• Nenhum resultado encontrado

O monitoramento do respeito aos direitos humanos no plano global, no entanto, não se restringe aos mecanismos convencionais, mas abrang, também, mecanismos

extraconvencionais. Tais mecanismos buscam vincular os Estados, signatários ou não de tratados ou convenções internacionais, sem recorrer às convenções específicas, logo decorrentes de instrumentos outros que não os tratados e convenções internacionais.

Os mecanismos extraconvencionais são, portanto, aqueles decorrentes de resoluções elaboradas por órgãos criados pela Carta das Nações Unidas, como a Assembléia Geral, o Conselho Econômico e Social e a Comissão de Direitos Humanos, entre outros (PIOVESAN, 2005, p. 210).

Nos dizeres de José Augusto Lindgren Alves, a diferença básica existente entre os mecanismos convencionais e os mecanismos extraconvencionais reside nos seus escopos e respectivas formas de atuação. O autor continua:

Os mecanismos convencionais monitoram a implementação pelos Estados-parte dos Pactos e Convenções das obrigações decorrentes de sua ratificação ou adesão aos instrumentos pertinentes, tendo por primeira atribuição o exame de relatórios elaborados pelos governos. Os mecanismos extraconvencionais não recebem para exame relatórios governamentais. Agem por iniciativa própria, a partir das informações que obtêm de todas as fontes idôneas, sejam elas governamentais, não- governamentais ou individuais. São, portanto, muito mais desembaraçados e assertivos, embora seu fundamento “legal” não passe de simples resoluções. E seu campo de observação abrange qualquer país, parte ou não dos tratados internacionais de direitos humanos, membro ou não da Organização das Nações Unidas (ALVES, 1997, p. 243).

Depreende-se da análise da teia constitutiva dos mecanismos da international accountability dos direitos humanos no âmbito das Nações Unidas, no entanto que, assim como a International Bill of Rights, eles encontram fundamento nos princípios basilares de sustentação do jus cogens, cuja forma mais elaborada emergiu na segunda metade do século XX.

Esses são os princípios que revestem de validade a ordem jurídica internacional, que substituem o monopólio do Estado sobre a lei e sobre a jurisdição, abrindo escopo para a emergência de uma outra esfera tanto legiferante quanto jurisdicional: a supranacional.

Trazendo a discussão para o campo da international accountability, no entanto, verifica-se que se os princípios do pacta sunt servanda e da boa-fé corroboram a emergência de uma outra esfera de manifestação do princípio da legalidade, não se pode afirmar o mesmo no que diz respeito ao princípio da igualdade entre os poderes como pressuposto para a eficácia da accountability no âmbito internacional.

No plano das relações internacionais, impera a assimetria entre os atores políticos. Assim, por mais elaboradas que sejam as instâncias supranacionais de proteção aos direitos humanos, elas ainda padecem de uma incomensurável fragilidade no que tange ao elemento constitutivo da accountability denominado de sanção, pelo qual se impõe punição ao Estado violador da norma de proteção aos direitos humanos com valor de jus cogens.

Em que pese haver, no âmbito do direito internacional, sanções desde o dever de o Estado reparar os danos decorrentes de desrespeito à norma de direito internacional até a aplicação de sanções unilaterais por Estados que se sintam lesados em face de determinada conduta de um Estado-parte de um tratado ou convenção, e até mesmo sanções coletivas, impostas pela sociedade internacional, a implementação das sanções ainda se mostra restrita aos sistemas regionais de proteção aos direitos humanos, tal qual aqueles enunciados pela União Européia e pela Organização dos Estados Americanos.

No entanto, considerando o argumento de que os direitos humanos acontecem no âmbito interno de cada Estado pertencente à comunidade internacional, a tese que se defende é que a assimetria de poder não retira dos mecanismos do sistema internacional de proteção dos direitos humanos o caráter de accountability, pois, esses Estados são estruturados na forma de democracias ou poliarquias, dispõem de instâncias, agências, redes de agências e de mecanismos próprios para exigir dos representantes não só o cumprimento das obrigações constantes de tratados internacionais dos quais o país seja parte, mas também das recomendações e das próprias sanções exauridas dos órgãos supranacionais e, ainda, que tais mecanismos constituem como uma importante ferramenta na busca da implementação de um rol de direitos que, historicamente, se viu relegado à vontade única e exclusiva do Estado, protagonista privilegiado até meandros da década de 1960.

Nascidos em um contexto em que se fazia premente o empreendimento de debate público sobre violações notórias e sistemáticas de direitos humanos e liberdades fundamentais em países nos quais persistiam políticas oficias de dominação colonial, discriminação racial e de apartheid, os mecanismos extraconvencionais, na atualidade, apresentam-se como uma importante ferramenta para o reconhecimento, de fato, do indivíduo como sujeito de direito internacional.

