• Nenhum resultado encontrado

1 INTRODUÇÃO

4.9 TRABALHO, MÚSICA E MALANDRAGEM

A união entre música e malandragem foi o fator decisivo para que o malandro alcançasse importância no que Moura212 chama de auto-representação do Rio de Janeiro.

Esta união só foi possível porquanto, como mostra Caldeira, “a música não aparecia para o compositor como uma forma de trabalho. Por isso, o sambista parecia realizar o sonho de acumular sem precisar trabalhar”213

.

Tomo como problemática a afirmação de que a música não era percebida enquanto trabalho pelo malandro, uma vez que entendo que o trabalho do músico é difícil como outro qualquer e exige muito do profissional.

A maior parte dos músicos, em todas as épocas, experimentou dificuldades financeiras em função de sua atividade. Ser músico nunca foi garantia de boa remuneração. A possibilidade de galgar um lugar na classe economicamente dominante através da música sempre foi um feito extraordinário para a categoria, reservado a poucos.

O trabalho de músico não é estranho à dinâmica capitalista de exploração do empregado pelo patrão. O músico tende a ser um prestador de serviços à mercê de quem o contrata. A figura do empresário é quem normalmente se beneficia do trabalho do músico, pois este é o dono do capital que investe no espetáculo festivo e faz uso do músico como um componente do seu investimento para obter lucros. Como mostra Chico Buarque na música

Cantando no Toró214: “E o tal ditado, como é? Festa acabada, músicos a pé”.

O profissional do mundo da música precisa lidar com um alto nível de racionalização em suas atividades. A atividade do músico supõe um longo processo de aprendizado prévio como em todas as profissões. É necessário qualificação, organização, treino, cumprimento de horários etc.

A festa de samba, em seu estado folclórico, não continha a racionalidade como componente central. Não havia um repertório musical fixado; as composições iam surgindo de modo coletivo ao longo da festa, havendo bastante espaço para improvisos. Não se pagava pelo desempenho do músico, nem havia obrigações para além daquelas colocadas pelas relações de amizade, camaradagem, vizinhança, compadrio etc.; enfim, não eram profissionais tocando para sobreviver como músicos.

212 MOURA, Milton. Carnaval e baianidade, op. cit. 213 Idem, ibidem, p. 27.

Por outro lado, quanto mais comercial fosse a apresentação, quanto mais voltada para suprir as necessidades materiais do artistas, mais racionalizada seria a música executada, pois a mesma precisava ser uma reprodução do produto previamente conhecido pelo público através do rádio e dos discos. A margem de possibilidade de improviso era muito restrita quando se fala na apresentação profissional do músico – por exemplo, em bailes e festas.

Entendo que a música profissional entra em conflito com disposições fundamentais do habitus do malandro, em especial o repúdio ao trabalho. Ainda assim, o malandro se prestava a trabalhar como músico.

Tomo que a solução para este problema não está na tentativa de se perceber o trabalho do músico como um trabalho essencialmente diferente dos outros; a resposta só pode ser alcançada considerando-se os benefícios que a música podia trazer ao malandro. Dito de outro modo: o trabalho do músico apresentava, para o malandro, os mesmos problemas que os outros trabalhos. Seu diferencial era um conjunto de benefícios que o malandro poderia alcançar através da música, que lhe estaria vedado através do trabalho tido como formal. Eram esses benefícios que permitiam que o malandro se prestasse a trabalhar como músico. O trabalho de músico não era propriamente de uma categoria diferente dos outros trabalhos; o diferencial era que reunia atrativos que compensavam em muito seus pontos negativos.

Ainda que o capital econômico seja algo dificilmente alcançado pelo músico, isto não significa que não exista uma chance real, embora modesta, de ganhar dinheiro com tal atividade. O malandro não acreditava que poderia ganhar muito dinheiro através do trabalho formal, mas tal crença existia com relação ao trabalho artístico, por menor que fosse a chance de esta façanha vir a se tornar realidade.

Um grande atrativo para o malandro era que outros tipos de capital estavam ao seu alcance com maior facilidade através de sua atividade artística. O malandro, muito provavelmente, podia acumular capital do campo do samba. O capital social também estava ao alcance do sambista malandro. Assim, através da música, era possível se tornar reconhecido, respeitado e bem tratado por uma parcela da sociedade em função da sua arte.

Esses dois tipos de capital abriam a possibilidade para que o malandro tivesse ao seu alcance um tipo de distinção215 através da música. O conhecimento musical era um código fechado, restrito aos iniciados nesta arte, que permitia ao seu detentor ser visto como portador de uma marca de diferença que o colocava num patamar superior perante aqueles que não a possuíam. O conhecimento musical distinto do malandro, a forma diferente de

compor e tocar, era produto da própria malandragem, do processo de reprodução do habitus do malandro, e as chamadas “rimas de pé quebrado, nas quais trabalho rimava com martírio e miserê”216

, que abriam as portas para um acúmulo de capital artístico, estavam restritas, até certo ponto, a serem reproduzidas pelos portadores do habitus do malandro.

O peso da racionalização no trabalho do músico podia ser minimizado em função do caráter criativo do processo de composição. Enquanto as apresentações ao vivo tendiam a ser cada vez mais racionalizadas em função de seu caráter comercial, o trabalho de composição era algo que não podia ser completamente racionalizado, havendo sempre a possibilidade e a necessidade de inovar, evitando que a música se tornasse uma atividade mecânica e repetitiva.

Esse conjunto de fatores fazia com que o malandro tendesse a desenvolver uma percepção positiva com relação ao trabalho musical e, na prática, ainda que todos esses atrativos da carreira artística não se concretizassem, mesmo que o malandro se tornasse um músico sem dinheiro, sem fama, mal pago e sem criatividade, que apenas reproduzia mecanicamente peças de terceiros, havia uma última coisa que fazia com que a profissão valesse a pena: o malandro podia desfrutar de ser o centro das atenções enquanto durasse sua apresentação artística.

Para quem vinha de uma condição social periférica e não detinha meios que favorecessem a ascensão social, ser o centro das atenções, mesmo que fosse pelo curto período de uma festa, era algo bastante atraente. Figurava como a rara possibilidade de, por um momento, ser o porta-voz da coletividade, no sentido durkheimiano, e experimentar a grande energia que tal prática envolve. A música era uma das poucas possibilidades de ascensão social de que o malandro dispunha e, por isso, a atividade de músico não era percebida ou sentida como trabalho, mesmo apresentando problemas semelhantes ao trabalho formal que tanto causava aversão ao malandro.

Apesar de o malandro ser aquele que buscava uma vida fácil, esta raramente se concretizava. Isto se dava principalmente porque, enquanto uma parcela da população se identificava com o malandro e nele via um representante do que seria o brasileiro, outros lutavam contra tudo que era emblematizado na figura do malandro. Em especial, as autoridades estatais se envolveram numa cruzada contra o malandro no movimento que ficou conhecido como trabalhismo. Convém deter-se um pouco sobre este conceito, dada a

216 PARANHOS, Adalberto. A questão do trabalho e o trabalho em questão na música popular brasileira (anos 1930-1940). Desigualdade & diversidade, Online, v. 6, p. 74, 2010. Disponível em: <http://publique.rdc.puc- rio.br/desigualdade diversidade/>. Acesso em: 28 jul. 2011.

plurivocidade com que ocorre na literatura.