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Accountability e responsabilidade: aproximações e distanciamentos entre os dois

Partindo do pressuposto de que o termo accountability implica necessariamente ao menos três pressupostos para sua constatação, tais como responsividade, responsabilidade e sanção, uma análise preliminar evidencia que a responsabilidade nada mais é do que um elemento constitutivo da accountability.

Uma análise mais aprofundada, no entanto, revela que o princípio da responsabilidade, quando envolve agente do poder público, também pode ter existência autônoma, desvinculada do dever de prestar contas e, ainda, que, de fato, os elementos-chave para distinguir os dois institutos, sobretudo à luz do direito e das relações internacionais, são “sanção” e “dever de reparar”.

Na accountability, mais especificamente na international accountability, do agente do poder público, por estar investido de munus publico e agir sempre, ao menos com alguma discricionariedade, é cobrado, tanto pela sociedade internacional quanto pela sociedade doméstica, o dever de prestar esclarecimentos de suas ações, quando o que está em tela é o cumprimento de obrigações assumidas em decorrência de norma de jus cogens, ou de tratado e convenção internacional.

Sob essa perspectiva todo agente do Poder Público é responsivo, devendo, em decorrência desta responsividade, responder motivando. Ainda no mesmo contexto, a responsividade ocorre segundo obediência a, ao menos três princípios: transparência, publicidade e motivação.

A incorrência na responsabilidade dá-se a partir da constatação ou não de prestação dos esclarecimentos devidos. Prestados os esclarecimentos e, no entanto, não se constatando dano ou prejuízo, não há que se falar em responsabilidade, logo, também não há que se falar em dever de reparar ou impor sanção. No entanto, se os esclarecimentos prestados revelarem dano ou prejuízo, ensejado está o Estado na responsabilidade por sua conduta, independentemente de existência ou não de culpa, do que decorre o dever de reparar o prejuízo causado ou de sofrer o impacto de sanções outras, que não necessariamente de ordem pecuniária, impostas pela sociedade internacional.

No que diz respeito à responsabilidade internacional, o dever de reparar nasce da simples violação da norma jurídica internacional, que se materializa com a constatação da ocorrência do suporte fático, do nexo de causalidade e do dano ou prejuízo causado por um sujeito de direito internacional a outro sujeito de direito internacional. Depreende, portanto, que, se houver violação, verificando-se o nexo do fato jurídico com o dano e caso se constate o dano em si, sempre haverá o dever de reparar ou de sofrer o impacto de sanções impostas ao sujeito de direito internacional violador da norma internacional.

Portanto, o conceito de accountability para as relações internacionais contemporâneas mostra-se bastante mais abragente que o de responsabilidade internacional, pois, ao demandar motivação, transparência e publicidade do sujeito de direito internacional, a international accountability enuncia muito mais pressupostos de democratização do sistema internacional que a sistemática da responsabilização internacional em si mesma.

O princípio da responsabilidade internacional do Estado das Nações Unidas apresenta- se como uma importante fonte reveladora de um sistema cada vez mais assimétrico de exercício de poder, contribuindo para que a sociedade internacional caminhe rumo à sua transformação em uma oligarquia competitiva ou a uma hegemonia inclusiva. A international accountability, por sua vez, revela mais o papel preventivo da vigilância em torno de contumazes violações, sobretudo de normas de proteção aos direitos humanos, e constitutivo de uma sociedade internacional em vias de democratização, em que o lugar para o exercício da participação e da oposição se encontra também em vias de construção.

