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1 INTRODUÇÃO

4.1 O VAGABUNDO

O Brasil do início do século XX pode ser categorizado como uma nação que buscava implementar o que Baumanchama de modernidade. Ou seja, era um país que experimentava intensamente a tentativa de instalação de um projeto de desenvolvimento social, econômico, político e cultural baseado na racionalidade. Tal projeto tinha como principal agente o Estado sustentado por um corpo burocrático. Sua prioridade era a imposição da ordem e a substituição dos mecanismos de controle sociais tradicionais (baseados nos costumes, na religião etc.) pelo controle estatal (baseado na racionalidade da lei e no controle dos cidadãos pelo corpo policial e jurídico)155.

Para Bauman156, a modernidade é representada pelos ideais de ordem, racionalidade, burocracia, hierarquia, rígida imposição do poder estatal sobre os indivíduos e, principalmente, pela noção de pureza (da raça ou da classe) em oposição à ideia de sujeira. Em função desta perspectiva, uma das imagens que mais representam a modernidade para Bauman é a bota de cano alto pisando forte na face humana, o que simboliza o poder militar, racional, impondo-se sobre os indivíduos para normatizá-los, para lhes impor a ordem.

Bauman, num evidente pessimismo para com a modernidade, dá continuidade aos concernimentos de Max Weber157 com relação aos desdobramentos do racionalismo. Em

Modernidade e Holocausto158, propõe que a maior tragédia do século XX, o holocausto judeu da Segunda Guerra Mundial, foi um produto da modernidade. O genocídio, o extermínio humano, estaria longe de ser um absurdo incompreensível dos tempos modernos, como muitos interpretam. A excessiva racionalidade teria sido o terreno fértil para esta tragédia.

Tal concepção de modernidade difere bastante de sua ideia de pós-modernidade, conceito posteriormente rebatizado de modernidade líquida159, referente ao período que se estende a partir do final do século XX, no qual o processo de globalização160 mundial e o desenvolvimento tecnológico teriam aumentado de tal forma a quantidade e a velocidade do

155 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999b. 156 BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999c. 157 WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Martin Claret, 2004. 158 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e holocausto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. 159 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.

fluxo de informações que o mundo teria sido tomado por uma constante fluidez.

Na pós-modernidade, a instabilidade das referências identitárias, que estariam o tempo todo se modificando, e a instabilidade financeira, gerada pela alta velocidade com que os fluxos de capitais migram em busca de lugares que oferecem melhores condições de exploração da sua mão de obra (como baixa carga tributária, baixos salários, nenhuma garantia trabalhista etc.), levariam as pessoas a viverem continuamente num estado de incerteza 161, o que, por sua vez, produziria uma profunda, insolúvel e constante insegurança e medo162.

Dessa forma, não apenas a noção de tempo e espaço, a segurança, as referências identitárias e as relações afetivas163 estariam passando pelo processo de “liquefação” apontado por Bauman. A própria vida estaria presa nessa condição fragmentada164 e líquida165.

Bauman coloca tanto na sua concepção de modernidade quanto na de pós- modernidade (modernidade líquida) um evidente pessimismo. Para este autor, a humanidade estaria vivendo em crise na modernidade e na pós-modernidade. Na primeira, em função dos riscos do racionalismo e do consequente esvaziamento das referencias morais das sociedades. Na segunda, pela crise causada pela instabilidade e frenética mudança da vida. Ou seja, o ser humano estaria vivendo em crise há muito tempo e teria substituído uma crise por outra nos últimos anos.

Essa perspectiva pessimista não é um consenso entre os pesquisadores. Para Giddens166, tal concepção é incorreta, pois, não haveria tal crise anunciada por Bauman nem no início da modernidade e nem nos últimos anos vividos pela humanidade com os impactos das novas tecnologias e o aprofundamento da globalização.

Arrumando os elementos apresentados de forma sintética, para Bauman, modernidade é sinônimo de ordem, estabilidade, racionalidade; enquanto que pós-modernidade – ou modernidade líquida – refere-se à instabilidade, sendo que ambos os conceitos estão associados com à ideia de crise.

161 BAUMAN, Zygmunt. Tempos líquidos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007b. 162 BAUMAN, Zygmunt. Medo líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.

163 BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.

164 BAUMAN, Zygmunt. Vida em fragmentos: sobre a ética pós-moderna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2011.

165 BAUMAN, Zygmunt. Vida líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007c. 166 GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade, op. cit.

Na modernidade de Bauman, o vagabundo167 ocupa um lugar de destaque entre aqueles que mais causaram problemas para o projeto da ordem. Foi um mal para a modernidade em seus primeiros momentos, quase uma aberração ameaçadora que colocou filósofos e governantes num estado de inquietação constante visando a sua eliminação. O vagabundo era aquele que não tinha um senhor, ou seja, era aquele que não era controlado, permanecendo desenquadrado, numa situação permanentemente indefinida.

Os vagabundos constituíam as próprias forças nefastas do caos pós-tradicional. Eram livres de vínculos, portadores de uma assustadora liberdade que os tornavam imprevisíveis, que os faziam escapar de qualquer rede de controle. Eram aqueles sem rumo, sem destino, sem emprego, sem ocupação, incapazes de se adequar ao viver normatizado da sociedade. Eram aqueles que não se encaixavam e que vagavam na esperança de que a boa vontade – ou ingenuidade – alheia pudesse lhes acolher ou possibilitar conseguir alguma vantagem às custas dessas boas intenções dos desprecavidos. Tudo isso tornava o vagabundo uma ameaça para a construção de uma sociedade dirigida e vigiada pelo Estado. Assim sendo, a própria modernidade não podia suportar o vagabundo.

No Brasil do início do século XX, provavelmente aquele que mais se aproxima do vagabundo de Bauman é o malandro. Antes de se falar deste, contudo, entendo que seja necessário discutir o problema socio-histórico de como o trabalho foi percebido no Brasil ao longo dos tempos.