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A tutela dos interesses transindividuais na Constituição de 1988

Antes de adentrar especificamente o tema da tutela dos interesses transindividuais, cabe, preliminarmente, tecer alguns comentários referentes ao papel dos poderes juridicamente constituídos na realização e proteção dos direitos humanos no Brasil.

Preceitua o art. 2° da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988) que "são poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário", cujas funções se encontram elencadas no título IV, capítulos I, II e III do mesmo diploma legal.

A tais poderes somam-se o que consta no capítulo IV do título IV também da Constituição Federal, que trata das funções essenciais à justiça. Nesse capítulo, são apontados o Ministério Público, a Advocacia Pública e a Advocacia e Defensoria Pública.

No que concerne aos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, relacionando suas naturezas e atribuições com a matéria em estudo, qual seja, os direitos humanos, Canotilho (apud PIOVESAN, 2003, p.344-345) afirma:

Nessa ótica, compete ao Legislativo, como destinatário das normas consagradoras de direitos e garantias fundamentais: a) proceder em tempo razoavelmente útil à sua concretização, sempre que seja necessária para assegurar a exeqüibilidade de normas, sob pena de inconstitucionalidade por omissão; b) mover-se no âmbito desses direitos, sendo-lhe vedado que, a pretexto da concretização de direitos por

via legal, opere uma redução da força normativa imediata dessas normas, trocando- a pela força normativa da lei; c) não emanar preceitos formal ou materialmente incompatíveis com essas normas. Por sua vez, ao Judiciário compete: a) interpretar os preceitos constitucionais consagradores de direitos fundamentais, na sua aplicação em casos concretos, de acordo com o princípio da efetividade ótima e b) densificar os preceitos constitucionais consagradores de direitos fundamentais de forma a possibilitar a sua aplicação imediata, nos casos de ausência de leis concretizadoras. No que tange ao governo e à administração, incumbe-lhes um importante papel na tarefa de concretização dos direitos fundamentais, tendo em vista que, no exercício de sua competência planificadora, regulamentar, fornecedora de prestações, os órgãos da administração e do governo desenvolvem tarefas de realização de direitos fundamentais.

No mesmo sentido, complementa Piovesan (2003, p.345):

O princípio constitucional da aplicabilidade imediata das normas definidoras de direitos e garantias fundamentais intenta assegurar a força vinculante dos direitos e garantias de cunho fundamental, ou seja, objetiva tornar tais direitos prerrogativas diretamente aplicáveis pelos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Isso

significa que esse princípio investe os Poderes Públicos na atribuição constitucional de promover as condições para que os direitos e garantias fundamentais sejam reais e efetivos. Todos os direitos fundamentais - entenda-se tanto os direitos civis e políticos, como os direitos econômicos, sociais e culturais - passam, assim, a dispor de força jurídica vinculante (grifos meus).

Denota-se que a Carta de 1988, além de constituir-se no marco do processo de redemocratização do Brasil, delineou um novo perfil de atuação dos poderes públicos. Ao recepcionar os preceitos das normas de proteção aos direitos humanos consagrados nos instrumentos internacionais, atribuindo-lhes caráter constitucional, conferiu aos mesmos eficácia máxima e imediata. Dessa forma, conforme preceitua Piovesan (2003, p.344), "impõe-se aos poderes constituídos, em seu âmbito próprio de competência, a tarefa de realizar a função prospectiva, dinamizadora e transformadora desse princípio" em direito real, concreto e suscetível de verificação.

Quanto às demais instituições, Ministério Público, Advocacia Pública e a Advocacia e a Defensoria Pública cumpre ressaltar que, apesar de estarem elencadas no título que trata da organização dos poderes, não se constituem poderes, mas instituições que têm como função agir para o pleno funcionamento e realização da justiça, contribuindo, sobretudo, para a materialização dos direitos e garantias fundamentais preceituados na própria Constituição Federal.

O art. 127 estabelece que "o Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis".

O art. 131 descreve que "a Advocacia-Geral da União é a instituição que, diretamente ou através de órgão vinculado, representa e União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-lhe, nos termos da lei complementar que dispuser sobre sua organização e funcionamento, as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo". Por derradeiro, a Advocacia e a Defensoria Pública têm suas funções descritas nos artigos 133 e 134 da Constituição Federal:

Art. 133. O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei.

Art. 134. A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5°, LXXIV.

Importa dizer que, no que concerne aos direitos e garantias fundamentais, o delineamento de funções, atribuições e competências tanto entre os poderes juridicamente constituídos quanto entre Ministério Público, Advocacia Pública e Advocacia e Defensoria Pública, constitui mecanismo para alcançar a eficácia e plena realização do Estado democrático de direito que então se inaugurava.

Traçadas essas considerações referentes aos poderes juridicamente constituídos, passa- se à análise específica da forma como vem sendo empreendida a tutela dos direitos econômicos, sociais e culturais perante o Poder Judiciário brasileiro.

