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A construção do ideário fundamentador dos direitos humanos

Em que pese a contribuição do direito romano para a codificação do ideário fundamentador do Estado que se afirmou no mundo ocidental, os direitos do homem somente começaram a ganhar feição normativa propriamente na Idade Média.

Nos dizeres de Losano (2007) aquilo que designa “direitos europeus” atuais deriva, por certo, do direito romano, no entanto, são decorrentes de uma secular adaptação desse último a situações econômico-sociais profundamente diferentes. Nos direitos positivos de origem européia, as relações entre indivíduos, objeto do direito privado, somam-se às relações entre indivíduos e poder soberano, objeto do direito público.

O aparato construído pelo Império Romano teve como foco primordial o direito das gentes, razão pelas quais as questões relacionadas com um suposto direito do homem sempre foram tratadas como intrínsecas à vida privada dos cidadãos e não à sua vida pública.

A separação entre público e privado, no modelo de organização estatal que se fundava, somente começou a dar seus primeiros indícios de aparição quando a estruturação dos meios de produção se fincaram nas bases do feudalismo, e tinham como pressuposto as relações de senhorio e vassalagem e, também, as normas preceituadas em um direito com base divina, logo, as leis humanas que sustentam tal modelo, não são senão leis inspiradas nos preceitos da lei natural e da lei divina.

A lei humana, tendo como referencial os preceitos divinos e naturais ampara e justifica um modelo de Estado que ainda não era capaz de separar o locus de manifestação da ação pública do locus de manifestação da ação privada.

Por locus de manifestação da ação pública, entende-se o ambiente no qual impera a estrutura que sustenta o poder que os senhores proprietários de terras, o rei e o clero exercem

5 Para Hannah Arendt (1989), “o paradoxo da perda dos direitos humanos é que essa perda coincide com o instante em que a pessoa se torna um ser humano em geral – sem uma profissão, sem uma cidadania, sem uma opinião, sem uma ação pela qual se identifique e se especifique – e diferente em geral, representando nada além da sua individualidade absoluta e singular, que, privada da expressão da ação sobre o mundo comum, perde todo o seu significado. [...] O perigo é que uma civilização global, universalmente correlata, possa produzir bárbaros em seu próprio seio por forçar milhões de pessoas a condições que, a despeito de todas as aparências, são as condições de selvageria” (p.336). De fato, a sociedade contemporânea tem conseguido fazer isso com bastante esmero!

sobre aqueles que não têm outra forma de prover seu sustento senão por meio do emprego de sua mão-de-obra, no modelo de servidão, de subserviência.

Por locus de manifestação da ação privada, entende-se o ambiente em que impera o poder de mando exercido sobre o núcleo familiar daqueles que estão sob a submissão da lei divina e da lei natural, logo, os que estão sob o domínio dos proprietários de terras e dos detentores do monopólio da lei e da jurisdição, o rei e o clero.

Todavia, há que se ressaltar que, no transcurso da Idade Média, a linha de separação entre o público e o privado se mostrava bastante tênue, uma vez que não eram reconhecidos como direitos senão os de propriedade e de exercício do poder político e como sujeitos de direito os que, ou por meio da lei natural ou por meio da lei divina, os receberam como herança.

A propriedade, apesar de não se apresentar como um verdadeiro direito, mas como uma mera posse precária que os senhores exerciam em determinada porção de terra, já se apresentava como um instrumento de subjugação e exploração de uma minoria forte sobre uma maioria fraca e oprimida, caracterizando-se assim uma relação entre particulares, em que o detentor do poder político exercia pouco ou quase nenhuma influência. A forma como o senhor tratava seus servos era uma questão regida pelo ideário que permeava a vida privada dos indivíduos e não uma preocupação da instituição estatal que, apesar de fragmentada, já contribuía para o fortalecimento e perpetuação dessa forma de tratamento.

A esse respeito, Trindade (2002), que a primeira característica desse modo de organização da sociedade e da produção social, denominada feudalismo e que dominou toda a Europa durante um grande período da história, é que ele se baseava em uma rígida estratificação social fundada no princípio do privilégio de nascimento. Nele, “a terra era praticamente a única fonte de sobrevivência e riqueza, e conservada como ‘bem fora do comércio’, seu controle por nobres e membros da alta hierarquia da Igreja garantia-lhe um imenso domínio político, jurídico e ideológico sobre a população” (p.18-19).

O direito político, por sua vez, somente começou a ganhar contornos públicos, com força suficiente para intervir no domínio privado, quando se iniciou o processo de unificação e construção daquilo que o Ocidente estatui denominar de Estado. Em outras palavras, o Estado é uma instituição que, com força suficiente para abalar a estabilidade da posse dos senhores sobre as terras que detêm, deflagra um processo de unificação de territórios, antes dispersos, para dar forma a uma nova estrutura territorial.

Se durante a alta e baixa Idade Média, os poderes preponderantes fundavam-se, ao mesmo tempo, em uma estrutura territorial local – o feudo – e em uma estrutura desterritorializada – a Igreja – a queda de Constantinopla, em 1453, exerceu forte influência para o estabelecimento de uma nova base territorial de manifestação do poder político, a do Estado, enquanto instituição com poder de assegurar não só o direito de propriedade, mas também o de mando sobre seus súditos. A partir da desterritorialização do poder político, o Estado reterritorializou-se, tendo como base, sobretudo, o poder sobre os loci de manifestação da vida privada do homem.

Desse processo de apropriação da vida privada do homem pelo Estado, como instituição com poder de mando e detentora do monopólio da lei e da jurisdição, denota-se o surgimento do embrião daquilo que passou a sustentar essa estrutura não só na modernidade, mas que serviu de espectro para toda a sociedade ocidental, o constitucionalismo.

O constitucionalismo pode, nesse contexto, ser compreendido como o movimento que deflagrou o processo de jurisdicionalização das idéias políticas, uma vez que elas pouco influenciaram a formação da estrutura que vigorou durante o medievo. Idéias resgatadas não do direito romano, mas do modo de organização da sociedade grega, apesar de não jurisdicionar tais idéias, foi precursora na sua sistematização, sobretudo, por meio de alguns de seus mais ilustres filósofos como Sócrates, Platão e Aristóteles.

É importante ressaltar que, embora, esse processo somente se torne mais claro com o advento da modernidade, sua fase embrionária já apresentou sua face, ainda, no medievo, mais especificamente, na Inglaterra, onde e quando as relações entre monarca, nobreza e clero se mostraram exaltadas e pouco pacíficas.

Será esse o ponto de partida que adotado para compreender o processo de codificação do ideário sustentador dos direitos do homem: o constitucionalismo que, de forma embrionária, emergiu no domínio inglês, ressaltando suas características e influências nos desdobramentos vindouros, sobretudo, com o período revolucionário do século XVIII.