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Accountability: funções sociais versus forças sociais

A visão tradicional de que os diferentes poderes existentes na instituição estatal são representantes de diferentes forças sociais presentes em dada organização societária foi sustentada e considerada válida até o final do século XVIII, quando eclodiram as grandes revoluções e, também, as significativas transformações por que passaram os Estados a partir de então.

A concepção de Montesquieu (1995) relativa à separação dos poderes deixa claro que representadas eram as ordens sociais, os estamentos, tais como o monarca, a Câmara Alta, que representava a nobreza, e a Câmara Baixa, representando a burguesia. A divisão, de fato, se dava no âmbito das funções existentes no Estado, todas elas exercidas pelo monarca:

Há, em cada Estado, três espécies de poderes: o poder legislativo, o poder executivo das coisas que dependem do direito das gentes, e o executivo que depende do direito civil.

Pelo primeiro, o príncipe ou magistrado faz leis por certo tempo ou para sempre e corrige ou ab-roga as que estão feitas. Pelo segundo, faz a paz ou a guerra, envia ou recebe embaixadas, estabelece a segurança, previne as invasões. Pelo Terceiro, pune os crimes ou julga as querelas dos indivíduos. Chamaremos este último o poder de julgar e, o outro, simplesmente o poder executivo do Estado (MONTESQUIEU, 1995, p.118-119).

Essas três funções estatais, portanto, representavam as forças sociais existentes à época.

A visão tradicional, no entanto, foi contraditada por ocasião da queda das monarquias na Europa e ascensão de uma nova forma de governo, a republicana e, também, um novo sistema de governo, o presidencialismo, criado ineditamente por força da independência dos Estados Unidos da América.

Com o advento dessa nova forma de organização estatal, todos os ramos do governo passaram a ser tidos como agentes do povo, ou seja, existem categorias institucionais diversas para uma só categoria social, e as diferenças residem tão-somente nas funções exercidas pelas categorias institucionais.

Tal concepção, pautada em uma divisão racional e funcional do poder do Estado, estabeleceu uma neutralidade entre as categorias institucionais, de modo a outorgar-lhes igualdade e autonomia na defesa da proteção de cada poder em relação a interferências ou ingerências dos outros poderes juridicamente constituídos.

Por outro lado, ao consagrar como força ou categoria social um só agente, o povo, a inovação apresentada pelo federalismo norte-americano preparou terreno para a consagração do instituto da accountability, embora de forma embrionária e também bastante seletiva.

Trata-se de uma forma embrionária porque não é exercida senão por meio do sistema dos checks and balances, que apresentava como objetivo precípuo o exercício do controle das funções sociais pelas próprias funções sociais, autônomas, independentes e inter-relacionadas.

Por certo que a história mostrou que, de fato, o federalismo norte-americano tentou proteger as categorias institucionais das forças sociais, donde se depreende que a própria estruturação da doutrina dos checks and balances nunca pretendera empreender o exercício do controle das funções sociais por meio da cidadania, mas tão-somente, como forma de contrabalancear os interesses das forças sociais, restringindo o poder popular, o que se pode perceber na própria leitura do Federalista n° 63, em que Madison ressalta a importância do controle exercido pelo Senado a fim de conter as paixões da Câmara Baixa:

[...] As the cool and deliberate sense of the community ought, in all governments, and actually will, in all free governments, ultimately prevail over the views of its rules; so there are particular moments in public affairs when the people, stimulated by some irregular passion, or some illicit advantage, or misled by the artful misrepresentations of interested men, may call for measures which they themselves will afterwards be the most ready to lament and condemn. In these critical moments, how salutary will be the interference of some temperate and respectable body of citizens, in order to check the misguided career, and to suspend the blow meditated by the people against themselves, until reason, justice, and truth can regain their authority over the public mind? (MADISON; HAMILTON; JAY, 1987, p. 371)

A forma era seletiva, porque, além de estar bastante distante da extensão do sufrágio universal, o indivíduo ainda se encontrava no centro das atenções conforme esse modelo de instituição que então se construía. Considerando-se que o conceito de cidadania não se estendia em seu patamar máximo – como ainda não o faz nos dias atuais – o sistema dos checks and balances, por ser fechado em si mesmo, atua mais como instrumento de contenção das forças sociais do que propriamente como instrumento de accountability.

