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1.5 Accountability e relações internacionais

1.5.3 Hard law versus soft law

Se, de um lado, o direito internacional e as relações internacionais que se estabeleceram após a Segunda Guerra Mundial codificaram o princípio da legalidade e ampliaram o rol de temas e sujeitos de direito legitimados para atuarem na seara internacional, de outro, as transformações econômicas, sociais, culturais, tecnológicas e os próprios conflitos contemporâneos, frutos de uma globalização vertical, hegemônica e dominadora, também contribuíram para ampliar o rol de protagonistas aptos a aturem na política internacional, modificando substancialmente o espectro de abrangência dos pilares de sustentação do direito internacional.

Esse mesmo movimento, no entanto, revela uma feição bastante peculiar, que faz instalar, tanto no plano interno quanto externo das relações de poder, um dilema deveras difícil de ser superado – constitucionalismo versus internacionalismo – que aos olhos do direito internacional, pode ser denominado de embate entre a existência de um hard law, ou hard power e um soft law ou soft power no novo cenário que se constitui.

A esse respeito, assinala Soares (2004) que, de um lado,

o reconhecimento de existir um núcleo duro e relativamente inflexível de normas jurídicas, que, como as cláusulas pétreas das Constituições dos Estados, condicionam a legitimidade e a validade de todas as outras normas por eles elaboradas. Trata-se da afirmação de haver no Direito Internacional normas que constituiriam um jus cogens, que se sobrepõe à vontade dos Estados, e não podem ser modificadas por dispositivos oriundos, seja nos tratados e convenções internacionais, seja nas normas consuetudinárias internacionais, seja, ainda, por estarem definidas como princípios gerais do direito. [...] De outro lado, o reconhecimento de existirem normas muito flexíveis, que constituiriam conjunto de regras jurídicas de conduta dos Estados, cuja inadimplência seria governada por um sistema de sanções distintas das previstas nas normas tradicionais, possivelmente assimiláveis às obrigações morais versadas nos sistemas obrigacionais internos dos Estados; trata-se da discussão sobre a existência do que se tem denominado de soft

law, por oposição às normas tradicionais, então qualificadas de hard law (pág.127).

Ao passo que o direito constitucional, como parte integrante e fundamental do ordenamento jurídico interno dos Estados, tratou de estabelecer mecanismos, com poder de sanção, bastante eficientes, dentre os quais se ressalta um Judiciário com poder de fogo para fazer face aos atos dos agentes do poder público, o direito internacional, que padece até mesmo de instâncias supranacionais para atuar contra fortes e fracos, revela suas fragilidades ao enunciar mecanismos de monitoramento e sanção frágeis que refletem mais uma vez a ineqüidade e a assimetria de poder entre nações.

Nesse novo contexto, duas tendências tentam configurar essa nova ordem política que emergiu no século XX e que busca conciliar interesses nacionais e interesses individuais e coletivos, que transcendem as barreiras territoriais dos Estados. Essas tendências estabelecem uma intrínseca relação entre o próprio entendimento tradicional do direito internacional, suas fontes e sua força jurídica vinculante.

Trazendo à baila que as relações internacionais transcendem o próprio direito internacional, pode-se verificar que aquelas, por terem um espectro de abrangência bastante mais alargado, têm atuado, em larga escala, como mola propulsora do direito internacional contemporâneo, sobretudo quando se empreendem uma análise das fontes que sustentam o direito internacional.

O Estatuto da Corte Internacional de Justiça, em seu artigo 38 (apud COMPARATO, 2003) dispõe que constituem fontes do direito internacional: os tratados e convenções internacionais, os usos e costumes internacionais, os princípios gerais de direito internacional e as decisões judiciais e a doutrina.

Os tratados internacionais, conforme preceitua Soares (2004, p.58) “são atos solenes entre os Estados, tão antigos quanto as relações amistosas ou litigiosas entre grupos políticos autônomos”.

A Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1986 (ONU, 1986), que reconheceu as organizações internacionais como sujeitos de direito da mesma forma que a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969 (ONU, 1969), estabelecera os princípios e requisitos imprescindíveis a sua formação, preceitua em seu artigo 2°, alínea a, incisos I e II, o seguinte:

a) Por “tratado” entende-se um acordo internacional regido pelo direito internacional e celebrado por escrito: I) entre um ou vários Estados e uma ou várias organizações internacionais; ou II) entre organizações internacionais, quer esse acordo conste de um instrumento único ou de dois ou mais instrumentos conexos e qualquer que seja a sua denominação particular.

