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Igualdade de poder como pressuposto de eficácia da accountability

Se, como afirma O’Donnell (1998b), a vigência do princípio da legalidade gera certeza e accountability, pois atua como elemento a prevenir a criatividade da ação e o inusitado no âmbito da administração pública, o princípio da igualdade de poder entre os agentes do poder público envolvidos na sistemática da accountability horizontal é pressuposto para a constatação de sua validade e eficácia.

O princípio da igualdade como pressuposto da eficácia da accountability horizontal apresentado por O’Donnell (1998a), não pode ser compreendido como igualdade de fato entre representantes e representados, mesmo porque os primeiros agem sob a égide dos princípios da legalidade e/ou da discricionariedade. Há duas perspectivas para intentar a análise do referido princípio como pressuposto para a verificação da eficácia do instituto da accountability horizontal.

A primeira perspectiva implica dizer que “todas as decisões devem ser públicas, no duplo sentido de que o processo que leva a elas está aberto à participação ampla e de que o conteúdo das decisões é acessível a todos” (O’DONNELL, 1998a, p. 47).

Em outras palavras, mesmo não incorrendo diretamente na accountability horizontal, o fato de tornar todos os cidadãos potencialmente participantes do processo de tomada de

decisões coletivas, por meio de mecanismos que os legitimem a provocar os órgãos do Estado autorizados a deflagrar o processo de responsabilização dos agentes do poder público incumbidos de agir, tendo em vista o bem de todos, o princípio da igualdade tem por finalidade legitimar os cidadãos a buscarem informações e justificativas que sirvam de fundamento para amparar ou responsabilizar as práticas do referido agente.

Nesse sentido, os writs ou remédios constitucionais, tais como a ação popular, a ação civil pública e o mandado de segurança, são importantes ferramentas na consecução de tal fim, sobretudo quando legitimam os cidadãos a invocarem a tutela jurisdicional na busca, tanto da informação quanto da justificativa do agente do poder público por suas escolhas.

Por certo que o princípio da igualdade, nesse contexto, não significa colocar o indivíduo no mesmo patamar hierárquico do agente do poder público, mas de colocar todos os cidadãos com as mesmas capacidades postulatórias ante os órgãos que são legitimados para imporem a sanção em caso de ação ou omissão delituosa do referido agente.

Esse pressuposto considera os indivíduos pessoas legais, portadores de direitos e obrigações, formalmente iguais não só no domínio político, mas também, nas obrigações contratuais, civis, criminais e tributárias, nas relações com órgãos estatais e em muitas outras esferas da vida social (O’DONNELL, 1998b).

A segunda perspectiva de manifestação do princípio da igualdade na consecução da accountability horizontal é a que diz respeito à igualdade, à autonomia, à não-subordinação das instituições legitimadas a apurar a responsabilidade dos agentes do poder público em face das próprias instituições ou agentes suscetíveis de responsabilização.

Nesse sentido, a profissionalização das agências que desempenham o papel preventivo e também do Poder Judiciário, as dotações com recursos suficientes para a consecução de suas ações, a independência para agirem sem se submeterem aos caprichos, sobretudo do Poder Executivo, são pressupostos tanto para a afirmação do princípio da igualdade entre responsáveis e responsabilizadores quanto do próprio instituto da accountability horizontal, que depende da autonomia dessas instituições para a consecução de seus fins, qual seja, responsabilizar o agente, impondo-lhe uma sanção previamente estabelecida nos textos das leis que regem o país.

Por mais que se assemelhe e integre o rol de argumentos utilizados pelos opositores da tese para refutar os argumentos de O’Donnell, esse princípio da igualdade, no entanto, em

nada tangencia o princípio que rege o sistema dos checks and balances trazido pelos Federalistas.

É importante ressaltar que os checks and balances têm como mola propulsora a igualdade e a autonomia entre os poderes juridicamente constituídos, de modo que um possa atuar como freio do outro quando se vale da usurpação ou extrapola seus limites de atuação.

O sentido dos checks and balances, da forma como fora cunhado na moderna doutrina constitucionalista, pode ser extraído da própria doutrina de Montesquieu (1995, p.119), no Espírito das Leis, no qual afirma:

Quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura, o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não existe liberdade, pois pode-se temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado apenas estabeleçam leis tirânicas para executá-las tiranicamente. Não haverá também liberdade se o poder de julgar não estiver separado do poder legislativo e do executivo. Se estivesse ligado ao poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse ligado ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor. Tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo, exercesse esses três poderes: o de fazer as leis, o de executar as resoluções públicas, e o de julgar os crimes ou as divergências dos indivíduos.

Se o sentido dos checks and balances está vinculado à idéia da aplicação do princípio da igualdade e de separação entre os poderes para impedir a usurpação de funções, por outro lado, o sentido da accountability vincula-se à idéia da aplicação do princípio como mecanismo viabilizador das instâncias legitimadas para a cobrança de informações, justificativas dos agentes do poder público e também daquelas legitimadas, de fato e de direito, para imporem sanção em caso de condutas delituosas dos mesmos agentes, quer sejam essas instituições poderes juridicamente constituídos ou não, sobretudo quando se trata da exigência e do dever de prestar informações e apresentar justificativas.

Vale ressaltar que se o princípio da legalidade estabelece mecanismos para a prevenção do inusitado, no âmbito da ação política, o princípio da igualdade enuncia o requisito essencial para a consagração, tanto da legitimidade dos atores envolvidos no dever e direito de exigir e prestar contas, quanto no requisito essencial para a eficácia do instituto, que se constitui na autonomia entre os órgãos do poder público autorizados a impor a sanção ao agente do poder público, em caso de ação em detrimento do bem comum.