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A international accountability dos direitos humanos econômicos, sociais e culturais

O Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, adotado pelas Nações Unidas em 1966, é considerado o marco da justicialização dos direitos de tal ordem que se apresentavam na Declaração Universal de 1948 desvinculados de preceitos jurídicos vinculantes. Além de justicializar os direitos sociais no plano internacional, o Pacto de 1966 também expandiu substancialmente o elenco de direitos previstos na Declaração de 1948 e estabeleceu mecanismos para seu monitoramento perante a sociedade internacional.

Afirmando serem direitos humanos, objeto de preocupação da sociedade internacional, o direito à autodeterminação dos povos, bem como o de livre disposição de suas riquezas e recursos naturais, o direito de ganhar a vida mediante trabalho livre em condições justas e favoráveis, de toda pessoa fundar e se filiar a sindicatos, de fazer greve, de proteção à família, em especial às mães, às crianças e aos adolescentes, à alimentação, à vestimenta e moradia digna, à saúde física e mental, à educação e de cada indivíduo participar da vida cultural, desfrutar do progresso científico e se beneficiar da proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de toda a produção científica, literária ou artística, o sistema internacional propugnado pelo Pacto de 1966 enuncia, ao seu lado, uma sistemática própria de controle e monitoramento do cumprimento das obrigações assumidas, qual seja, a apresentação, pelos Estados-Parte, de relatórios periódicos referentes às medidas adotadas e ao progresso realizado, com o objetivo de assegurar a observância dos direitos nele reconhecidos.

O mecanismo de elaboração de relatórios constitui-se, por excelência, na medida de monitoramento de que dispõe o Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos enunciados no Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais que, por sua vez, tem no instituto do power of embrassment – poder de constrangimento político e moral perante a opinião pública internacional – seu mecanismo de sanção.

O Pacto de 1966 das Nações Unidas enuncia que cada Estado-Parte compromete-se a adotar medidas, tanto por esforço próprio como pela assistência e cooperação internacionais, que visem assegurar o pleno exercício dos direitos reconhecidos no Pacto. Essas medidas, a partir de 1985, por força da Resolução n°. 1.985-17 do Conselho Econômico e Social da Organização das Nações Unidas, passaram a ser avaliadas por órgão próprio com funções análogas à do Comitê de Direitos Humanos, denominado Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.

Nos termos do preceitua o artigo 16 do Pacto de 1966, os Estados-Parte comprometem-se a apresentar relatórios relativos às medidas adotadas e ao progresso realizado com o objetivo de assegurar a observância dos direitos nele reconhecidos, por etapas, segundo um programa estabelecido pelo Conselho Econômico e Social, no prazo de um ano, a contar da data em que passou a vigorar. Nesses relatórios, deve constar os fatores e as dificuldades que prejudiquem o pleno cumprimento das obrigações previstas no Pacto.

O programa estabelecido pelo Conselho Econômico e Social, por força da Resolução n°. 1.988/4, fixou que os Estados-parte devem apresentar seus relatórios iniciais em um prazo de dois anos a contar da entrada em vigor do pacto e, em seguida, encaminhar relatórios periódicos a cada cinco anos. Tais relatórios devem ser submetidos ao Secretário Geral das Nações Unidas, que, por sua vez, encaminha cópia ao Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, criado pelo Conselho Econômico e Social em 1987, por força da Resolução E-RES-1.985-17, para sua apreciação.

Os representantes dos Estados que os apresentaram, têm o direito de assistir às sessões do Comitê durante o exame de seus relatórios, e devem estar habilitados a fazer declarações sobre os relatórios submetidos pelo país e habilitados a responder às questões que os membros do Comitê possam lhes fazer.

