• Nenhum resultado encontrado

1 INTRODUÇÃO

5.2 AS ESTRATÉGIAS DE LEGITIMAÇÃO

5.2.20 Capricho de rapaz solteiro

Noel Rosa era fascinado pelo mundo do malandro, embora nunca tenha sido um malandro contraventor que entrasse em conflito com a sociedade e as autoridades. Apreciava assiduamente a rotina de festas e excessos. Entretanto, em suas composições, aparece frequentemente o desejo de se regenerar, de deixar a orgia, pois o autor percebia que esta vida não poderia trazer benefícios para ninguém no longo prazo. Noel gostava da vida boêmia e, apesar de perceber em diversos momentos os males de tais costumes, lutou a vida inteira para permanecer na orgia. O desejo de se regenerar parecia entrar em constante conflito com o desejo pela festa, bebida, namoro e música.

Em novembro de 1933, Noel passa uma noite com sua namorada Lindaura num hotel da Rua Senador Euzébio. A garota havia contado para a mãe que estaria numa festa com uma amiga numa casa de família. No dia seguinte, ao descobrir que a filha havia passado a noite com Noel, a mãe de Lindaura se encaminha para a delegacia e presta queixa contra o músico, acusando-o de ter raptado sua filha de 17 anos menor de idade334. Os policiais vão buscar Noel em casa para prestar esclarecimentos.

Sendo conhecido e bem quisto na região, Noel não foi tratado como um criminoso. Entretanto, não admitia ter praticado um delito. Acreditava que não havia mal algum no que tinha feito, pois a garota já não era mais virgem quando começaram a namorar; segundo sua interpretação, não havia desonrado a namorada. Entretanto, a situação não era tranquila como pensava; a mãe de Lindaura exigia reparação e o delegado deu o ultimato ao músico: precisava escolher entre o casamento ou a cadeia.

Noel escolheu a cadeia; não queria abrir mão de sua vida festiva e se regenerar, como havia cantado tantas vezes. Além disso, talvez, por ser um homem de sua época em um período excessivamente machista que foi os anos 1930 no Brasil, tenha pesado para Noel Rosa o fato de que Lindaura, por não ser mais virgem quando começaram seu relacionamento, não era uma mulher para se casar. Quem sabe a garota poderia apenas ser como as muitas mulheres “da orgia” com quem o músico se relacionava: nenhuma delas precisava ser “pura”, mas o músico não cogitava casar-se com estas.

A família de Noel interviu e prometeu convencer o músico a mudar sua opinião, a aceitar o casamento. A polícia o liberou momentaneamente, visitando-o periodicamente para

cobrar a reparação.

Irritada com a indefinida resolução da situação, a mãe de Lindaura a expulsa de casa e a garota passa a viver com Noel. Sem ter para onde ir, Noel monta um esquema no qual Lindaura passaria o dia no trabalho e entraria escondida na sua casa apenas para dormir, fugindo logo quando o dia amanhecesse. Entretanto, quando a mãe do artista descobre que sua namorada entrava sorrateiramente em sua casa para pernoitar, também impõe o limite: só os aceitaria juntos sob seu teto quando casados.

Noel escolhe sair de casa. Por outro lado, faltava-lhe o egoísmo durkheimiano próprio dos malandros para deixar a garota por conta própria sem ter para onde ir. Se fosse o malandro que tanto esteve presente nos sambas nesse início de século XX, Noel poderia simplesmente não se importar com o destino de sua namorada. Poderia também tentar explorá-la e viver no ócio, sugando os frutos do trabalho de sua companheira, como fizeram tantos malandros. Entretanto, não era este malandro. Queria apenas ter sua vida de festas garantidas sem causar mal a ninguém.

Sem morada fixa, Noel passa a buscar todos os dias um lugar para passar a noite com sua companheira. A vida de músico lhe rendia pouco dinheiro e teve que buscar constantemente a ajuda dos amigos ou tentar uma vaga nos lugares mais baratos para pernoitar. Chegou a levar a namorada para dormir algumas vezes no banco do bonde enquanto passava a noite em claro escrevendo versos sob a luz fraca que entrava pela janela da condução.

