificamente, pois, ainda que o compositor gostasse da vida boêmia e frequentasse o morro carioca, não deixava de ser um estudante branco de medicina oriundo da classe média.

O fato de Noel colocar como personagem central de sua peça o malandro faz sentido quando percebido como elemento de uma estratégia de legitimação no campo do samba, pois a reabilitação do malandro era um dos temas centrais neste campo e passava a ser cada vez mais colocada pela sociedade como um problema a ser resolvido, principalmente a partir do golpe pelo qual Getúlio Vargas se alçou ao poder em 1930.

Na peça em questão, o que importava para o seu devido êxito no mercado no qual estava inserida era que o músico falasse como um sambista legítimo. Embora Noel não fosse um malandro que precisava se regenerar, o mesmo soube perceber que elementos constituíam

306 Noel Rosa. Com que roupa, 1930. Ver anexo A4. 307 Idem.

regras no campo do samba e entender que era necessário segui-las para almejar o seu capital. Ao se colocar como o sambista legítimo, Noel Rosa conseguiu o êxito desejado e teve sua composição bem recebida pelo público, o que abriu as portas para a sua profissionalização como músico. Entretanto, o compositor não nega a sua condição de iniciante no campo do samba em Com que roupa.

A letra desta peça pressupõe um interlocutor. A narrativa mostra uma situação na qual uma segunda pessoa chama a personagem principal para o samba, que neste contexto seria quase uma estrangeira – alguém “de fora” – que tinha sido convidada por pessoas que são “de dentro” para o samba. Por sua vez, tal personagem pergunta ao seu interlocutor que roupa deveria vestir. Apesar de a letra ser de Noel Rosa, a voz que enuncia a solução da pergunta do compositor não é a sua; a resposta vem do maestro Eduardo Souto, que na versão original gravada em 1930, diz de improviso309: “vai de roupa velha e tutu, seu trouxa”.

Nesta composição, entendo que Noel está perguntando com que roupa deveria ir ao samba a alguém que sabe a resposta, ou seja, alguém que, diferentemente dele, conhece as regras do campo do samba. Trata-se de um interlocutor que entende os princípios de legitimação no campo do samba muito mais do que o próprio Noel, que estaria naquele momento ingressando nessa arena.

Ao colocar um interlocutor que responde à sua pergunta chamando-o de trouxa em sua própria composição, Noel reconhece sua condição de fraqueza, de falta de legitimação para atuar no campo em questão. Perguntar explicitamente as regras do campo em que se está agindo é expor publicamente a sua incompetência para atuar no mesmo. A fraqueza, neste caso, nada tem a ver com uma qualidade física; antes disso, trata-se de algo situado no plano simbólico; é um atestado de baixo capital no campo em que se está inserido.

O caráter cômico da resposta é um mecanismo para aliviar esse mal-estar, esse “atestado de baixo capital”. É o próprio Noel que expõe a sua condição de alguém novo no campo do samba; ao mesmo tempo, é também aquele que apresenta a resposta para suas próprias questões. Trata-se de uma forma elaborada de contornar suas desvantagens, conferindo um ar de certa comicidade à possível violência que seus concorrentes poderiam desferir contra o novato ao perceberem suas incertezas com relação ao mercado do samba.

Em Com que roupa, Noel procura apresentar um artifício para contornar a sua inegável desvantagem de iniciante no campo do samba. Assim, o próprio compositor se

coloca como iniciante, expondo suas incertezas. Por outro lado, demonstra habilidade e conhecimento, apresentando em sua composição as respostas para suas dúvidas, e ainda tornando cômico seu próprio perfil e situação, construindo uma defesa contra quem o quisesse deslegitimar. Ao transformar em algo cômico a deslegitimação contra si mesmo, ao não levar a sério ser chamado de “trouxa” por não saber com que roupa deveria ir ao samba, o autor acaba operando uma deslegitimação “preventiva”, ou seja, anulando preventivamente um possível efeito negativo para a sua iniciante atuação no campo do samba.