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1 INTRODUÇÃO

5.2 AS ESTRATÉGIAS DE LEGITIMAÇÃO

5.2.15 Mulato bamba

Em 1931, Noel Rosa compõe a peça Mulato Bamba325, na qual constrói a sua definição do que seria o malandro consagrado no campo do samba.

O componente étnico é o primeiro elemento a ser colocado na peça. Trata-se de um

mulato, no caso, mestiço descendente de ex-escravos não integrados à sociedade após a Abolição.

O lugar de origem do mulato bamba é o Morro do Salgueiro, favela localizada nas imediações da Tijuca, Rio de Janeiro, o que já o caracteriza como pobre e periférico.

A educação do mulato bamba seria a do tipo não formal, fora da escola, aprendida no cotidiano do morro. Através de um processo educativo que vagarosamente foi constituindo o habitus do mulato bamba, as disposições colocadas como fundamentais para compor o seu comportamento são: o repúdio ao trabalho, a contravenção como forma de ganhar a vida e a valentia.

O mulato da peça viveria às custas do baralho e sua predisposição para entrar em brigas e confusões fariam com que experimentasse enfrentamentos constantes com a polícia. O conflito com as autoridades seria algo tão frequente que o passeio no camburão, conhecido como tintureiro, é apontado como seu esporte. O mulato bamba da peça também seria músico competente e compositor de sambas.

Tais características compõem o mulato como alguém respeitado e bem quisto no seu meio. Por esse motivo, despertava o interesse das mulheres. Entretanto, o mulato bamba da peça de Noel Rosa não correspondia às investidas do sexo oposto; trata-se de uma personagem homossexual.

Qual motivo teria levado Noel Rosa a debater em sua peça a sexualidade de sua personagem, algo tão delicado e melindroso para a época? Máximo e Didier326 apontam para a possibilidade de Noel Rosa estar descrevendo alguém com quem conviveu. Segundo os autores, poderia até mesmo ser uma homenagem a Madame Satã, cujo nome de registro era João Francisco dos Santos (1900 - 1976), um dos grandes mitos da malandragem carioca, tendo respondido a vários processos por desacato, agressões, ultraje ao pudor, homicídio e resistência à prisão. Madame Satã era homossexual assumido e atuou em espetáculos como transformista327. Máximo e Didier apontam ainda que havia outros bambas que também eram homossexuais assumidos, como Jota Piedade. Entretanto, como os autores mostram, há casos como os de Assis Valente e Ismael Silva, que não expunham em público sua identidade sexual para evitarem ser desrespeitados ou perseguidos.

Prosseguindo na tentativa de entender a peça em questão através do conceito de campo, interpreto que Noel Rosa estava tentando retirar capital/legitimação da figura

326 MÁXIMO, João; DIDIER, Carlos. Noel Rosa: uma biografia. Op. cit.

consagrada do bamba no campo do samba, mesmo que não o tenha feito através de uma reflexão crítica dos seus atos.

Noel Rosa não era um bamba tal qual ele mesmo descrevia, estava longe de ser o mulato forte, destemido e contraventor, nascido no morro e que nunca tinha trabalhado. Sua origem e história de vida eram incompatíveis com a figura do mulato bamba descrito em sua própria peça. Noel era quase um estrangeiro no campo do samba, sua pele clara, vinha de uma família de classe média, morava em Vila Isabel, tinha passado pela educação formal e até ingressado na faculdade de Medicina, seguindo os passos de alguns parentes do lado materno de sua família.

Apesar de Noel ter falado, em algumas composições, a partir do ponto de vista do malandro, em diversas outras, a figura do bamba era colocada como aquela com quem entrava em confronto. Isto se dava porque ambas as propostas eram desdobramentos de uma estratégia de legitimação mais ampla: por um lado, tentava maximizar capital seguindo as regras do campo do samba; por outro, tentava mudar tais regras para aumentar a possibilidade de maior acúmulo de capital. Não se tratava de uma incoerência do artista, mas de uma estratégia que unia propostas antagônicas, embora tivessem o mesmo fim. Ao falar como o malandro que não era, Noel tinha uma maior chance de sua composição ser bem recebida no curto prazo, embora houvesse um limite para seu êxito em função da incompatibilidade com sua própria peça, pois, ao fazer isso, precisava ser alguém que não era; precisava falar a partir do ponto de vista do outro antitético a si mesmo. Ao questionar o malandro, ao criticá-lo, Noel estava fazendo algo mais próximo da sua condição de vida; tentava impor novos princípios de legitimação aos quais pudesse se adequar melhor e, por isso mesmo, ainda que pudesse estar sacrificando um êxito imediato, poderia ajudar a construir as bases para uma maior legitimação no futuro.

Em peças como Eu vou prá Vila, Noel Rosa coloca o conflito com os bambas de forma explícita através dos versos “Não tenho medo de bamba / na roda de samba / eu sou bacharel”, ou seja, questionava o bamba consagrado e tentava colocar o bacharel como alguém que podia ser respeitado no campo do samba.

Interpreto que o mulato bamba homossexual é uma construção que une o bamba, que confere alta legitimidade na periferia, com o homossexual, traço que baixava seu capital. Por sua vez, se Noel não era bamba, o que lhe deslegitimava no samba, era heterossexual, o que aumentava seu capital social. O mulato bamba seria uma construção de capital mediano no campo do samba que se equilibraria com o próprio Noel Rosa. Entendo que a peça em

questão era uma forma de o compositor apontar que não bastava ser bamba para ser legitimado, que havia outros fatores que precisavam ser levados em conta na legitimação daquele que agia no campo do samba; era uma forma de colocar em questão as regras deste campo, de abrir uma brecha para que outros princípios pudessem ganhar força em tal arena. O que torna complexo o entendimento de Mulato Bamba é que, num primeiro momento, a peça parece estar elogiando o bamba, para apenas posteriormente baixar o seu capital apontando-o como homossexual. Ou seja, era uma composição que poderia seguir e ao mesmo tempo questionar as regras no campo do samba a depender da leitura que se fizesse da mesma.

Esse mulato forte é do Salgueiro. Passear no tintureiro era o seu esporte, Já nasceu com sorte e desde pirralho Vive à custa do baralho,

Nunca viu trabalho.

E quando tira samba é novidade, Quer no morro ou na cidade, Ele sempre foi o bamba.

As morenas do lugar vivem a se lamentar Por saber que ele não quer

Se apaixonar por mulher. O mulato é de fato,

E sabe fazer frente a qualquer valente Mas não quer saber de fita

Nem com mulher bonita. [...]

Mulato bamba. Noel Rosa, 1931.