A situação era um pesadelo para Lindaura; expulsa de casa, teve que passar a dormir em lugares baratos, pouco confortáveis e perigosos. Para piorar, Noel não reduziu sua vida de festas nem um pouco e frequentemente a abandonava para passar a noite cortejando outras mulheres nos bares da cidade.

Não é possível deixar de relacionar o contexto em que Noel vivia com a peça

Capricho de rapaz solteiro335, gravada em abril de 1933, antes da confusão do casamento, na qual o músico coloca os versos “Ser malandro é um capricho / De rapaz solteiro / A mulher é um achado / Que nos perde e nos atrasa / Não há malandro casado / Pois malandro não se casa”. Nesta composição, Noel se aproxima da figura do malandro e declara “Nunca mais esta mulher / Me vê trabalhando”, como se desejasse ser o malandro poderoso que fazia tudo o que bem entendesse e que tinha domínio sobre sua vida. Contudo, de acordo com sua trajetória, Noel poderia ser categorizado no máximo como o malandro medroso de sua

composição homônima.

Esta foi a rotina de Noel e Lindaura por quase um ano: uma vida praticamente nômade sem conforto ou tranquilidade. Permaneceram oficialmente noivos por tempo indeterminado, embora isso pouco significasse para Noel, numa situação de impasse de um casamento que era adiado dia após dia. A polícia sempre visitava a mãe de Noel para lhe cobrar a promessa de que convenceria seu filho a se casar como medida para evitar a prisão.

Lembremos que Noel tinha a saúde frágil. A rotina de festas era de alguma forma equilibrada pelos cuidados familiares. O problema no seu queixo dificultava a alimentação, que precisava ser preparada de forma a facilitar a mastigação. Ao sair de casa, o músico perdeu também o esmero do cuidado de sua mãe com coisas básicas. Alimentando-se muito mal, vivendo em festas, fumando e bebendo excessivamente, dormindo pouco, habitando lugares nem sempre muito higiênicos, Noel tem sua saúde debilitada, emagrece e contrai tuberculose.

O tratamento da tuberculose, naquele período, exigia um cuidado severo do paciente com a alimentação com uma dieta rica em proteínas e muito descanso. Orientava-se até que o enfermo mudasse de cidade para um clima mais propício ao tratamento.

A família de Noel entra em contato com uma tia em Belo Horizonte. Era imperativo que o doente tivesse uma vida regrada para que o tratamento desse certo. As pressões que sofria para se endireitar na vida passaram a vir de quase todos os lados: da sociedade, através da imposição do casamento pela mãe de Lindaura e de sua própria mãe, que tomava parte neste processo; do Estado, uma vez que a polícia o vigiava para que “reparasse” seu erro; da sua própria saúde, que quase ironicamente colocava um limite para seus desregramentos com a punição máxima da morte.

Havia um último problema: sua família em Belo Horizonte não aceitaria Lindaura se não estivessem casados. Precisava escolher: ou iria sozinho ou se casava. Entretanto, apesar de todas as dificuldades, Noel e Lindaura viveram juntos por quase um ano. O músico se preocupava com sua “noiva”, cuidava minimamente dela à sua maneira e não desejava vê-la sem moradia. Assim, cansado, doente, febril, frágil e debilitado, cede às pressões e se casa com Lindaura no dia 1º de dezembro de 1934.

O tratamento da tuberculose nunca alcançou muito êxito. Noel não abandonou a vida festiva e de excessos nem passou a ter o cuidado necessário com a alimentação e o descanso. Apenas em momentos de crise ficava acamado e tomava os cuidados necessários ao tratamento. Apesar de ter cantado tantas vezes que iria mudar sua conduta, regenerar-se,

largar a orgia, na prática nunca o fez. Mesmo com as imposições do casamento, da família e da saúde, jamais efetivou a mudança necessária para vencer a tuberculose.