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A codificação da responsabilidade do Estado por ato ilícito internacional

Em sua clássica obra Jure belli ac pacis, datada de 1625, Hugo Grotius (1999) já tecia considerações sobre as formas de ressarcimento do dano por ato injusto de Estado. No entanto, a sistematização e codificação no plano internacional do princípio da responsabilidade internacional do Estado é questão recente no mundo jurídico, sobretudo no que tange à responsabilidade internacional por violação de norma garantidora de direitos humanos.

Hildebrando Accioly (1959) define a responsabilidade internacional como uma situação jurídica que tem por base o princípio segundo o qual, na comunidade das nações, bem como na sociedade civil, todos os membros da comunidade, em suas relações recíprocas, devem observar às regras de justiça e respeitar seus compromissos.

Nas relações internacionais, o princípio da responsabilidade internacional do Estado manifesta-se quando se constata a invasão da esfera juridicamente protegida de um Estado por outro. Trata-se de característica típica de “um sistema jurídico, como pretende ser o sistema internacional de regras de conduta, tendo seu fundamento de Direito Internacional no princípio da igualdade soberana entre os Estados” (RAMOS, 2004, p.67).

Nesses termos, o princípio da responsabilidade internacional do Estado surge como mecanismo de reparação de dano entre Estados soberanos, logo, trata-se de instrumento regulador de interesses e negócios entre Estados.

A codificação da responsabilidade internacional do Estado, no entanto, é algo bastante mais recente do que a própria sistemática da international accountability dos direitos humanos. Os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos e as solenes declarações afirmavam e reafirmavam os valores, princípios e obrigações de respeitar o pactuado perante a sociedade internacional, desde a criação da Organização das Nações Unidas (1946) e a adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), no entanto, o estabelecimento de parâmetros para constatar a responsabilidade internacional do Estado somente começou ganhar contornos mais delineados em 2001, com a finalização do Projeto de Artigos sobre Responsabilidade do Estado por Ato Ilícito Internacional adotado pela Comissão de Direito Internacional da ONU (ONU, 2001).

O referido projeto, adotado pela Comissão de Direito Internacional da Organização das Nações Unidas, em sua 53ª sessão, em 2001, e submetido à Assembléia Geral das Nações Unidas em sua 56ª sessão, cujo texto é parte anexa da Resolução 56/83 da referida Assembléia Geral, datada de 12 de dezembro de 2001, é o instrumento internacional que representaria a codificação do instituto da responsabilidade internacional do Estado e selaria a mudança da lente orientadora da imputação ao Estado infrator da ordem jurídica internacional, não fora a resistência dos próprios Estados, que no seio das Nações Unidas, se encontram divididos entre convencionalistas imediatos, convencionalistas a longo prazo e não-convencionalistas.

O referido projeto, disposto em 59 artigos e estruturado em quatro partes, além de enunciar os princípios gerais que permitem identificar a responsabilidade do Estado, os elementos para sua constatação e a qualificação do fato como internacionalmente ilícito, trata ainda, das conseqüências jurídicas de um fato internacionalmente ilícito, as formas de sua reparação e enuncia os mecanismos de aplicabilidade da responsabilidade internacional do Estado (ONU, 2001).

Nos termos do projeto de artigos, todo ato internacionalmente ilícito do Estado implica a sua responsabilidade internacional, sendo considerado ato ilícito internacional todo comportamento, seja por ação ou omissão, atribuído a um Estado em virtude do direito

internacional, que se constitua em uma violação de obrigação internacionalmente assumida tratado internacional (ONU, 2001).

Afirma ainda o documento que todo comportamento, seja de órgão de Estado, seja de pessoa ou de entidade habilitada ao exercício de prerrogativas de poder público, é considerado um ato de Estado, logo sujeito às conseqüências jurídicas enunciadas na mencionada Convenção (ONU, 2001).

Com efeito, alguns dispositivos do projeto merecem especial atenção por revelarem características bastante peculiares que parecem corroborar a tese de que o princípio da responsabilidade internacional do Estado não tangencia o sistema normativo internacional no que diz respeito aos direitos humanos e, nem tampouco aqueles de ordem econômica, social e cultural previstos no Pacto Internacional de 1966.

Nos termos do projeto de artigos, há violação de uma obrigação internacional assumida por um Estado sempre que seu ato não se mostrar conforme o estabelecido em tratado internacional. Da análise do referido dispositivo, percebe-se que o simples fato de a conduta do Estado estar em desacordo com o que esteja preceituado em tratado internacional já se mostra como elemento suficiente para ensejar sua responsabilização perante a sociedade internacional.