Diante do já exposto, acerca dos direitos econômicos, sociais e culturais, denota-se que eles são dotados de uma característica bastante peculiar: a de nem sempre ter como destinatário o ser humano na sua individualidade. Na forma como se encontram preceituados, tanto em âmbito internacional, como no interno, os direitos econômicos, sociais e culturais, passaram, sobretudo a partir da segunda metade do século XX, a ser interpretados como direitos transindividuais, ou seja, não têm como destinatário um indivíduo, mas certa coletividade, portadora de interesses difusos e coletivos que tanto podem ser usufruídos individual quanto coletivamente, isto é, como verdadeiros direitos híbridos. Essa forma pode ser percebida como superadora da doutrina individualista do processo e que propicia uma nova categorização de direitos e interesses, bem com sua justicialidade, até então inimaginável.

Embora os direitos sociais sempre tenham sido revestidos da característica de interesses difusos e coletivos, conforme se infere da análise de boa parte das constituições modernas e das declarações internacionais, o surgimento da teoria dos interesses

transindividuais, conforme afirma Weis (2006, p.125) “advém da preocupação com a ‘questão social’, decorrente do surgimento da ‘sociedade de massa’, em que a maioria das relações econômicas e políticas é marcada pelo desaparecimento da individualidade do ser humano, diante da padronização dos comportamentos e das regras correspondentes”.

No Brasil, essa teoria materializou-se, primeiramente, com o advento da Lei n°. 7.347/85 que instituiu a ação civil pública e, mais recentemente por meio da Lei n°. 8.078/90 que instituiu o Código de Defesa do Consumidor. A primeira tratou de estabelecer mecanismos para a defesa do meio ambiente, do consumidor e dos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, e depois foi expandida para a defesa de qualquer interesse difuso ou coletivo. A segunda, além de especificamente destinar-se a um tema determinado, no caso o consumidor, foi a que melhor explicitou o que viria a ser interesse transindividual, restando como fonte de interpretação para a ampliação do uso do conceito para reconhecimento de direitos ou interesses transindividuais decorrentes do direito internacional, da Constituição Federal ou de normas inferiores. O seu artigo 81 é bastante esclarecedor:

Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo.

Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:

I – interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste Código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;

II – interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste Código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica- base;

III – interesses ou direitos individuais homogênos, assim entendidos os decorrentes de origem comum (BRASIL, 1990).

Aliás, ainda na década de 1970, Mário Cappelletti (1977), em trabalho intitulado Formações Sociais e Interesses Coletivos diante da Justiça Civil, já destacava o caráter difuso de direitos à saúde, à segurança social, de não sofrer discriminação, dentre outros encontrados nas constituições democráticas e nos tratados internacionais de direitos humanos.

A esse respeito, observa Weis (2006, p.135) que a possibilidade de exigir o cumprimento de direitos humanos econômicos, sociais e culturais pela via judicial, em particular no Brasil, vem sendo a principal conseqüência de sua caracterização como interesse transindividual, como decorrente da superação do paradigma do direito subjetivo individual, incompatível com os novos direitos humanos que têm como característica a pluralidade de

interessados e uma pretensão particularizada contra o Estado. Nesse contexto, ressalta-se a possibilidade de emprego de ações coletivas, tais como a ação civil pública, o mandado de segurança coletivo e a ação popular como instrumentos processuais voltados para a proteção dos direitos humanos econômicos, sociais e culturais, com destaque para a primeira, diante da possibilidade que cria, para o julgador, de determinar a realização de uma prestação pelo Estado, em vez de apenas poder ser utilizada para a interrupção de prática antijurídica, caso das demais.

Tais observações, como aponta Marum (2005), são de suma importância, pois abrem caminho para a justicialidade dos direitos econômicos, sociais e culturais, frequentemente vistos como decorrentes de normas programáticas e, portanto, dependentes da vontade discricionária do governante para a sua realização.

Se a justicialização em âmbito interno brasileiro, que lança o Ministério Público como instituição constitucionalmente encarregada da defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, se revela em patamares tão relevantes, não se pode afirmar o mesmo no âmbito internacional, no qual a discussão ainda se encontra em fase bastante embrionária.

A justicialização dos direitos transindividuais, em larga escala, vem abrindo passagem tanto para a exigibilidade dos mesmos por grupos e coletividades cada vez mais expressivos da sociedade brasileira, como também para o dever de os representantes prestarem contas de seus atos no tocante às políticas que contemplam os direitos econômicos, sociais e culturais e, também, de serem responsabilizados por suas escolhas nos momentos em que agem sob o manto da discricionariedade, o que, por conseqüência, atinge diretamente o instituto da accountability, em especial, quando decorrente de tratado ou convenção internacional de proteção aos direitos humanos.

CAPÍTULO VI

INTERNATIONAL ACCOUNTABILITY E DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E

CULTURAIS NO BRASIL