Em que pese seu caráter, ainda, seletivo, afirma-se que a international accountability dos direitos humanos, ao cobrar transparência, publicidade e ser movida pela motivação do agente do poder público, comporta mais pressupostos de transformação da tradicional sociedade internacional em uma poliarquia internacional, para utilizar os termos de Robert

Dahl (1997). Ao lado do aperfeiçoamento de seus mecanismos, sobretudo quando se constata a multiplicação dos mecanismos extra-convencionais de proteção aos direitos humanos, ou seja, aqueles que apesar de não expressos nos tratados e convenções internacionais ensejam algum tipo de obrigação aos Estados integrantes da sociedade internacional, contribui, também, para a construção de um verdadeiro direito constitucional internacional, com força jurídica vinculante, transformadora do próprio direito internacional dos direitos humanos em jus cogens, conforme demanda o atual cenário das relações internacionais contemporâneas.

CAPÍTULO III

DIREITOS HUMANOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS: DOS PRINCÍPIOS FILOSÓFICOS À REALIZAÇÃO NORMATIVA

Nos dizeres de Hannah Arendt (1988) a transformação dos direitos do homem em direitos dos sans coulottes, tais como vestuário, alimentação e reprodução da sua espécie, foi o ponto de mudança de rumo, não apenas da Revolução Francesa, considerada o grande marco histórico dos direitos humanos, mas também de todas as revoluções que se seguiram.

A realidade que corresponde a essa imaginária moderna é aquilo que, desde o século XVIII, veio a ser chamado de questão social, ou seja, a existência da pobreza, tida não só como privação, mas, sobretudo, como estado de constância carência e aguda miséria, cuja ignomínia consiste em sua força desumanizadora, porque submete os homens ao domínio absoluto de seus próprios corpos e ao império absoluto da necessidade (ARENDT, 1988).

Partindo da premissa de que a pobreza é produto da opressão e da exploração históricas do homem pelo homem, do que decorrem, em larga escala, a violência e a negação da própria dignidade humana, constata-se que os direitos econômicos, sociais e culturais, da forma como foram preceituados, tanto no seio do Estado-Nação, quanto no âmbito internacional, refletem mais tentativas de domesticação, de obediência e de subserviência do que de pacificação e de emancipação social. Tendendo-se, assim, a alimentar e a retroalimentar cada vez mais novas formas de violência, de dominação e de domesticação do homem pelo homem, traduzidas em pobreza, miséria e demais formas de violência a que o indivíduo é submetido em um mundo desterritorializado.

Se o ideário moderno fundamentador dos direitos econômicos, sociais e culturais lança-os no campo da política, por certo a sociedade global, desprendida da tríade povo- território-soberania, desterritorializada, depara-se com um cenário bastante mais complexo do que aquele que institui o Estado moderno.

Ora, se a questão social não pode mais ser compreendida em toda a sua complexidade sob a égide do político, tampouco também o pode por seus próprios atributos. Compreender a

questão social atualmente demanda novas categorias de análise diferentes daquelas invocadas para sustentar o Estado-Nação, momento em que os direitos sociais encontraram sua forma mais elaborada.

A questão social, em um mundo desterritorializado repercute para além da fronteira dos Estados. Em um mundo cada vez mais fragmentário, os pobres não têm mais nacionalidade, logo, nenhum aparato de Estado, por si mesmo, se mostra apto a dar conta da questão social. Se o capital não tem pátria em tempos de globalização, os pobres também não. Se o Estado se mostra incapaz de gerir os novos fluxos econômicos, também mostra não poder resolver a questão social que, como produto histórico, encontra nas formas contemporâneas de organização societária as condições necessárias para sua reprodução, sob novas denominações e também com novas repercussões.

Pretende-se com o desenvolvimento do presente capítulo remontar o estado da arte dos direitos do homem, em particular os direitos sociais, de modo a compreendê-los sob o impacto de dois dilemas que permeiam seu ideário desde a sua concepção até os dias atuais. O primeiro deles diz respeito à superação do debate entre constitucionalismo e internacionalismo presente no processo de afirmação dos direitos humanos. O segundo dilema, que tangencia especificamente os direitos humanos de ordem econômica, social e cultural, é aquele que versa sobre sua própria natureza e coloca os direitos sociais vis a vis com o princípio da dignidade humana: mínimos sociais versus necessidades básicas.