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O ESTUDO DO SAMBA A PARTIR DO CONCEITO DE CAMPO

1 INTRODUÇÃO

3.3 O ESTUDO DO SAMBA A PARTIR DO CONCEITO DE CAMPO

Os estudos sobre música que partem da concepção de gênero musical, ou estilo musical, guardam homologias e analogias com trabalhos de autores funcionalistas103 como Durkheim, Parsons e Merton, no sentido de que são fundamentalmente focados nas regularidades e na sincronia. E, da mesma forma que os funcionalistas, a grande crítica que pode ser feita à ideia de gênero musical é a sua inadequação para entender a mudança e os conflitos numa perspectiva diacrônica. Proponho então buscar entender a música a partir do

102 WEBER, Max. Sobre a teoria das ciências sociais, op. cit. 103 GIDDENS, Anthony. Sociologia. op. cit.

conceito de campo de Bourdieu, sendo assim possível superar os principais problemas apresentados pela noção de gênero musical.

Ao tomar, por exemplo, o samba como um campo, um mercado com regras próprias, o conflito se coloca na base da interpretação das suas dinâmicas. No lugar de elementos “puros” que permitem uma tipificação do samba, em vez da busca de uma temática única e específica, de um ritmo definido e de um contexto exclusivo, a ideia de campo permite trabalhar com elementos concorrentes.

Os artistas estão sempre buscando se legitimar no campo em que atuam e, nesse processo, procuram o tempo todo a melhor forma de construir a sua legitimação. É por isso também que a música muda constantemente.

É pouco produtivo, no caso acima referido, tentar construir uma interpretação que dê conta de explicar exatamente as diferenças entre o samba e o maxixe. O que realmente estava em jogo na confusão da definição do samba com o maxixe era a forma como os músicos que faziam essas definições tentavam construir sua legitimação a partir de uma denominação ou de outra.

Para Chiquinha Gonzaga e Sinhô, o ato de mudar a denominação de suas músicas para samba era antes de tudo uma estratégia para se legitimar socialmente, uma vez que assim burlavam a perseguição ao maxixe, ao tempo que se apresentavam como representantes do samba, algo novo no período.

Os inúmeros subgêneros que englobam o samba são antes de tudo formas de sambas concorrentes num mesmo mercado, cada alteração sendo mais conveniente para uma determinada festa, situação etc., ou seja, em vez de ver os subgêneros como algo problemático, estes são a própria expressão do fervilhar das dinâmicas sociais no interior do campo do samba. Para se legitimar, todos os músicos precisavam o tempo todo se diferenciar uns dos outros sem romper demais com as regras de seu campo para não causar estranhamento diante do seu público.

O desentendimento entre Donga e Ismael Silva sobre o que seria o samba não é apenas um fato “pitoresco” na história da música brasileira, qual seja, dois grandes sambistas num debate em que um não reconhece a obra do outro enquanto samba.

Através da noção de gênero, o máximo que se consegue é dizer que ambos são representantes de subgêneros diferentes do samba, ou seja, é preciso remover a interação entre os dois sambistas para tornar possível uma compreensão do ocorrido.

Por sua vez, a partir do conceito de campo, o que percebo é que esse desentendimento é nada menos que uma expressão do conflito no campo do samba no qual os sambistas em questão estão disputando em torno da própria definição do que é o samba e, nessa batalha, um desqualifica o trabalho do outro para tentar impor o seu próprio trabalho como o mais legitimado. Em outras palavras, estão brigando pelo princípio legitimador no campo do samba. Se um faz marcha e o outro, maxixe, isso não importa, pois ambos estão atuando no mesmo campo, ou seja, estão obedecendo regras o suficiente para permitir que suas respectivas composições concorram nesse mercado. Nesse contexto, estão buscando acumular mais capital; assim, desclassificar o trabalho do outro não é uma simples curiosidade, mas evidência do conflito.

Braga104 entende que o samba conseguiu se impor como gosto musical em função da extraordinária mobilidade e comportamento tático dos sambistas, oriundos de uma fração pobre e excluída da sociedade, num território rastreado pelo controle disciplinar das elites. Assim, o desenvolvimento do samba faz parte da busca de um grupo em condição social desprivilegiada na busca de melhorias, sejam sociais, sejam simbólicas, sejam ainda econômicas, para si.