Por costumes internacionais, entende-se:

os meios primários pelos quais a comunidade se manifesta, e são formados por um conjunto de regras que devem ser observadas por um grupo. O objeto dos usos e costumes internacionais envolve o comportamento de um respectivo Estado com os demais e com as instituições e organizações internacionais. Os usos e costumes são prática de suma importância seguida pelos sujeitos de direito internacional, que os aceitam como Direito propriamente dito (p.34).

O artigo 53 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (ONU, 1969), no entanto, estabelece o costume internacional como

uma norma imperativa de direito internacional geral [...] aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados no seu conjunto como norma à qual nenhuma derrogação é permitida e que só pode ser modificada por uma nova norma de direito internacional geral com a mesma natureza.

No que tange às duas outras fontes do direito internacional, os princípios gerais do direito internacional e as decisões judiciais e a doutrina, cumpre salientar que, embora não haja determinação expressa no texto da Convenção de Viena, sua participação no processo de construção do núcleo rígido do direito internacional é inegável, pois influencia a própria dinâmica dos costumes internacionais e, também, a feição e o conteúdo dos tratados internacionais.

Os princípios gerais do direito internacional, amplamente reconhecidos, são, por exemplo: a) a proibição do uso ou ameaça da força; b) a solução pacífica das controvérsias; c) a não-intervenção nos assuntos internos dos Estados; d) a igualdade soberana dos Estados; e) a boa-fé no cumprimento das obrigações internacionais; e f) a igualdade de direitos e de determinação entre os povos.

Por fim, quanto às decisões judiciais e a doutrina, da mesma forma que os princípios gerais do direito, elas não só servem para auxiliar a resolução de litígios com base em decisões precedentes, como também para auxiliar a formulação das regras do direito internacional, levando em conta as opiniões e formas de expressão dos estudiosos sobre o tema em questão.

Dentre as fontes do direito internacional, compreendido como “um conjunto de normas supranacionais que se impõem hierarquicamente aos diversos Estados que a elas se submetem” (REIS, 2005, p.35), pode-se constatar a existência da preponderância de umas sobre as outras.

Os costumes internacionais, assim como os princípios gerais do direito internacional, por serem oriundos das próprias relações entre os Estados, antes mesmo de se verem codificados, podem ser vistos como os únicos núcleos rígidos do direito internacional, pois independem, propriamente, da manifestação de suas vontades para que produzam efeitos erga omnes. Por ser uma fonte que se consolida ao longo do tempo, por práticas convencionais ou litigiosas no plano internacional, ou seja, pelo exercício do poder político interestatal, sua

plasticidade torna-se bastante menos flexível do que aquela presente nas demais fontes do direito internacional, do que se depreende que o costume internacional é, por excelência, o núcleo que se apresenta como o hard law no direito internacional, imperando, de forma inconteste, como fruto da influência do hard power, ou poder de fato que os atores internacionais exercem sobre o processo de formação e afirmação histórica do direito internacional.

Por outro lado, as demais fontes do direito internacional, em razão da multiplicidade de atores internacionais que emergem na contemporaneidade e, também, da persistência das soberanias e susceptibilidades nacionais, acabam por traduzir ideais que refletem muito mais o caráter vago, geral e impreciso de suas formulações, implicando a ampliação de sua plasticidade e, conseqüentemente, pressupostos de não-aplicabilidade ou de não- obrigatoriedade, aproximando-se mais de um conjunto de recomendações, ao que se denomina soft law, do que propriamente de um conjunto de normas com capacidade de exercer os ditos efeitos erga omnes. Tal realidade pode ser verificada, sobretudo, na forma como se estabeleceram os mecanismos extraconvencionais de proteção aos direitos humanos no âmbito das Nações Unidas a partir da segunda metade do século XX, fundados em outras fontes, diversas daquelas preceituadas pelo tradicional direito internacional.

No entanto, a discussão e a compreensão do direito internacional pela ótica da existência de um núcleo rígido, e outro, plástico em seu processo de constituição, parece ter uma intrínseca ligação, ainda, com o princípio da preponderância do princípio da soberania nacional que desqualifica o direito internacional como uma ordem dotada de poder não só de influência, mas também, de interferência e sanção no âmbito interno dos Estados-parte da comunidade internacional.

Até mesmo os costumes internacionais, que historicamente puderam ser compreendidos como produto direto das relações internacionais e, portanto, gozarem de status privilegiado no direito internacional, parecem padecer de legitimidade e de eficácia ante as novas feições que as relações interestatais assumem na contemporaneidade.