Com o exame do relatório apresentado pelo Estado-Parte, em virtude do artigo 16 do Pacto sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, o comitê deve, acima de tudo, assegurar-se de que o relatório forneça as informações necessárias para sua análise. Se, no entanto, no entender do comitê, um relatório apresentado pelo Estado-Parte não contém informações suficientes, pode-se demandar a esse Estado o fornecimento de informações suplementares, indicando como e para qual data as respectivas informações devem ser apresentadas.

Uma vez que se estabeleceu que o trabalho do comitê pode se dar em conjunto com outras agências especializadas das Nações Unidas, com base na análise dos relatórios, o comitê pode fazer sugestões de caráter geral, fundadas no exame dos relatórios tanto os apresentados pelos Estados-Parte como também pelos treaty bodies, a respeito de informações que tangenciem temas relacionados com os direitos enunciados no Pacto sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.

Outra inovação adotada pelo comitê, por força da Resolução n°. 1.988 do Conselho Econômico e Social, é que ele pode considerar e examinar também relatórios e comunicações

de organizações não-governamentais dotadas de estatuto constitutivo perante o conselho. Tais organizações podem apresentar ao comitê declarações escritas, destinadas a contribuir para o reconhecimento e a plena realização universal dos direitos enunciados no Pacto.

As informações prestadas por organizações não-governamentais, nos termos do que preceitua o artigo 69 do Regulamento do Comitê, devem, no entanto, a) referirem-se especificamente às disposições do Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; b) estarem diretamente relacionadas com as questões examinadas pelo Comitê; c) serem dignas de fé; d) não terem caráter injurioso ou ofensivo.

O último e mais recente intento do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais em jurisdicionalizar os direitos enunciados no Pacto de 1966, foi na elaboração de um protocolo facultativo que permite a acionabilidade, por meio do direito de petição ou de comunicação de violação sistemática aos respectivos direitos. Embora a própria Declaração de Viena de 1993 tenha recomendado a incorporação desse e de outros critérios para aperfeiçoar e suprir o déficit de accountability de que se encontra revestido o sistema das Nações Unidas no que tange aos direitos sociais, a proposta do protocolo facultativo ainda se encontra em fase de negociação junto aos Estados-membros da ONU.

Apesar de todas as inovações promovidas pelo Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, sobretudo no que tange à ampliação da participação e do direito de exercício de oposição da sociedade civil organizada em seus procedimentos, também por meio da atuação do Comitê de Direitos Econômicos e Sociais ao lado das agências especializadas que desenvolveram os mecanismos extraconvencionais de accountability, verifica-se que a sistemática de relatórios ainda padece de um grande déficit de accountability, em virtude da irrelevância ou ausência de força jurídica vinculante de suas observações ou recomendações aos Estados-Parte.

A normativa internacional de proteção dos direitos humanos tentou fundar novas territorialidades, pautadas em novos fluxos, novos processos e novas estruturas, no entanto, essa tentativa não tangenciou os direitos econômicos, sociais e culturais, que têm sua exigibilidade contingenciada por fatores econômicos e políticos específicos de cada Estado- parte e também da sociedade global.

Por seu turno, várias contradições podem ser constatadas na normativa internacional adjetiva de proteção dos direitos humanos econômicos, sociais e culturais. Se são direitos de indivíduos e coletividades cuja realização se apresenta como obrigações dirigidas aos Estados,

a quem compete exigir seu cumprimento? Em que consistem, efetivamente, as obrigações enunciadas no Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais? O não- cumprimento das obrigações assumidas constitui-se em ilícito internacional, logo, passíveis de responsabilização? Que sanções pode receber um Estado por não cumprir, de forma reiterada e sistemática, as obrigações previstas no Pacto ou nas recomendações do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais? Quem se apresenta como o violador da referida norma? O Estado, que não é capaz de lhe dar aplicabilidade, ou a comunidade internacional, que não se mostra apta nem disposta a adotar um efetivo mecanismo de cooperação internacional para sua implementação?

