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1 INTRODUÇÃO

4.3 ACERTEI NO MILHAR

Uma composição que demonstra como o trabalho era mal visto pelo brasileiro é

Acertei no Milhar175, de Wilson Batista e Geraldo Pereira, datada de 1940:

170 MARX, Karl; ENGELS, Frederich. O manifesto comunista. São Paulo: Boitempo, 1998.

171 ENGELS, Frederich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2008. 172 MARX, Karl. O capital. v.1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

173 WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. op. cit.

174 GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: LTC Editora, 1988.

“Etelvina, minha filha!” “O que é, Morengueira?” Acertei no milhar!

Ganhei quinhentos contos Não vou mais trabalhar

Você dê toda roupa velha aos pobres E a mobília podemos quebrar [...]

Etelvina vai ter outra lua-de-mel Você vai ser madame

Vai morar num grande hotel

Eu vou comprar um nome não sei onde De Marquês Morengueira de Visconde Um professor de francês, mon amour

Eu vou mudar seu nome pra Madame Pompadour Até que enfim agora sou feliz

[...]

Telefo-fo-ne pro Mané do armazém

Porque não quero ficar devendo nada a ninguém [...]

Mas de repente, mas de repente Etelvina me chamou

Está na hora do batente

Mas de repente, Etelvina me chamou e disse: - Acorda, Vargulino!

Foi um sonho, minha gente!

Acertei no milhar, Wilson Batista & Geraldo Pereira, 1940.

Nesta composição, estão contidos diversos elementos daquilo que constitui a percepção do brasileiro com relação ao trabalho. A personagem principal, Morengueira, pobre e endividada como a maior parte do povo brasileiro, vê o trabalho como algo nocivo do qual deseja se libertar. A solução para melhorar sua condição vem através da loteria – o milhar – sendo que este é um caminho que vai contra a lógica do mundo capitalista, que oferece a esperança do enriquecimento através do trabalho, do acúmulo de capital, do investimento e de mais trabalho num ciclo que um dia pode levar à riqueza.

A noção de resolução dos problemas apresentada em Acertei no milhar é pré- capitalista; resulta, entre outros fatores, da matriz correspondente a uma visão católica, tem a ver com alcançar a graça divina, de alcançar a entrada para o paraíso, a salvação, sem que isso tenha a ver com a atuação financeira daquele que foi salvo.

Por sua vez, esta influência católica não é total. A salvação referida por Morengueira na canção acima é alcançada através da sorte, pelo simples desejo do brasileiro de querer ter

uma vida melhor livre do trabalho, divergindo neste ponto da doutrina católica, que promete a salvação através de critérios que avaliam a conduta moral do crente e que exigem um trabalho do tipo espiritual, como a oração.

Apesar de a doutrina católica pregar a condenação da preguiça, o repúdio ao “batente” é tão forte que o brasileiro deseja a sua libertação através de um caminho que não passe por tipo algum de trabalho, físico ou moral, tendo na sorte a sua melhor chance de realização e sendo a loteria, então, a melhor representante dessa salvação. Uma vez alcançado o milagre da salvação em vida, a personagem de Acertei no milhar apresenta o que é o seu ideal de felicidade: desfrutar, em vida, a liberdade com relação ao trabalho, em condições financeiras para comprar o que quisesse, o que corresponderia à elevação de seu status social.

A primeira atitude de Morengueira é livrar-se das antigas roupas e mobília, ícones da sua condição de pobre, de trabalhador, de alguém que ocupa posição dominada de baixo status social. As posses são, então, substituídas por outras mais caras que emblematizam a classe dominante, em especial a sua moradia, o grande hotel, e, o que é mais importante, o nome.

Quase na metade do século XX, em 1940, Wilson Batista e Geraldo Pereira mostram de forma bem humorada que o brasileiro ainda considerava como objeto de desejo as titulações da nobreza, mesmo o Brasil tendo se tornado um país republicano em 1889. Talvez porque o nobre é aquele que melhor representa o indivíduo de posses que não precisa trabalhar e que, além de tudo, é respeitado. Por isso mesmo, a personagem deseja comprar um nome, um título nobiliárquico, prática já impossível na época em que a letra foi escrita, mas que simboliza os anseios dos compositores. Vale apontar que, embora a classe dos nobres tenha deixado de existir efetivamente com a proclamação da República, o título de coronel foi o maior substituto para aqueles que procuravam uma distinção capaz de conferir um capital simbólico aos fazendeiros que dominavam determinada região.

O dinheiro passa a ser usado para a aquisição do que Bourdieu chama de capital cultural, por exemplo, com a contratação do professor de francês, língua tida como sinônimo de “cultura” elevada, de distinção, e que apareceu no samba do início do século XX muitas vezes de forma satirizada por ser um tipo de conhecimento próprio da classe dominante176, sendo possível, em certa medida, categorizar Acertei no milhar como uma dessas sátiras.

176 ALVES, Nancy. A França na Música Popular Brasileira do século XX: visões e impressões de

sambistas e chansonniers. Dissertação (Mestrado em Letras) – Curso de Pós-graduação em Língua e Literatura Francesa, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.

A composição termina de forma realista, embora bem humorada, com a mulher de Morengueira, personagem principal da música, acordando-o para mostrar que o sonho de sair da classe dominada, da pobreza, da rotina desgastante do trabalhador (que seria uma forma velada de escravidão) é algo que pode se realizar apenas enquanto um desejo num instante de descanso. É assim que Etelvina acorda Morengueira do seu sonho de uma vida melhor para que o mesmo vá “pegar no batente”, atestando que o mundo real é palco não de milagres, mas das lutas diárias para a sobrevivência do brasileiro.

Acertei no milhar é uma composição que demonstra de forma eficiente o repúdio do

brasileiro ao trabalho, que não é algo que começou há algumas décadas, muito menos com o samba. Tal repúdio é fruto de um processo longo que engloba determinantes econômicos, políticos, culturais etc. e foram esses fatores que oportunizaram essa configuração socio- histórica singular que, por sua vez, possibilitou o surgimento da figura do malandro nas primeiras décadas do século XX.