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O primeiro dilema: constitucionalismo versus internacionalismo

Partindo da premissa de que, historicamente, o ideário fundamentador dos direitos humanos encontra-se ancorado, amplamente, nas práticas estatais, elas podem ser vistas de cinco perspectivas.

O primeiro momento de aparição de um aparato normativo embrionário de proteção aos direitos do homem refere-se a um movimento que pode ter suas bases fincadas em quatro aspectos básicos: filosófico, religioso, político e social.

A abordagem filosófica implica recuar a algumas das fontes mais remotas, presentes ainda na Antiguidade Clássica, tais como o estoicismo grego, por volta do século II ou III antes de Cristo, e a Cícero e Diógenes, na Roma Antiga.

No tocante ao aspecto religioso, faz-se necessário o recuo às escrituras do Antigo Testamento, mais precisamente, ao Sermão da Montanha.

Politicamente, sem sobra de dúvidas o marco do processo regulatório formal encontra- se na construção das noções apresentadas na Magna Carta de 1215, celebrada na Inglaterra entre o Rei João Sem Terra, os barões e o clero.

Socialmente, talvez o processo mostre-se um pouco mais complicado, pois, por essa via, compreender a processo de afirmação das idéias políticas fundamentadoras da instituição estatal e também dos direitos humanos demande a análise dos motivos e forças sociais que interferiram em cada momento, para impulsionar, retardar ou modificar o curso e a efetividade da atuação estatal na formação de um ideário justificador da existência de direitos do homem na sociedade.

O constitucionalismo, como movimento que buscou sistematizar e positivar o ideário político fundamentador e constitutivo do Estado enquanto instituição soberana encontra suas bases, por certo, ainda na Antiguidade Clássica, quando as ideais políticas ainda se faziam expressar iminentemente por meio da filosofia, somente começando a se apresentar na forma de leis e direito, com a ascensão do Império Romano.

Tendo como pressuposto o intenso processo de conflitos religiosos e territoriais que permearam toda a Idade Média, o constitucionalismo que surgiu ainda no século XVII, sob a guarda dos princípios enunciados no Tratado de Vestfália (1648), buscava construir um aparato de Estado que não somente resguardasse suas fronteiras territoriais, mas, sobretudo, que dispusesse de parâmetros legais mínimos para o estabelecimento da segurança individual e institucional por meio da consagração dos direitos de liberdade e propriedade como direitos fundamentais a enaltecer não a condição do indivíduo em face da instituição nascente, mas como parâmetros básicos para a manutenção da segurança do próprio Estado.

Assim, o aparato de Estado que nasceu do constitucionalismo ancorava-se amplamente na premissa de que, para a própria sobrevivência do Estado como instituição, era necessária se a sua afirmação, social, política e jurídica internamente, por meio de seus próprios ordenamentos jurídicos capazes de traduzir os preceitos éticos, ideológicos e costumeiros que perpassaram por toda sua história. Nesse contexto, as constituições escritas do final do século XVIII tiveram papel fundamental na construção do ideário de que, acima das leis do Estado, nada há de prevalecer a não ser o direito de emprego do uso da força em caso de agressão externa.

Assim, deu-se a primeira aparição formal, jurídico-constitucional dos direitos do homem: direitos afirmados internamente, por meio do aparato jurídico de cada Estado, a ser promovido de acordo com seus próprios e únicos interesses, de modo a corroborar a idéia que subsistiu até o advento do século XX, quando a premissa de que a forma como o Estado trata seus membros é assunto de interesse único e exclusivo do Estado de que fazem parte ou no qual se encontram.

Até o século XX, porque, com as atrocidades cometidas durante as duas grandes guerras que marcaram o período, restou claro que o direito constitucional, por vezes, pode se tornar uma arma de destruição em massa, no entanto, também se apresentava como a única arma de que dispunham países periféricos para restarem em pé de igualdade com os países dominantes.

Os acontecimentos da Segunda Grande Guerra, no entanto, têm como pressuposto influenciar a humanidade, ou ao menos a comunidade de Estados existentes, de que a arbitrariedade e o inusitado é uma constante nas práticas estatais e, portanto, uma nova forma devia ser inaugurada a respeito da atuação dos Estados no cenário internacional e, por conseguinte, na forma como eles tratam seus membros. Esse movimento, com a denominação de internacionalismo, foi marcado pela adoção da Carta das Nações Unidas (1945), pela criação da Organização das Nações Unidas e, ainda, pela adoção da Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948).

Em que pese a forma excepcional e inédita como tais preceitos foram enunciados nos textos dos referidos tratados, resta evidenciado, do ponto de vista social, tanto no que diz respeito ao exercício do direito de soberania quanto aos esforços empreendidos para a consagração dos direitos do homem. O constitucionalismo, como crença liberal de que fora do direito não há salvação, ainda permanece como um forte entrave no aperfeiçoamento das relações internacionais e no próprio direito internacional.

Por outro lado, a outra face do dilema entre constitucionalismo versus internacionalismo, no processo de construção de um direito internacional de proteção aos direitos humanos é que o internacionalismo também não se vê completamente desprovido de suas responsabilidades no retardo do desenvolvimento e materialização dos objetivos enunciados nos tratados estabelecidos após a Segunda Guerra Mundial.

A afirmação de Norberto Bobbio (1992) de que o problema dos direitos humanos não é mais filosófico, mas jurídico-político e, ainda, que não se trata de saber quais e quantos são

esses direitos, qual é sua natureza e seu fundamento, se são históricos, absolutos ou relativos, mas sim o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar, das solenes declarações, eles sejam continuamente violados, além de não se mostrar como uma saída satisfatória para o dilema em tela, acaba por acentuar ainda mais as discrepâncias e intolerâncias decorrentes do embate entre teorias universalistas e teorias relativistas culturais.

De fato, talvez as grandes questões a serem estabelecidas no enfrentamento do discurso da resistência e realizabilidade dos direitos humanos na contemporaneidade ainda sejam de ordem fundamentalmente filosófica, histórica, política, ideológica e também social.

Os discursos discrepantes entre constitucionalistas e internacionalistas ainda se apresentam como grandes e importantes entraves na busca pela garantia dos direitos humanos, em particular, os direitos econômicos, sociais e culturais, como parâmetros satisfatórios de políticas necessárias não só à sobrevivência da humanidade, mas também, ao tratamento digno do indivíduo como membro dessa coletividade. Se o discurso se mostra atravancado ainda no plano conceitual, como enfrentar o dilema existente, na prática, entre Estados, sociedade e comunidades nacionais e internacional, traduzidos em intolerância, discriminação e exclusão social? Este talvez seja o grande dilema a ser levado a cabo pelos teóricos dos direitos humanos para sua realização com base no diálogo que permita reconhecer, de fato, nos direitos humanos, alguma premissa capaz de mostrá-los como verdadeiros direitos multiculturais, parte integrante de uma sociedade não mais nacional, mas cosmopolita, inter- relacionada, interdependente e indivisível, assim como os próprios direitos enunciados na Declaração de 1948 e reafirmados na Declaração de Viena de 1993 (SANTOS, 2003).