• Nenhum resultado encontrado

A justicialização dos direitos econômicos, sociais e culturais

Partindo da premissa de que a Constituição Federal de 1988 foi a primeira na história do Brasil a integrar ao elenco dos direitos fundamentais os direitos sociais, depreende-se que ela acolheu a concepção contemporânea de cidadania, trazida à tona com a Declaração Universal de Direitos Humanos e demais pactos internacionais de proteção dos direitos humanos, reafirmada na Convenção de Viena de 1993 (apud SÃO PAULO, 1996).

Inspirada no Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais a Constituição brasileira de 1988 não só alargou o rol de direitos sociais tutelados pelo Estado como também inovou ao atribuir-lhes status privilegiado, o de direitos fundamentais.

Vale dizer que os direitos econômicos, sociais e culturais enunciados nos artigos 6° a 11 do texto constitucional de 1988 galgaram espaço privilegiado por apresentarem-se como cláusulas pétreas, ou seja, somente podendo sofrer modificações por emenda constitucional e, ainda, desde que não o sejam para sua restrição, ao menos no plano legal.

A emenda constitucional, modalidade legislativa própria para promover a alteração do texto constitucional, conforme estatuído no artigo 60 da Carta de 1988, estabelece em seu § 4° que não será objeto de deliberação proposta de emenda tendente a abolir a forma federativa de Estado, o voto direto, secreto, periódico e universal, a separação dos poderes e os direitos individuais. Vale dizer que os direitos econômicos, sociais e culturais, como integrantes do rol de direitos individuais, somente poderão sofrer alterações se a proposta for apresentada por algum dos entes legitimados nos incisos I a IV do artigo 60, ou seja, por um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal; pelo Presidente da República ou; de mais da metade das Assembléias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros (BRASIL, 1988).

Há que se considerar, ainda, para que o procedimento a ser cumprido para que uma proposta de alteração da Constituição produza seus efeitos, necessário se faz que a ela seja aprovada nas duas casas do Congresso Nacional, por maioria de três quintos do total de seus membros, em duas votações em cada uma delas.

Se, de um lado, a nova feição que os direitos sociais assumem no texto constitucional de 1988 lhe confere mais estabilidade em face da volatilidade do legislador ordinário, de outro, também faz que possíveis ampliações também se tornem mais difíceis em face de maior rigidez e formalidade exigidas para a aprovação de uma emenda constitucional. Pela via da lei ordinária, era necessária a aquiescência de apenas maioria simples dos membros de cada uma das casas do Congresso Nacional em uma única votação, pela via da emenda, no entanto, a ampliação dos direitos econômicos, sociais e culturais apresenta um processo bastante mais lento, suscetível de limitações não só formais, mas também circunstanciais, conforme se infere do § 1º do artigo 60, que afirma ser vedada alteração da Constituição na vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio, circunstâncias que colocam o estado de direito em situação de extrema vulnerabilidade.

Se a Constituição de 1988 tratou de transcrever os direitos previstos no Pacto de 1966, ela também abriu caminho para a justicialização dos direitos econômicos, sociais e culturais também pela via infraconstitucional. No período que se sucede a promulgação da Carta de 1988 o país deu início a um intenso processo de justicialização de direitos que, impressos de forma genérica na Constituição, passaram a ser expressos em leis ordinárias com traços de especificidade e particularidade.

Conforme dados da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, em levantamento realizado entre os anos de 1988 a 2007 (BRASIL, 2008) a justicialização dos direitos humanos, em especial dos direitos econômicos, sociais e culturais, pela via legislativa ampara-se em amplo aparato legal infraconstitucional, o que, de certa forma, abre caminho para a sua exigibilidade pela via judicial.

A incorporação da normativa internacional de proteção aos direitos humanos econômicos, sociais e culturais pelo direito interno brasileiro evidencia-se em duas vertentes.

A primeira vertente, pautada no disposto no § 2° do artigo 5° da Constituição de 1988, que enuncia serem os direitos e garantias enunciados no referido artigo não excludentes de outros direitos decorrentes de tratados e convenções internacionais de direitos humanos ratificados pelo país e, ainda, de princípios adotados pela própria Constituição, aponta que o texto político de 1988 não tem a pretensão de exaurir o rol de direitos a serem tutelados pelo Estado e que eles podem surgir tanto pela atividade legislativa ordinária como pela própria interpretação das instâncias jurisdicionais brasileiras.