Nesse sentido, as forças ou categorias sociais somente passaram a integrar, como sujeito ativo, o mecanismo da accountability, por ocasião da consagração e extensão do sufrágio universal e de seu reconhecimento como sujeito de direito na forma mais ampla, sendo-lhe reconhecido o direito não só de participar do processo decisório, mas também, de

usufruir e gozar dos benefícios da herança social, por suposto, do ponto vista formal- regulatório.

Por certo que o caminho percorrido e o espaço alcançado pelo indivíduo no seio da instituição estatal exerceu papel fundamental no processo de transformação dessa forma embrionária de accountability fundada nos moldes do federalismo norte-americano.

A ampliação do próprio conceito de cidadania que começava a ser trilhada com o advento das Declarações de Direitos do século XVIII e que atingiu sua forma mais elaborada após a Segunda Guerra Mundial, lançou o indivíduo e a própria instituição estatal em uma seara bastante diferente daquela que imperou em seu momento inaugural.

Ampliando o rol de direitos e, por conseguinte, de sujeitos de direitos, as transformações a que a história assistiu, a partir de então, foram revestidas de intensas lutas sociais, das quais resultaram o reconhecimento, também, de novas forças sociais com poder de fogo no processo de ampliação do conceito de accountability e seus respectivos mecanismos de exercício.

Transpondo a barreira do individualismo típico do século XVIII, o constitucionalismo de direitos deixou sua contribuição na ampliação dos conceitos de cidadania e de accountability, pois os direitos e sujeitos de direitos não mais se restringem nem a ordens, nem a estamentos, nem tampouco, à figura do indivíduo relegado a si mesmo.

A sociedade civil, reconhecida pela maioria dos textos constitucionais contemporâneos como um sujeito de direito, passou a gozar de legitimidade para agir em nome de coletividades que também integram o rol de forças sociais na instituição estatal e sua atuação em rede com os poderes juridicamente constituídos passaram a ser consideradas forças capazes de fazer repercutir a vontade coletiva em detrimento da vontade individual ou corporativa.

Os movimentos e lutas sociais, nesse contexto, em suas mais variadas formas, e impulsionados pelas mais diversas ideologias, acabaram atuando, nas contemporâneas formas de Estados, como pressuposto para o aperfeiçoamento dos mecanismos de accountability vertical e, em momento mais atual, contribuindo para a diminuição do déficit de accoutability horizontal, especialmente, quando, impulsionados pela nova feição das relações internacionais, o direito internacional foi reconhecido como parte integrante de seus próprios ordenamentos jurídicos internos e, também, o ser humano, como um sujeito de direito internacional.

Reconhecendo a sociedade civil e também a sociedade internacional como potências transformadoras da sociedade, a concepção contemporânea de accountability mostra-se como um importante instrumento de expansão do conceito de cidadania, tratando o cidadão como um elemento ativo, uma potência com legitimidade para ampliar não só sua própria condição de representado, mas também, para transformar a própria relação entre ele e seus representantes.

A accountability, portanto, firmada para conter as forças sociais emergentes das transformações políticas do século XVIII, abriu espaço para transformar-se em um instrumento de embate não mais entre categorias institucionais, mas, entre elas e as forças sociais. Ampliadas, as forças sociais, passaram a integrar o espaço público e atuar de forma cada vez mais ativa na busca de transparência, responsividade e responsabilidade daqueles que integram as ditas categorias, quer por força do sufrágio, quer por designação, quando investidos no cargo ou função por vontade do agente do poder público que galgara tal posto por meio de um processo de escolha livre e igualitário, capaz de colocar a todos, representantes e representados, no mesmo patamar de responsividade.