As várias denominações do samba, de acordo com Fenerick105, são um indicativo da atuação de muitos agentes que participaram na elaboração do samba e que, para conseguirem alcançar o que conquistaram, foi necessário que o samba passasse por inúmeras transformações.

Apesar das limitações da noção de gênero/estilo musical, há estudos que seguem o caminho orientado por tal conceito – a busca das perfeitas tipificações – mesmo que a música, como tudo que é social, esteja em constante mudança. O que poderia provocar um “curto circuito” na concepção teórico-metodológica de gênero/estilo é resolvido de forma tal que esconde seus problemas mais elementares. No anseio de produzir uma “história da música”, uma “história do samba” etc. tais pesquisadores acabam construindo e organizando conjuntos de períodos que se sucedem harmonicamente um após o outro.

Tais períodos são construídos de forma a guardar entre si um rótulo comum e alguns elementos tendo em vista a necessidade de marcar a continuidade entre uma coisa e outra.

104 BRAGA, Luiz Otávio Rendeiro Corrêa. A invenção da Música Urbana no Rio de Janeiro: de 1930 ao final do Estado Novo. 2002. 408f. Tese (Doutorado em História Social) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.

105 FENERICK, José Adriano. Nem do Morro, Nem da Cidade: As Transformações do Samba e a

Indústria Cultural. 1920-1945. 2002. 322f. Tese (Doutorado em História Econômica) – Faculdade de

Assim, temos um samba do início do século XX “em formação” e outro que vem logo em seguida figurando como “samba autêntico” – que seria o samba do Estácio – consagrado nacionalmente como emblema da brasilidade. É lugar comum em tal literatura o estabelecimento de elementos comuns entre um período e outro; por isso mesmo, poderiam receber o mesmo rótulo, referindo-se ao objeto samba. Entretanto, em determinado momento, a batida, a temática, a recepção e o alcance social desta música experimentam uma mudança. Este procedimento é repetido até se chegar aos dias de hoje, construindo, desta forma, uma história do samba.

A conexão entre os períodos, que se apresenta como problemática lacuna entre o que era antes e o que passou a ser depois, é preenchida a partir de expressões como “a partir de tal momento surgiu um tipo de samba diferente”; “a batida mudou”; “uma nova forma de tocar apareceu” etc. O que se apresenta, então, é a tentativa de construir ligações entre definições que se pretendem perfeitas, mas que para isso necessitariam estar paradas e isoladas no tempo. “Apareceu”, “surgiu”, “mudou” são termos que apenas servem para esconder as complexas dinâmicas sociais que envolveram os conflitos que fizeram emergir esta ou aquela forma musical como sendo a hegemônica. O olhar acadêmico, embasado na busca pelo gênero/estilo, tende a tomar sem maiores discussões tal forma hegemônica como a forma artística que definiria o período construído.

Deste processo, o que surge são compartimentos sincrônicos – os períodos –, arrumados sucessivamente de forma a comporem um todo que é chamado de “história” e que pretenderia explicar o fenômeno estudado através de uma perspectiva diacrônica, mas que não consegue alcançar esse objetivo sem esconder o fervilhamento social por trás da pretendida precisão. Dito de outro modo, é uma perspectiva diacrônica subordinada às construções sincrônicas elaboradas pela academia.

Por sua vez, o conceito de campo aporta elementos que configuram a possibilidade de um caminho diferente. Se o pesquisador se aventura a construir períodos de forma compatível com o manejo do conceito de campo, deve fazê-lo sem escamotear a conflitividade – as disputas por capitais – que ocorrem no momento estudado, em que emergem propostas artísticas conflitantes. A mudança entre as diversas formatações do campo, o que difere dos períodos tipificados, dá-se de forma não problemática, uma vez que a rotina do campo é a da batalha entre aqueles que estão menos legitimados e os que se consagraram em tal arena social; é o contínuo surgimento de novas formas artísticas disputando uma melhor posição social. Nessa dinâmica, a proposta hegemônica, em vez de ser eleita como representante isolada de um período, deve ser entendida considerando a

presença de sua contraparte pouco legitimada, que busca de todas as formas melhorar sua posição no campo.

Por isso mesmo, a ideia de campo abre a oportunidade de compreensão da vida social por permitir focar a investigação no conflito, sendo assim possível desenvolver uma investigação sobre a música pautada no entendimento da mudança numa perspectiva diacrônica.