• Nenhum resultado encontrado

A responsabilidade internacional do Estado e o projeto territorializante da

Com origem no direito romano, “que se fez muito elaborado, a partir de seu núcleo originário, para organizar as relações pessoais e o tráfico de bens em âmbito territorial vastíssimo e socioculturalmente plural” (CAPELLA, 2002, p.61), o princípio da responsabilidade internacional do Estado, que, contemporaneamente, enuncia o dever de reparar os danos causados por suas condutas em face de indivíduos pertencentes a outros Estados, no próprio direito romano apresenta-se com características bastante peculiares.

Conforme afirma Capella (2002, p.66),

o direito tradicional da cidade de Roma foi chamado de ius quiritium (quiris é o nome antigo do cidadão romano) ou direito quiritário, ou ius civile, no sentido de direito da cidade. Quando a cidade-estado se converteu em um império, sem embargo, os romanos não trataram de impor o direito de sua cidade a todos os povos ou comunidades que chegaram a formar parte dele, senão que limitaram esta imposição ao que lhes parecia imprescindivelmente (por exemplo, o estatuto das pessoas) e deixaram em vigor ao menos parcialmente os costumes e normas jurídicas das comunidades politicamente dominadas. As normas não romanas compunham o que chamavam o ius gentium, ou direito(s) dos (demais) povos ou pessoas. O ius gentium, baseado no conceito de boa-fé, servia para regular as relações entre quem não era cidadão romano.

3 Nos termos do que preceitua o projeto de resolução A/c.6/62/L.20 de 09 de novembro de 2007, a Assembléia Geral das Nações Unidas deverá inscrever este assunto na sua ordem do dia da sessão de 2010.

Dessa forma, o direito romano, complexo por sua própria natureza, se apresentava com as vestes de um direito parcialmente não-estatal, pois pautado pela validação de normas também não ditadas pela autoridade do Estado, pode ser considerado o inaugurador dos mecanismos de regulação social que extrapolam a figura da entidade estatal. Quando fez seus “os pactos e a moralidade pré-existente, juridificou os mecanismos extra-jurídicos de regimentaçao social” (CAPELLA, 2002, p.67), abrindo caminho para a consolidação, muitos séculos depois, do princípio da responsabilidade internacional, a que ultrapassa a fronteira territorial, física ou geográfica, ou simbólica, da entidade estatal.

Embora sua forma embrionária se encontre no direito romano, o princípio da responsabilidade internacional do Estado decorrente da forma como trata seus não-cidadãos, somente apareceu revestido de pressupostos formais com o advento da Magna Carta, em 1215, sob a forma de proteção diplomática, exercido por meio das cartas de represália.

As cartas de represália podem ser compreendidas como o “sistema pelo qual o indivíduo, que sofreu algum dano em território estrangeiro, apela para o Estado de sua nacionalidade, para que este exija reparação do Estado estrangeiro responsável pelo dano” (RAMOS, 2004, p.43).

Conforme a geometria fragmentária e descentralizada da ordem política medieval, a Magna Carta de 1215 pode ser considerada não só o embrião enunciador do princípio formal da responsabilidade internacional do Estado como também o primeiro instrumento jurídico garantidor dos direitos do indivíduo, em face das arbitrariedades cometidas pelo monarca, sobretudo, contra a propriedade privada.

A importância da Magna Carta de 1215, no entanto, não está no enunciado do direito, no caso, o direito de propriedade, mas estabelecer a primeira forma de limitação institucional do poder, sinalizar para a futura separação institucional entre Igreja e Estado e, também, desvincular da pessoa do monarca tanto a lei quanto a jurisdição (COMPARATO, 2003).