Se a Resolução n°. 1235 do Conselho Econômico e Social de 1967, autoriza a Comissão de Direitos Humanos debater em público violações notórias e sistemáticas, a Resolução n°. 1503 de 1970 introduz um verdadeiro “procedimento confidencial de recepção

e processamento de comunicações individuais submetidas a condições de admissibilidade” (RAMOS, 2002, p.152). Na sua origem, a iniciativa da abertura do procedimento destinado a verificar situações de violação de direitos humanos por um Estado competia à Comissão de Direitos Humanos, composta por membros dos próprios Estados-membros das Nações Unidas, os seus desdobramentos, verificados, sobretudo, com o advento da resolução n°. 1503. Essa iniciativa, no entanto, passou a ser estendida também aos indivíduos, que, por meio de petições individuais, passaram a poder atuar como importantes atores na deflagração do início do procedimento.

Os procedimentos extraconvencionais, nesse desiderato, passaram ainda por outras importantes fases de aperfeiçoamento, marcadas, sobretudo, pela criação, em 1975, de grupos de investigação ad hoc, encarregados de investigar a situação de direitos humanos em determinados países e, em 1980, abriu escopo para a constituição também de órgãos especiais de investigação por temas específicos com a criação, no âmbito das Nações Unidas, do Grupo de Trabalho sobre Desaparições Forçadas ou Involuntárias.

Mas as verdadeiras transformações promovidas pelos mecanismos extraconvencionais para a proteção dos direitos humanos no sistema das Nações Unidas foram promovidas quando a Comissão de Direitos Humanos, ainda no final da década de 1980 e início de 1990, passou a aceitar petições individuais e condenar o Estado causador do dano a efetuar ação de reparação, a título de ajuda humanitária e, ainda, enunciar a responsabilidade do Estado por violação de direitos de indivíduos específicos que, no caso do Grupo de Trabalho sobre Detenções Arbitrárias, chegou a adotar decisões que deram forma a um inédito instituto jurídico: o habeas corpus internacional.

Em que pese pairar sobre os procedimentos extraconvencionais a crítica de se apresentarem com altíssimo grau de seletividade, uma vez que os membros da Comissão de Direitos Humanos, apesar de atuarem a título pessoal, são provenientes de algum Estado, não se pode negar sua contribuição para o aperfeiçoamento da international accountability enunciada pelo sistema das Nações Unidas, uma vez que “o número de Estados que vem aceitando ações destes mecanismos extraconvencionais tem fortalecido o instituto da responsabilidade costumeira internacional do Estado por violação de direitos humanos” (RAMOS, 2002, p.165) e contribuído para a afirmação do direito internacional dos direitos humanos como verdadeira norma integrante do jus cogens, logo um verdadeiro direito constitucional internacional.

Por outro lado, a entrada do Conselho de Segurança das Nações Unidas na esfera da proteção aos direitos humanos, sobretudo em face dos conflitos que assolaram a década de 1990, tais como as violações de direitos humanos ocorridas na ex-Iugoslávia, na Somália, na Libéria, na Geórgia, em Angola e Ruanda, acabou por ameaçar o ideário que, às duras penas, vinha se consolidando.

Ao invocar os dispositivos da Carta das Nações Unidas de que compete ao Conselho de Segurança promover ações para garantir a paz e a segurança mundial, O Conselho, ao tratar do tema, o fez padecendo de, no mínimo, legitimidade para consagrar sua atuação. Considerando-se a atual composição do Conselho de Segurança, constata-se que os países com poder de veto, quais sejam, seus membros permanentes – Estados Unidos da América, China, França, Inglaterra e Rússia – acabam por se verem livres da repercussão de sua própria atuação.

Assim, apesar do papel da Corte Internacional de Justiça no controle da legalidade dos atos do Conselho de Segurança, ela ainda se apresenta como uma frágil instituição viabilizadora do aperfeiçoamento dos mecanismos da international accountability das Nações Unidas. A ausência de autonomia de mecanismos efetivos de sanção e interesse em levar a cabo as questões que lhes são apresentadas também, mais o déficit do que propriamente a ausência de accountability no sistema global de proteção aos direitos humanos.

Assim, conforme afirma Ramos (2002, p.183):

seria salutar, pois, uma mudança das atribuições do Conselho de Segurança constante da Carta da ONU para que se explicite o seu papel no processo de responsabilidade internacional do Estado por violações graves de direitos humanos, ao mesmo tempo em que se deve repensar a sua composição. Isso porque, em face de novas incumbências, é razoável pleitear uma maior representatividade da comunidade internacional entre os membros do Conselho de Segurança.

A democratização e a ampliação das instâncias garantidoras da participação e do exercício da oposição pelos membros da comunidade internacional, dentre os quais se ressaltam o indivíduo e as coletividades, que de minorias em minorias acabam por formar uma grande maioria, apresentam-se como importantes questões a serem consideradas na construção de um modelo de sociedade internacional semelhante ao de uma poliarquia, no qual os mecanismos de accountability encontrem ambiente propício para o seu verdadeiro desenvolvimento e possam cumprir o papel que lhe fora atribuído no cenário internacional construído a partir da segunda metade do século XX.

4.3 A international accountability dos direitos humanos econômicos, sociais e culturais da