São perguntas que, tanto a doutrina jurídica quando a jurisprudência internacionais, provavelmente, não teriam grande dificuldade para responder. No entanto, as questões revelam situações que acabam por exercer um forte impacto no processo de reconhecimento dos direitos econômicos, sociais e culturais como verdadeiros direitos humanos que, partindo da própria convicção internacional, afeta diretamente o locus de sua realização.

A formação sócio-econômica, política e cultura nacional continua sendo a potencial destinatária da obrigação enunciada no Pacto de 1966. No entanto, sua subordinação à formação sócio-econômica, política e cultural global acaba por evidenciar que tal responsabilidade não é única e exclusiva do Estado, pois não é ele o único potencial violador da norma. Se o pacto enuncia a obrigação também de empreender esforços por meio de cooperação e da assistência internacional, no mínimo a responsabilidade pelo não- cumprimento das obrigações assumidas é tanto do Estado, individualmente, como da comunidade internacional. Depreende-se, portanto, uma das maiores dificuldades para empreender medidas de exigibilidade do cumprimento das referidas obrigações.

As obrigações são enunciadas de forma clara no artigo 2° do Pacto de 1966:

Cada Estado-parte no presente Pacto compromete-se a adotar medidas, tanto por esforço próprio como pela assistência e cooperação internacionais, principalmente nos planos econômico e técnico, até o máximo de seus recursos disponíveis, que visem a assegurar, progressivamente, por todos os meios apropriados, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto, incluindo, em particular, a adoção de medidas legislativas (apud COMPARATO, 2003, p.339).

Se, de um lado, o Pacto de 1966 permite vislumbrar o inadimplemento da obrigação com a constatação da ausência de medidas apropriadas a sua viabilização, de outro, também dificulta a verificação de a ausência de tais medidas. Ao afirmar que o compromisso assumido

deve ser levado a cabo de acordo com os recursos disponíveis, lança a obrigação no universo das contingências, da relatividade e, conseqüentemente, da seletividade.

A obrigação enunciada no pacto, portanto, é a de fazer. No entanto, não se trata de uma obrigação incondicional, mas sujeita às restrições impostas pelas contingências que, nesse contexto, podem ser aquelas impostas pelo mercado, pelo capital, pelos interesses econômicos e comerciais internacionais que, em um dado momento, parecem se sobrepor ao próprio princípio da dignidade humana.

Então qual seria o ilícito internacional em face do não-cumprimento das obrigações previstas no Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais? A ausência de convicção a qual se fez referência pode ser traduzida justamente no não-reconhecimento, pelas instâncias internacionais, da fome, da pobreza, da miséria, da subjugação e de toda forma de privação de meios básicos de sobrevivência e de manutenção da dignidade humana como ilícitos internacionais, da mesma forma que a prática da violência policial, da tortura, da negação do direito de participar do processo decisório o são. Se medidas autoritárias de cerceamento do direito de liberdade causam repúdio imediato da sociedade internacional, a constatação da miséria que assola parcelas cada vez maiores da população mundial, a manutenção de trabalho escravo em carvoarias brasileiras, a completa ignomínia da sociedade em relação a crianças e adolescentes lançadas nas ruas dos grandes centros urbanos, todas as formas silentes de violência não parecem incomodar a sociedade global, a menos que tal parcela da população passe a representar alguma ameaça à manutenção de statu quo, quando sua voz se levanta para reclamar a substituição do Estado de Direito pelo Estado de Polícia.

Em que pesem os esforços do aparato formal-regulatório, tais como a Convenção sobre Responsabilidade do Estado por Ato Ilícito Internacional, o próprio Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais com sua sistemática própria de monitoramento das obrigações pactuadas e todo o restante de mecanismos convencionais e extraconvencionais das Nações Unidas, ele não se mostra suficiente para resolver a crise de convicção da sociedade internacional do verdadeiro caráter dos direitos econômicos, sociais e culturais.