No que tange ao dever de reparar eventuais danos causados a estrangeiros, a Magna Carta preceituava:

Todos os comerciantes serão livres para sair da Inglaterra e nela ingressar, com toda segurança, para permanecer e viajar em seu território, por via terrestre ou aquática, para comprar e vender segundo os costumes antigos e válidos, sem terem que pagar taxas injustas, exceto em tempo de guerra e se eles pertencerem a alguma terra que esteja em guerra conosco. E se estes mercadores estiverem em nossa terra no começo da guerra, ficarão detidos, sem dano para suas pessoas ou bens, até que nós, ou nossas autoridades judiciárias, tomemos conhecimento da maneira como são tratados os nossos comerciantes que se encontravam na terra que se acha em

guerra conosco, quando foi deflagrado o conflito, e se os nossos se acharem seguros por lá, os comerciantes estrangeiros também ficarão seguros em nossa terra (apud COMPARATO, 2003, p.83).

Com as vestes da proteção diplomática, nesse contexto, a responsabilidade internacional do Estado, apresenta-se como um direito de o próprio Estado exigir determinado tratamento para seus súditos, o que não implicou uma obrigação de reconhecimento do indivíduo como o titular do direito resguardado, mas de tratar o indivíduo como elemento constitutivo do Estado, logo, sob o poder de mando de outra autoridade, diversa da sua.

No contexto da ordem política medieval, o instituto da responsabilidade internacional do Estado, por tratar de indivíduos que não são seus súditos, nasceu do controle que o Estado exerce sobre determinado território e encontra seu fundamento no suposto dever internacional de garantir tratamento considerado internacionalmente adequado aos estrangeiros em seu território.

A proteção diplomática, nesse sentido, tendo como pilar de sustentação a nacionalidade do indivíduo, enunciava o dano ao estrangeiro como um dano indireto causado ao Estado ao qual o indivíduo pertencia, afirmando, na verdade, não o direito do indivíduo, mas o direito de o Estado ver respeitadas as regras de um direito internacional estabelecido precipuamente pelos costumes internacionais.

Em que pese seu caráter seletivo e discricionário, pois, por se tratar de um direito do Estado, podia ou não ser por ele exercido, o instituto da proteção diplomática não deixa de ter relevância para o processo de afirmação tanto dos direitos humanos quanto dos mecanismos que, contemporaneamente, enunciam a international accountability dos direitos humanos.

Ao lado do processo de afirmação dos direitos humanos, que encontram nos movimentos revolucionários do século XVIII, ambiente fértil para sua geminação, o princípio da responsabilidade internacional do Estado gradualmente passou a contemplar situações cada vez mais amplas.

Os movimentos revolucionários do século XVIII não reconheciam senão a burguesia como beneficiária da afirmação da idéia dos direitos humanos como preceito ético-ideológico universal. Por outro lado, não se pode negar que o rol de indivíduos que passaram a se beneficiar do instituto, ou seja, a serem reconhecidos como sujeitos de direito pelo Estado ao qual pertenciam era substancialmente maior que aquele expresso na Magna Carta de 1215.

No entanto, apesar de reconhecer um número bastante maior de sujeitos de direitos, os movimentos revolucionários do século XVIII, tidos como o marco do nascimento e da afirmação dos direitos humanos como preceito ético-ideológico universal, não foram capazes de promover grandes transformações no que tange ao princípio da responsabilidade internacional do Estado.

Incorporando o ideário axiológico fundamentador dos direitos do indivíduo aos seus ordenamentos jurídicos, os Estados que se fundavam vinculavam ainda mais o reconhecimento do indivíduo ao território sobre o qual exerciam seu domínio.

Se é certo que a construção do território é tão antiga quanto as civilizações, a adoção do princípio da territorialidade como elemento fundamentador da ordem jurídica e determinante do locus de manifestação do poder político é uma construção moderna, que adveio do nascimento do Estado moderno.

No campo da política, uma das mais marcantes contribuições da modernidade foi a de definir o marco da centralidade e da unidade territorial institucional do poder político. O Estado é o grande viabilizador da delimitação territorial, condição sine qua non para o exercício do mando e da obediência, segundo normas e leis estabelecidas e reconhecidas como legítimas, sendo possível, legalmente, a coerção física em caso de desobediência (CASTRO, 2005).

