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Almirante e a invenção da tradição do samba

1 INTRODUÇÃO

2.2 A FORMAÇÃO DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL

2.2.2 Almirante e a invenção da tradição do samba

Segundo Lima61, “Mário percebe a cidade como uma força desagregadora na construção de uma cultura musical nacional”. A partir do entendimento de Mário de Andrade, não havia como construir uma música popular que pudesse ser valorizada se a mesma surgisse na cidade e estivesse relacionada ao mercado. Dessa forma, o trabalho de Mário de Andrade, que envolveu um extenso levantamento e catalogação de material daquilo que o mesmo entendia como música popular realizado em suas viagens por diversas regiões brasileiras, em função de suas convicções, “não contribuía significativamente para organizar uma 'tradição' aceitável para a música popular urbana”62

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A partir da mirada de Mário de Andrade, o samba, produto urbano inserido nas dinâmicas do mercado, jamais deveria ser visto como algo benigno para o país, muito menos alçado à condição de emblema da brasilidade. Isso gerava um problema para os autores

61 LIMA, Giuliana. História de outros carnavais, op. cit., p. 11.

62 NAPOLITANO, Marcos ; WASSERMAN, Maria Clara. Desde que o samba é samba: a questão das origens no debate historiográfico sobre a música popular brasileira. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 20, n. 39, p. 167-189, 2000. Disponível em: <www.scielo.br/pdf/rbh/v20n39/2985.pdf>. Acesso em: 20 jun. 2011.

preocupados em legitimar o samba, processo que envolvia a busca da sua autenticidade enquanto ícone da brasilidade. O problema, então, que se colocava para os defensores do samba, é que os mesmos “não encontravam no pensamento musical de Mário de Andrade um apoio para estabelecer uma tradição reconhecível e legítima da música urbana”63.

Para os defensores do samba alcançarem seus intentos, no que diz respeito à legitimação dessa música, era necessário construir uma alternativa teórica àquela de Mário de Andrade que permitisse ver na música urbana e comercial elementos positivos.

Um dos mais importantes pensadores que divergiam da visão de Mário de Andrade, segundo a qual o urbano pouco valia do ponto de vista musical em função de seus aspectos modernizantes e mercadológicos, era Almirante. Para este, a cidade é um “eixo aglutinador, porque permite a divulgação das manifestações mais recônditas, favorecidas por adventos da modernidade, como o rádio”64

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Henrique Foréis Domingues, nascido no Rio de Janeiro, em 1908, onde viveu até 198065, recebeu o apelido de Almirante na época em que serviu na Marinha no final dos anos 1920. Na década de 1930, iniciou sua carreira artística e ainda nesse mesmo período “foi para a Rádio Nacional apresentar seus próprios programas”66

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Desde 1928, fazia parte do Bando dos Tangarás, junto com Noel Rosa, João de Barro, Henrique Britto e Álvaro Miranda Ribeiro. Almirante integrava “uma nova geração de artistas, rapidamente convertida à linguagem do samba, que era oriunda de uma classe média sediada no bairro de Vila Isabel"67, na cidade do Rio de Janeiro.

Nos anos 1950, depois de ter realizado em 1946 um conjunto de audições para a Rádio Tupi-Tamoio do Rio de Janeiro, intitulada Carnaval Antigo, na qual abordava o carnaval carioca, e de ter em 1952 levado ao ar a série Histórias do Nosso Carnaval, cujo foco englobava a importância da cidade de São Paulo para esta festa, Almirante já tinha se tornado “(re)conhecido como a maior patente do rádio, por ter contribuído sensivelmente para a sua profissionalização, e percorria o Brasil fazendo conferências sobre a música popular”68

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Segundo Moraes69, Almirante foi “o mais importante dos historiadores da primeira

63 Idem.

64 LIMA, Giuliana, op. cit., p. 11. 65 Idem, ibidem, p. 2.

66 MORAES, José. Os primeiros historiadores da música popular urbana no Brasil, op. cit., p. 127. 67 NAPOLITANO, Marcos; WASSERMAN, Maria Clara. Desde que o samba é samba, op. cit., p.171. 68 LIMA, Giuliana. História de outros carnavais, op. cit., p. 2.

geração”70

de historiadores da música popular, que produziram seus trabalhos no início do século XX. Destacou-se também por ter construído um grande acervo de material escrito e sonoro e principalmente por ter militado fortemente a favor da migração da percepção folclorista para a música urbana. Isto, no conjunto de sua obra, influenciou muitos críticos e historiadores da geração seguinte.

Junto com Almirante, outros músicos, jornalistas e radialistas, como Lúcio Rangel, “tomaram para si a tarefa de consolidar um pensamento historiográfico em torno da música urbana”71

em meados dos anos 1940. Estes autores, perturbados com a lacuna no pensamento de Mário de Andrade, trabalhavam “imbuídos de um espírito 'científico'”72

na coleta e preservação do material musical pesquisado para conseguirem legitimar um folclorismo urbano que fizesse frente aos posicionamentos de Mário de Andrade.

A formação do campo da música popular no Brasil foi um processo complexo marcado por embates constantes. O conflito entre Mário de Andrade e Almirante seria uma amostra da fervilhante disputa pelo princípio legitimador no campo da música popular no Brasil. A divergência no ponto de vista destes autores era a própria luta simbólica pelo poder de definição do tipo de música que seria mais legitimada no campo da música no Brasil. O que estava em jogo era o delineamento de um conjunto de regras neste campo.

A proposta de Mário de Andrade legitimava apenas um repertório nacionalista que se apropriava do material musical pesquisado pelo interior do país, filtrando-o a partir das regras do campo erudito, o que excluía o que estivesse inserido nas dinâmicas do mercado fonográfico. Tal postura servia apenas para legitimar os músicos que faziam parte do campo erudito, deixando de lado uma grande quantidade de artistas que não se encontravam inseridos nessa esfera social.

A alternativa buscada por Almirante e outros pensadores visava conferir valor à música urbana que estivesse inserida nas dinâmicas do mercado fonográfico, o que acabaria deslocando capital, poder e legitimidade social de um grupo para outro, dos músicos eruditos para os músicos populares.

Essa empreitada de Almirante e diversos outros músicos, críticos, jornalistas e pensadores envolveu um extenso e sério trabalho de pesquisa para rivalizar com o de Mário de Andrade. Foi necessário a construção de uma teoria sólida, segundo a qual a cidade

70 Idem, ibidem, p. 130.

71 NAPOLITANO, Marcos; WASSERMAN, Maria Clara, op. cit., p.172. 72 Idem.

permitia que as manifestações do povo se aproveitassem das inovações tecnológicas e do mercado no sentido de que pudessem ser difundidas para todos, ou seja, o inverso do que pensava Mário de Andrade. Na visão desses autores, a música popular não estaria completamente a serviço do mercado; pelo contrário, o mercado é que seria um instrumento da música popular. Foi preciso inclusive apostar na formação de uma tradição da música popular urbana, na qual o samba é eleito como a música que consegue aglutinar diversos vetores da cultura brasileira num produto ao mesmo tempo moderno e comercial.

Almirante se empenhou em construir também o seu próprio “panteão de 'gênios' da música brasileira”73

, no qual Noel Rosa aparece como personagem principal.

Do embate entre Mário de Andrade e Almirante, entendo que este último se saiu vencedor. Com efeito, o samba conseguiu se firmar como o representante da brasilidade na esfera musical e, ao mesmo tempo, como uma música capaz de ser respeitada.

3 Formação do campo do samba