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O segundo dilema: direitos humanos econômicos, sociais e culturais: mínimos

versus necessidades básicas

O segundo dilema que acompanha o processo de afirmação dos direitos do homem, recorrentemente é lembrado como fruto do desenvolvimento do sistema de produção capitalista, no entanto, sua gênese pode ser observada, assim como os primeiros instrumentos que marcam esse processo, ainda de forma embrionária, em todos os momentos da história dos direitos do homem.

Pereira (2000), a esse respeito, afirma que a idéia de mínimos sociais “é uma medida antiga, que transcende as fronteiras nacionais e excede os limites das sociedades tipicamente mercantis” (p. 15) e, ainda, que

fruto secular das sociedades divididas em classes – sejam elas escravistas, feudais ou capitalistas –, a provisão de mínimos sociais, como mínimos de subsistência, sempre fez parte da pauta de regulações desses diferentes modos de produção, assumindo preponderantemente a forma de uma resposta isolada e emergencial aos efeitos da pobreza extrema. (PEREIRA, 2000, p. 15).

Assim, com essa roupagem de mínimo de subsistência, primeiramente na forma de busca por um lugar no cenário político e, posteriormente, para encontrar meios de sobrevivência, o tema dos direitos humanos, em especial dos direitos sociais, surgem mais precisamente na modernidade, quando o constitucionalismo de direitos passa a tratar a questão social como um problema político.

O dilema apresentado pode parecer de ordem meramente semântica, mas na verdade ele adentra questões conceituais, políticas e estratégicas, com imbricações para o próprio conceito de dignidade humana.

Se o mínimo, conforme afirma Pereira (2000, p. 26), apresenta a conotação de “menor, de menos, em sua acepção mais íntima, identificada com patamares de satisfação de necessidades que beiram a desproteção social”, o básico, não. Para a autora, “o básico expressa algo fundamental, principal, primordial, que serve de base para a sustentação indispensável e fecunda ao que a ela se acrescenta”, ou seja, o mínimo nega, ao passo que o básico prepara o terreno para impulsionar a satisfação básica de necessidades em direção ao ótimo, por conseguinte, rumo à construção de uma concepção de direitos mais próxima do conceito de dignidade humana.

Hannah Arendt (2007), em uma das célebres passagens da obra Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal, talvez possa esclarecer melhor a diferenciação entre mínimo e básico na construção de um conceito de dignidade humana:

De vez em quando, a comédia despenca no horror, e resulta em histórias – provavelmente verdadeiras – cujo humor macabro ultrapassa facilmente todo invento surrealista. A história do infeliz Kommerzialrat Storfer, de Viena, contada por Eichmann durante seu interrogatório na polícia, era desse tipo. Eichmann recebeu telegrama de Rudolf Höss, comandante de Auschwitz, revelando que Storfer havia chegado e solicitava urgentemente ver Eichmann. “Eu disse comigo mesmo: tudo bem, esse homem sempre se comportou bem, vale a pena [...] Eu mesmo vou lá e vejo qual é o assunto dele. E vou até Ebner [chefe da Gestapo em Viena], e Ebner diz assim – só me lembro vagamente – ‘Se ele pelo menos não fosse tão desastrado; ele se escondeu e tentou escapar’, alguma coisa assim. E a polícia o prendeu e mandou para o campo de concentração, e segundo as ordens do

Reichsführer [Himmler], ninguém podia sair, depois de entrar num deles. Nada se podia fazer. Nem o dr. Ebner, nem eu, nem ninguém podia fazer alguma coisa a respeito. Fui para Auschwitz e pedi a Höss para ver Storfer. ‘Claro, claro [Höss disse], ele está num dos grupos de trabalho forçado’. Com Storfer, depois, bom, foi

normal e humano, tivemos um encontro normal, humano. Ele me falou de todo o seu sofrimento, sua dor: eu disse: ‘Bom, meu querido amigo [...] sobrou para nós!

Que falta de sorte’. E eu disse também: ‘Olhe, eu não posso mesmo ajudar você, porque as ordens do Reichsführer são de ninguém sair. Não posso tirar você. O dr. Ebner também não pode. Soube que você cometeu um grande erro, que você se escondeu ou quis se trancar, coisa que afinal, você não precisava fazer’. [Eichmann queria dizer que Storfer, como funcionário judeu, tinha imunidade da deportação]. Não me lembro a resposta dele. E aí perguntei como estava. E ele disse, bem,

perguntou se não podia ser dispensado do trabalho, que era trabalho pesado. E eu então disse a Höss: ‘Storfer não vai ter de trabalhar! ’ Mas Höss disse: ‘todo mundo trabalha aqui’. Então eu disse: ‘Certo, vou escrever uma nota para solicitar que Storfer fique cuidando dos caminhos de cascalho com uma vassoura’, havia uns caminhos de cascalho lá, ‘e que ele tem o direito de sentar com sua vassoura num dos bancos’. [Para Storfer] eu disse: ‘Está bom assim, sr. Storfer? Está bom para o senhor? ’. Com isso ele ficou muito contente, e apertamos as mãos, e ele recebeu a vassoura e sentou no banco. Isso foi uma grande alegria interior para mim, poder ao menos ver esse homem, com quem trabalhei durante tantos anos, e ver que podíamos conversar”. Seis semanas depois desse encontro normal, humano, Storfer foi morto – aparentemente não na câmara de gás, mas fuzilado (grifos nossos) (ARENDT, 2007, p. 63-64) (grifo meu).