Ao mesmo tempo em que a fronteira se torna fonte de proteção, instrumento de emancipação e arma de segurança, também se constituía em ameaça e insegurança, pois sua violação passava a ser circunstância autorizadora da guerra.

A afirmação, portanto, de um direito de solo, mais forte que o direito de sangue, selou a superveniência do lugar quando se busca, na relação com o outro, a definição da identidade, que passava a ser territorialmente constituída, mais do que culturalmente dada, inaugurando, conseqüentemente, uma noção de cidadania bastante distinta daquela existente entre os gregos.

Procedendo do solo, as comunidades políticas, que emergiram com o desmoronamento do ideário constitutivo fundamentador da ordem medieval, puseram à parte as identidades religiosas, lingüísticas, clãs ou de rusticidade que, por sua vez, perderam as suas pretensões de serem fontes de autoridade. Anunciando ou facilitando a idéia de espaço público, o princípio da territorialidade, no contexto da modernidade, era o portador da liberdade e da igualdade e,

ainda, o anunciador de uma cidadania, cuja vocação era impor-se para além das alianças comunitárias (BADIE, 2005).

Dotando-se de fronteiras, vinculando-se ao solo e desprendendo-se das amarras identitárias tradicionais e religiosas, o Estado, que começou a se constituir no final da Idade Média, assumiu o contorno absolutista característico da Renascença, amparado em um conceito de soberania absoluta e, ainda, na idéia de que todo o poder emana do rei e em seu nome é exercido.

A grande ruptura inaugurada por Maquiavel e Bodin acabou por abrir os caminhos para a constituição do arquétipo de um Estado que espacializava as comunidades políticas, compondo-as, recompondo-as e, sobretudo, limitando-as – um arquétipo traçado com base no território e no princípio da territorialidade.

Da mediação territorial, portanto, deriva o concerto das nações: ele resulta, ao mesmo tempo, de um laço e de um momento da história da cena mundial. No seu momento internacional, a Nação se identifica, em termos de territórios contíguos e soberanos, de Estados-Nações, de povos que apenas existiam pelo seu suporte territorial, de soberanias que não se compreendiam nem se avaliavam senão por oposição à ingerência, de fronteiras que deviam ser seguras e reconhecidas, um território com o direito de herança, mas não de transformação.

Conseqüência suprema, o território, nesse contexto, era o elemento que distinguia o interno do externo, aquilo que era estrangeiro daquilo que não o era; o território permitia designar o bárbaro, o estrangeiro, o outro, aquele que se podia combater, mas com quem se podia também falar (BADIE, 2005).

A respeito do lugar do indivíduo nesse cenário, em que pese essas grandes transformações terem promovido uma sensível transformação nas relações do indivíduo com o Estado, universalizando e secularizando o que antes era tido como fatores determinantes de sua condição na sociedade, o indivíduo continuava relegado à sua própria sorte, pois o único sentimento de pertença que essa estrutura lhe permitia desenvolver era aquela relacionada ao território.

O princípio da responsabilidade internacional do Estado, nesse contexto, aparecia amparado no princípio da territorialidade, fundamentando uma ordem jurídica e política que, por sua vez, encontrava no direito de soberania sua principal base de sustentação.

Ainda com as vestes da proteção diplomática, nesse Estado que surgia, o princípio da responsabilidade internacional do Estado pode ser visto como consagrador da idéia de que os direitos do indivíduo são assuntos de interesse interno dos Estados aos quais esses indivíduos pertençam. Assim, apesar de reconhecer o indivíduo como sujeito de direito, os movimentos revolucionários do século XVIII, bem como as ordens jurídicas que se fundavam, não promoveram grandes transformações no instituto da responsabilidade internacional do Estado, mas somente o reafirmaram como direito do Estado.

O reconhecimento do indivíduo como sujeito de direito pode ser considerado como o marco da redefinição das bases do Estado moderno, que ganhou novas feições a partir do final do século XVII.