Ao lançar-se para além dos territórios, fronteiras nacionais, aparatos estatais, regimes políticos e tradições, a sociedade global desterritorializou quase tudo que encontrou pela frente, incluindo os direitos econômicos, sociais e culturais. Aquilo que se mantém territorializado já não é mais o mesmo, muda de aspecto, adquire outro significado, desfigura-

se, é o horizonte global em que se inserem os direitos econômicos, sociais e culturais. A sua desterritorialização fez que se tornasse praticamente impossível, aos olhos da própria sistemática da international accountability, a constatação de sua violação.

A contradição enunciada pela sistemática processual internacional de responsabilização por não-cumprimento de obrigação prevista no referido Pacto não permite identificar o responsável pelo seu não-cumprimento, pois se a sociedade global desterritorializou o Estado, criou novos fluxos, novas estruturas e novos processos, por certo também retirou do Estado a exclusividade do poder de mando. No entanto, tal processo não permitiu a extensão do princípio da responsabilidade internacional por violação dos direitos humanos, permanecendo o princípio da territorialidade como a base de sustentação de sua repercussão, o que acaba corroborando a tese de que as violações dos direitos civis e políticos continuam a sendo mais sérias e mais patentemente intoleráveis que a maciça e direta privação de direitos econômicos, sociais e culturais (PIOVESAN, 2005).

Não se pode negar que a denegação dos direitos econômicos, sociais e culturais, como direitos humanos, é decorrente tanto da ausência de forte suporte e intervenção governamental como da ausência de pressão e cooperação internacional em favor dessa intervenção, gerada, sobretudo, pela crise de convicção de que tais direitos se referem a problema de ação e de prioridade governamental, frutos de uma crença de que na lei repousa o principal instrumento de transformação da realidade.

Tal crença acaba por revelar uma herança jus-racionalista que imprimiu, no ideário social, a concepção de que ao direito, por meio da simples atividade legislativa, compete resolver todas as mazelas da sociedade, difundindo a idéia de que a solução para todos os problemas que assolam a sociedade contemporânea pode ser a cobrança de promessas que, ele mesmo, talvez nunca tenha feito.

Enquanto permanecerem relegados ao plano formal-regulatório pode-se afirmar que os direitos de ordem econômica, social e cultural serão sempre considerados produto de uma evolução natural das sociedades. Relembrando as palavras de Hannah Arendt (2004), enquanto a questão da dignidade humana não for trazida para o plano da moralidade e da necessidade do reconhecimento da utilidade social do respeito, ela restará relegada a uma concepção compartimentalizada, fragmentada e fragilizada. Somente no momento em que a sociedade se der conta de que não mais pode continuar a cometer certos atos porque, depois de realizá-los, já não será capaz de continuar vivendo consigo mesma (ARENDT, 2004), é

que talvez se atente para a necessidade de assumir para si a responsabilidade para julgar aquilo que não se apresenta única e exclusivamente como produto de práticas aleatórias e autoritárias estatais, mas também que nos dizem respeito a todos como membros da humanidade, sós ou em coletividade.

Feitas tais considerações, resta indagar se a justiciabilidade dos direitos econômicos, sociais e culturais, empreendida de forma desvinculada do desenvolvimento de uma convicção na necessidade de reconhecimento da necessidade social do respeito pode contribuir para a afirmação de um conceito de dignidade humana. Se, além de relativizar efetivamente o direito de soberania, a justiciabilidade dos direitos econômicos, sociais e culturais propicia não só o mínimo de condições que um ser humano demanda para, assim, ser considerado como tal, mas sobretudo, as suas necessidades básicas em níveis de otimização capazes de contribuir para uma fundamentação do conceito de dignidade humana que transcenda a esfera da sobrevivência e adentre a seara do reconhecimento do ser humano na sua plenitude, considerando suas particularidades, suas limitações e até mesmo suas vulnerabilidades.

CAPÍTULO V

JUSTICIALIZAÇÃO DOS DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS NO BRASIL