Os horrores cometidos durante a Segunda Guerra Mundial deixam mais claros os embates entre a concepção de dignidade humana pautada em direitos mínimos e necessidades básicas do ser humano. Na passagem descrita por Hannah Arendt (2007), o direito de ficar cuidando dos caminhos de cascalho e de ficar sentado em um banco com a vassoura, concedido a Storfer por Eichmann, reflete uma das nuances ensejadas pelo dilema em um momento único da história da humanidade: a vigência de um Estado totalitário que cometera violações sem precedentes à dignidade humana sob o amparo da lei.

No entanto, o dilema direitos mínimos e necessidades básicas, quando enfrentado pela a ótica universalista dos direitos humanos evidencia que, uma concepção, no mínimo oblíqua, se estabelece quando a questão dos direitos do homem é apresentada pelo confronto entre necessidades humanas e necessidades biológicas.

No que tange aos direitos sociais isso torna-se ainda mais claro quando, após a Segunda Guerra Mundial, com a consagração do ideário neoliberal, a noção de mínimos sociais passou, abertamente, a prevalecer sobre a noção de necessidades básicas como pressuposto para o alcance de padrões ótimos não só de sobrevivência, mas também, de reconhecimento do homem como verdadeiro sujeito de direito tanto no plano interno quanto no plano internacional.

Vislumbra-se, portanto, da normativa constitucional e internacional de proteção dos direitos humanos de ordem econômica, social e cultural, construída tanto nos períodos que antecederam a Segunda Guerra Mundial, quanto nos momentos que a sucederam, que os instrumentos enunciadores dos ditos direitos se furtaram de enfrentá-los na perspectiva da

otimização da satisfação de necessidades humanas básicas, limitando-se a enunciar direitos capazes de prover as necessidades biológicas de um ser vivente e não as de um ser humano considerado na sua totalidade. Tornava-se evidente a primazia da dimensão natural sobre a dimensão social e humana na especificação de direitos, comprometendo, por conseguinte, a própria definição objetiva e universal dos direitos humanos, mais especificamente aqueles destinados às parcelas menos favorecidas de uma sociedade estruturada em classes.

Depreende-se que, para uma concepção verdadeiramente universal, interdependente, inter-relacionada e indivisível dos direitos humanos, necessário se faz trazer à tona, no plano das relações internacionais, o debate referente à real fundamentação dos direitos humanos preceituados pelo contemporâneo direito internacional. Compreendidos como mínimos sociais, a serem realizados de acordo com os recursos disponíveis, desvencilhado da premissa da necessidade de uma verdadeira cooperação internacional, os direitos sociais não passarão de um ardil endereçado à pobreza e não uma máxima a orientar sua formulação e materialização como necessidades básicas, com padrões ótimos para permitir a realização da tão almejada dignidade humana por meio do reconhecimento, por completo, do homem como sujeito de direito, e dos direitos econômicos, sociais e culturais não como benesses ou favores concebidos e concedidos por práticas políticas relativistas e seletivas, mas como verdadeiros direitos capazes de tornar o homem detentor do direito de participar e de usufruir da herança social.

Dessa forma, à luz desses dois dilemas, busca-se uma reconstrução histórico-social do ideário fundamentador dos direitos humanos, tanto no plano constitucional como internacional para, então, compreendê-los como ponto de partida e não de chegada da sociedade internacional rumo à consagração, ao menos do ponto de vista formal-regulatório, dos direitos econômicos, sociais e culturais como verdadeiros direitos capazes de orientar práticas políticas ótimas e não mínimas no que concerne ao modo como o ser humano venha a ser tratado pela instituição estatal no século XXI. Deve-se revestir de verdadeiro sentido os mecanismos da international accountability dos direitos humanos enunciados pela International Bill of Rigths das Nações Unidas, preceituada, sobretudo no Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966.

Pautadas na idéia de mínimos sociais, as práticas políticas destinadas a atacar a questão social não conseguem atingir outro objetivo senão o de negar, segregar, excluir e contribuir cada vez mais para a produção e reprodução da pobreza e da miséria que assola parcelas crescentes da sociedade contemporânea, que faz com que o homem não só perca a

sua comunidade e seja expulso da humanidade, o que implica perda de todos os direitos humanos, até mesmo sua própria qualidade essencial de homem (ARENDT, 1989)5.