O Estado constitucional, fruto das revoluções dos séculos XVII e XVIII, que passou a ter seu poder limitado pela lei e pelos próprios direitos individuais, se apresentava, nesse contexto, ainda ligado ao elemento territorial. A consagração dos limites físicos de repercussão da lei era seu pressuposto de validade.

Aproveitando-se da desintegração das formas políticas medievais e da unidade de ação proporcionada pela cristandade, o princípio da territorialidade não só subverteu as tradicionais práticas de governo e de construção da autoridade na Europa, como também inaugurou uma nova forma de organização política, o Estado nacional, que consolidou os recursos materiais e a autoridade política e militar em torno do príncipe, transformando-se na principal instituição política do Ocidente (LESSA, 2005).

Constata-se com a ascensão do princípio da territorialidade nesse primeiro momento de construção do projeto da modernidade não só o apoderamento, pelo Estado, do próprio território, mas também dos indivíduos que ali se encontravam.

O Estado-Nação criou uma nova forma de vínculo, diferentemente da territorial, um vínculo fundado na soma das identidades, das vontades, da racionalidade com o princípio da territorialidade, lugar em que elas se manifestavam.

Vale dizer que os novos vínculos de pertença permitiram aos indivíduos serem reconhecidos como sujeito de direito. Por pertencerem a uma dada realidade, que converge fatores de aproximação entre os indivíduos, permitia-lhes se identificarem por suas semelhanças.

O território não se apresentou mais, desde então, com a mesma roupagem com que o fizera no momento de ruptura com a ordem política medieval. O território no qual os direitos humanos se ampararam no momento pós-revolucionário já apresentava nuances de um espaço que não pressupunha somente a idéia de pertença a um espaço político, mas de um espaço público que transcendia as fronteiras do próprio Estado-Nação. Esse espaço formou-se com a congruência de zonas comuns que ligava a vida de todos os indivíduos e também de todos os Estados, jurídica e politicamente reconhecidos perante a comunidade internacional.

As declarações de direitos Norte-americanas e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, da Revolução Francesa, dessa forma, traduziam mais que direitos do indivíduo. Traduziam a idéia de um indivíduo que não só pertence a um dado território, mas que nele encontra o ambiente propício para o desenvolvimento dos vínculos de pertencimento.

Os direitos do indivíduo, que nasceram com os movimentos revolucionários do século XVIII, amparados no princípio da territorialidade, são tidos como importante ferramenta para o desenvolvimento da idéia de nação que permeou o ideário político do final do século XVIII até o início do século XIX. O Estado, assim como o direito e também os direitos do indivíduo, foram lançados em uma ordem política com uma nova geometria, que redefiniu os rumos das instituições políticas e das relações internacionais.

Reconhecendo o indivíduo como titular de direitos, o que permanece dos movimentos revolucionários do século XVIII é que eles não só trataram de estabelecer os pressupostos para a constitucionalização de direitos, pois foi sob o impacto das grandes revoluções que as primeiras constituições escritas foram produzidas, enunciando em seus textos os direitos do indivíduo como fundamentais à vida do Estado, como também estabeleceram as bases para o reconhecimento do princípio da dignidade humana, independentemente de seu vínculo territorial.

Em relação ao projeto territorializante da modernidade para os direitos humanos, a sua afirmação como preceito ético-ideológico universal e como direito juridicamente exigível do Estado que se formava, não contribuiu necessariamente para o aperfeiçoamento dos mecanismos de responsabilização do Estado no âmbito da sociedade internacional.

A inauguração de novas formas de responsabilização internacional do Estado por violações dos direitos humanos somente ganhou novas feições com o advento do terceiro momento do processo de sua afirmação, o da internacionalização, quando o princípio da territorialidade perdeu a centralidade da cena e preparou o terreno para a ascensão do

princípio da dignidade humana, independentemente da condição de pertença do indivíduo a um território ou a uma nação.

2.3 A Responsabilidade internacional do Estado em face à desterritorialização dos