A segunda vertente indica que, da adoção e aperfeiçoamento de medidas internas de implementação dos direitos humanos, em particular dos direitos econômicos, sociais e culturais, depende, em larga escala, o futuro da própria proteção internacional dos direitos humanos. O direito interno e o direito internacional dos direitos humanos, sob esse prisma, mostram-se como um todo indivisível e inter-relacionado.

Neste sentido, afirma Antônio Augusto Cançado Trindade (2003, p.508):

Já não mais se justifica que o direito internacional e o direito constitucional continuem sendo abordados de forma estanque ou compartimentalizada, como o foram no passado. Já não pode haver dúvida de que as grandes transformações internas dos Estados repercutem no plano internacional, e a nova realidade neste assim formada provoca mudanças na evolução interna e no ordenamento constitucional dos Estados afetados.

Com efeito, essa realidade pode ser ilustrada pelas profundas transformações constitucionais que vêm ocorrendo em grande parte dos países da América Latina, em particular no Brasil, com a adoção da Carta de 1988, que além de gerar um novo constitucionalismo também tem promovido uma abertura significativa para a internacionalização da proteção dos direitos humanos.

Cumpre salientar que a Constituição de 1988 representa, no campo dos direitos humanos, importante avanço em relação à de 1967 e às sucessivas emendas constitucionais aprovadas durante os anos em que vigorou o regime militar no Brasil. A Carta constitucional em vigor, conforme afirmado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos, em seu relatório sobre a situação dos direitos humanos no Brasil elaborado e divulgado no ano de 2005 (OEA, 2005), pode ser considerada o resultado quase unânime da sociedade brasileira que, com o regresso à democracia depois de 21 anos de regime militar, não seria desejável manter a Constituição de 1967 com suas correspondentes emendas, especialmente a Emenda Constitucional n°. 1.

De pouco adiantaria se o ordenamento que então se estabelecia se restringisse a enunciar direitos sem se ocupar da previsão de ações para sua garantia, o que marcaria sobremaneira a distância entre um país legal e um país real. Nesse sentido, a Constituição também apresentou seis ações de garantia para a proteção dos direitos pessoais ameaçados: o habeas corpus, o mandado de segurança, o mandado de segurança coletivo, o mandado de injunção, o habeas data e a ação popular, além de recepcionar os institutos da ação civil pública e do inquérito civil público previstos na Lei n°. 7.347 de 1985.

A importância dos institutos enunciados como ações de garantia para a busca da efetivação dos direitos humanos no país, especialmente os de ordem econômica, social e cultural, por certo não constituem uma tábua de salvação para a sociedade brasileira. Sua importância revela-se mais por a realizabilidade dos direitos humanos econômicos, sociais e culturais não mais se restringir ao campo das políticas governamentais, que de tempos em tempos mudam de curso e colocam as parcelas mais vulneráveis da sociedade em condições de incerteza e imprevisibilidade.

Ao estabelecer, ao lado dos direitos também mecanismos para assegurar a realizabilidade dos direitos, a Constituição de 1988 retirou dos direitos sociais a mácula da dádiva e da medida do possível fazendo-os parte integrante das obrigações da instituição

estatal, independentemente da política de governo adotada por um ou por outro governante, em qualquer esfera da administração pública, seja federal, seja estadual ou municipal.

Pode-se afirmar que a Carta de 1988 contribuiu substancialmente para a justicialização dos direitos humanos no país, mais pelos avanços procedimentais do que propriamente materiais. Ao revesti-los de caráter postulatório perante os órgãos do Poder Judiciário, o texto constitucional vinculou os direitos sociais à política de Estado, cujo descumprimento ou leniência passam a ser suscetíveis de imposição de sanção ao Estado ou aos governantes pelos próprios órgãos estatais. Mais uma vez, demonstra-se a necessidade da articulação e comprometimento do Estado com a temática dos direitos humanos, fazendo que tanto a esfera internacional quanto a interna interajam e caminhem rumo à construção de um verdadeiro e unificado aparato normativo de proteção aos direitos humanos, o que por sinal, dicotomicamente, vem a ser o maior déficit de que padece o sistema internacional de proteção aos direitos humanos, sobretudo, no âmbito da ONU.