Ao lado do referido dispositivo, cumpre trazer à tona o seu artigo 33 que preceitua ser o portador, assim como o destinatário da obrigação internacional, um Estado, vários Estados ou a comunidade internacional no seu conjunto, em razão da natureza e do conteúdo da obrigação violada e das circunstâncias da violação, prevendo, ainda, a restituição, a indenização e a satisfação como formas de reparação do prejuízo causado em virtude do não cumprimento de obrigação assumida (ONU, 2001).

Resta demonstrado que, segundo o projeto de artigos, o direito de invocar a responsabilidade internacional do Estado é dado aos próprios Estados individualmente ou em grupo, evidenciando e corroborando a realidade seletiva e discricionária que impera na international accountability dos direitos humanos no âmbito das Nações Unidas.

Em que pesem os argumentos de que o indivíduo se torna sujeito de direito internacional com o advento da normativa internacional de proteção dos direitos humanos, constata-se que sua capacidade processual, no âmbito das Nações Unidas, ainda está longe de alcançar níveis satisfatórios de reconhecimento.

Sete anos após sua adoção, não se pode afirmar ainda que se tenha conseguido codificar efetivamente as regras secundárias da responsabilização em direito internacional. Sem se apegar a um certo pessimismo, não se pode também duvidar que se possa dispor de um tal instrumento dentro de um lapso de tempo razoável, restando o direito da responsabilidade às margens do direitos dos tratados, do direito diplomático e consular e da Carta das Nações Unidas.

A dificuldade que se apresente atualmente é entender que o Projeto de artigos é resultante de uma justaposição entre disposições de natureza costumeira e outras de desenvolvimento progressivo, e que essas últimas são as que mais causarão problemas à viabilização do projeto.

Para os convencionalistas imediatos, é preciso adotar uma convenção que abra espaço para as práticas diplomáticas. Para os convencionalistas a longo prazo, é preciso preservar o modelo atual e dar tempo ao projeto de artigos de integrar-se ao corpus normativo pela prática dos Estados e de jurisdições internacionais. Para os não-convencionalista, não há espaço para uma convenção sobre a matéria.

Na realidade, a Assembléia Geral das Nações Unidas, a quem caberá tomar a decisão final sobre o assunto, adota uma certa prudência: ela deixa a porta aberta a uma ou a outra solução. Ao mesmo tempo, ela empreende uma dinâmica que, sem prejulgar a solução final, traduz a vontade de dar tempo ao tempo e não se precipitar, sob o risco de conduzir a uma decodificação da matéria, tática que parece traduzir uma questão de oportunidade, conforme se extrai da análise de suas próprias resoluções4.

Analisando em conjunto o que dispõe o Projeto de Artigos sobre Responsabilidade do Estado por Ato Ilícito Internacional, o estágio atual em que se encontra seu debate, e a sistemática da international accountability dos direitos humanos e, em especial, aquela pertinente aos direitos econômicos, sociais e culturais, vislumbra-se que aquela ainda reflete muito mais os princípios sustentadores da proteção diplomática do que propriamente aqueles invocados para a sustentação da concepção de sujeito de direito enunciada nos pactos internacionais de proteção de direitos humanos.

4 (A/RES/56/83 de 2001); (A/RES/59/35 de 2004) e o Projeto de Resolução preparado em 2007 (A/c.6/62/L.20) que contém quatro disposições: a) recomendação do projeto de artigos à atenção dos Estados; b) solicitação de observações dos Estados sobre decisão tomada sobre o projeto de artigos; c) atualização pelo Secretário Geral de decisões de jurisdições internacionais e outros órgãos internacionais e solicitação de informação sobre a prática interna dos Estados e; d) a Assembléia deverá inscrever este assunto na sua ordem dia da sessão de 2010.

A codificação reinventada, portanto, mostra-se impotente ante a ausência de uma base territorial para sua manifestação ao mesmo tempo em que se mostra impotente diante da multiplicidade dos pontos de referência que, dissolvendo fronteiras deslocam as relações, os processos e as próprias estruturas de dominação, apropriação, integração e antagonismo, enunciando a máxima de que a afirmação do indivíduo, como sujeito de direito internacional, promovida pela normativa internacional de proteção dos direitos humanos, apesar de ser importante, ainda se vê absurdamente subordinada à formação e à estruturação sócio- econômica e política territorial.

2.5 Accountability e responsabilidade: aproximações e distanciamentos entre os dois