Nem mesmo os costumes internacionais em si mesmos, por terem uma intrínseca ligação com o próprio processo de afirmação histórica da entidade estatal, têm tido preponderância na conjugação do direito internacional com as relações internacionais. Verifica-se que o embate entre hard law e soft law se encontra diretamente relacionado com

um outro que permeia mais o ambiente das relações internacionais do que propriamente do direito internacional, a existência de um hard power em contraposição ao soft power.

Como exemplo, pode ser citada a própria posição adotada por países com poder de influência e interferência na comunidade internacional, mais precisamente, aqueles que exercem preponderância no campo econômico, financeiro, cultural e militar.

Para evidenciar o quão o hard power tem influenciado a afirmação de um soft law no plano internacional, podem-se mencionar dois casos emblemáticos que tiveram como protagonistas dois países que exercem posição central nas relações internacionais na atualidade: Estados Unidos da América e China.

Quanto ao primeiro, cumpre lembrar que, por ocasião da adoção do texto do Estatuto de Roma, em 1998 (apud COMPARATO, 2003), tratado que instituiu o Tribunal Penal Internacional, os EUA se recusaram, até o final do ano de 2001, a ser seu signatário. No entanto, em dezembro do mesmo ano, por um revés na política interna combinada com a mudança de poder das mãos dos democratas para os republicanos, o Estado resolveu apor sua assinatura e aderir ao referido tratado. Porém, com a mudança da política de governo, em um caso sem precedentes na história do direito internacional, aviltando os princípios do pacta sunt servanda e da boa-fé, o país notificou o Secretário Geral da Organização das Nações Unidas de que não mais tinha interesse em submeter-se às regras estatuídas no referido tratado, determinando, expressamente, a retirada de sua assinatura do mesmo.

Quanto ao segundo caso, que envolveu até mesmo o Brasil em suas relações com a China, cumpre relembrar episódio também recente, deflagrado por força do movimento liderado pelo Brasil que envolvia a reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Nesse episódio, constatou-se também a forte preponderância do hard power em face de uma soft law cada vez menos comprometida com a transformação dos direitos humanos como norma integrante do jus cogens, ou seja, do hard law do direito internacional.

Por ocasião das negociações entre os países diretamente interessados na reforma do Conselho de Segurança, a China, como membro permanente do mesmo, garantiu apoio à proposta apresentada pelo Brasil, condicionando seu voto caso o Brasil rejeitasse o relatório sobre a situação dos direitos humanos naquele país, elaborado pela Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas. No referido relatório constava que a China se enquadrava nos países com persistentes e sistemáticas violações dos direitos humanos. Garantido o apoio para a não-aprovação do referido relatório, no entanto, no momento de

apresentação formal da proposta da reforma do Conselho de Segurança, a China, com o argumento de que a proposta também implicava interesses japoneses, retirou, explicitamente, o seu apoio, deixando os proponentes, literalmente, relegados a si mesmos. Como se trata de países com soft power no plano internacional, acabaram por corroborar a tese de que, em relação a matérias que afetam diretamente a soberania dos Estados que detêm hard power, o direito internacional, mesmo codificado, padece de um grande déficit de accountability, mais precisamente por estar revestido de pressupostos muito mais plásticos e flexíveis do que rígidos.

A substituição do hard power pela cooperação, e a substituição da soft law pelo reconhecimento de temas prementes, importantes e inderrogáveis de política internacional, longe de serem capazes de atingir o status que o direito constitucional adquiriu no século XVIII, encontra como principal entrave a prevalência de políticas unilateralistas, manipuladoras e desvalorizadoras do direito internacional e suas instituições.

Como forma de fazer triunfarem as soluções pacíficas das controvérsias, de efetivamente relativizar o conceito de soberania estatal, reconhecer o ser humano como cidadão e como efetivo sujeito de direito internacional, o alargamento e aperfeiçoamento dos mecanismos da international accountability parecem ser a única via para iniciar a construção de um verdadeiro direito constitucional internacional, reflexo de anseios e desígnios múltiplos, porém nem sempre convergentes, mas com capacidade e poder de influência no processo de tomada de decisão e de positivação de direito internacional que realmente, conforme preceituaram os idealistas, seja capaz de estruturar-se com bases análogas a de um direito constitucional nacional.

1.6 Poliarquia internacional: uma encruzilhada nos trilhos das relações internacionais