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3. DESLOCAÇÕES DAS PERSPECTIVAS SOCIOLÓGICAS SOBRE O CORPO

3.2. Para uma abordagem fenomenológica e hermenêutica da experiência do corpo

3.2.1. A consciência do corpo e o controlo das emoções

Na tendência mais comum da perspectiva da incorporação, é através das emoções que se tem o sentido do corpo. Maioritariamente, o “corpo ausente” faz-se notar através das sensações e emoções (e.g., dor, fome, exultação, fraqueza, bem-estar, etc.). Permite, assim, ao indivíduo ter a sua consciência. A primeira “relação informada com o corpo” dá-se entre o corpo (físico e emocional) e a experiência incorporada (corpo social). Esta fornece o sentido, a consciência, a vivência do corpo (Lupton, 1998:85). A experiência da auto-representação, muito mais do que uma prática pictórica, passa também por uma experiência emocional dos artistas. Ao convocarem o corpo para a obra, usam diversos mecanismos emocionais fornecendo significações e mesmo respostas para as suas próprias questões existenciais. Diz HA: “(…) Isto é sobre o meu interior. Decorre de uma emoção pura. De qualquer coisa que aparece como um mergulho negro, qualquer coisa informe e que é uma emoção que impele ainda sem ter forma. É antes de tudo” (Helena Almeida apud Mah, 2000).

Segundo Lupton (1998:85), os estados emocionais fornecem a consciência do corpo através das dimensões sensuais. De facto, em experiências emocionais extremas, as sensações corporais são vividas como processos cognitivos ou racionais, normalmente, descritas como se ocorressem fora do corpo. O que representa uma questão de controlo e racionalização das emoções. Porém, as sensações corporais e sentimentos associados aos estados emocionais gozam de espontaneidade e de liberdade fora das fronteiras da mente e do autocontrolo. Muitas vezes, são percebidos negativamente através da perda de auto-regulação.

As emoções estão culturalmente associadas ao caos, ao excesso, à desordem, são consideradas imprevisíveis e irracionais, com algum grau de risco social e físico para o self e para os outros. Podem ser vividas para lá do controlo do self. Mas, ao mesmo tempo, consideradas parte da subjectividade. Daí,

falar-se de corpo emocional. Tradicionalmente, visto como fonte de corrupção, devido às “tentações da carne”, o corpo emocional foi excluído pela concepção dominante da divisão mente/corpo. Todavia, as visões mais modernas tendem a compreendê-lo (Lupton, 1998:85-86).67

Observar o papel da emoção é útil para compreender o sentido da objectivação na vida social. A emoção é construída e incorporada, relacional ou socialmente, nas suas origens e consequências. O carácter interactivo e relacional das emoções é um caminho para uma abordagem fenomenológica da incorporação. Ultrapassa a análise subjectiva, interna e individualista, na qual as instituições sociais entendidas em termos das relações corporais caracterizam a agência incorporada (cf. Csordas, 1994:14).

O modo como os indivíduos vivem e compreendem os sentimentos e estados emocionais referentes à incorporação e reflexividade é decisivo para a representação da corporalidade e das suas múltiplas linguagens (ressalva-se que emoções, sentimentos e subjectividade são diferentes, mas as suas formas de experimentação, interferem na construção da identidade).68

67 Na época medieval o sujeito revelava-se através do corpo grotesco e da celebração do excesso através de

actividades sociais praticadas e apreciadas, particularmente, em tempos de Carnaval. Porém, o processo

civilizacional (Elias, 1989-90 [1937]), empreendido desde a Renascença, serviu gradualmente, para “conter a

excentricidade e privilegiar o decoro”. Originou o controlo das emoções e a regulação estatal, política e civilizacional dos estados emocionais visíveis em público. A fluidez e volatilidade das emoções são problemáticas, porque tendem a dissolver as barreiras entre interior e exterior (Lupton, 1998:85-86). Desafiam as fronteiras corporais, inspiram aversão e medo. Como os fluídos corporais, as emoções penetram e infiltram-se no corpo, e o controlo é “vigilância não garantida” (Grosz, 1994:194). Os discursos contemporâneos sobre as emoções, incorporação e subjectividade evidenciam uma contínua oscilação. Encerram a importância da regulação e controlo das emoções voláteis e a necessidade de expressá-las, permitindo que escapem do corpo. A regulação excessiva é prejudicial, cria bloqueios, repressões emocionais e tensão. O discurso das emoções refere-se, assim, à fragmentação. Realça o eu mais real, particularmente, segmentado (Grosz, 1994:194-195). Para Elias (1989-90 [1937]) a resposta para as transformações emocionais dos indivíduos reside no enquadramento social a que estão sujeitos. De encontro a Freud (1985 [1890]), para quem, todo o processo de desenvolvimento e organização social dos grupos humanos pode ser interpretado como esforço prático, necessário, para controlar a expressão social. Particularmente, os instintos sexuais e agressivos. Sugere que os instintos nunca são aniquilados e apenas reprimidos para o subconsciente. O que os mantém nesse limbo é o superego, o conhecimento interiorizado de exigências e pressões exercidas pelo grupo. O ego situa-se entre dois poderes: os instintos (que foram empurrados para o subconsciente) e o superego (me), que faz pressão sobre o ego (I). Elias sugere, de acordo com Freud, que a experiência do self reside nesta dupla pressão, à qual o indivíduo está exposto. Ao viver em grupo, o sujeito controla-se. A esta situação, à formação do I e do Me, da supressão dos instintos e da produção do superego, dá-se o nome de socialização (Elias, 1989 e Freud, 1985 apud Bauman, 1990:31).

68 Sobre estas distinções ver Damásio (1995:xii-xix): os “sentimentos” derivam da forma como os sentidos

Lyon e Barbelet (1994) propõem um modelo do corpo como sujeito da agência externa, mas ao mesmo tempo, agente na própria construção, intercomunicativo e activo, através da emoção. A emoção integra a existência humana activando diferentes disposições e movimentos, não só de atitude, mas físicos. Envolve o modo como os corpos individuais, em conjunto, articulam um objectivo comum, desejo ou ordem. O papel da emoção mostra, precisamente, a experiência da sociabilidade incorporada, que funciona, socialmente, como base da agência/excorporação. A emoção orienta o organismo para a acção social, pela qual as relações sociais são geradas. A acção é, necessariamente, corporal e envolve movimentos físicos complexos, não somente, individuais, mas associativos (Lyon & Barbelet, 1994:48- 50). A capacidade para a agência, contributo colectivo e individual, na construção da sociabilidade, advém da experiência vivida da incorporação. Os indivíduos não experienciam os corpos como objectos exteriores que lhes pertencem, ou intermediários com o ambiente que os envolve; os indivíduos experienciam os corpos, nos seus corpos e através deles. A emoção é essencial para compreender a agência da praxis incorporada/excorporada. Avalia estímulos externos e internos, relevantes ao organismo, e prepara as reacções do comportamento requeridas como resposta (Lyon & Barbelet, 1994:54).

A emoção/corpo conecta os artistas às obras, a importantes características conceptuais úteis à compreensão da construção dos seus significados e interpretações visuais, desta forma também, interligando a obra e o espectador:

A figura quer fugir, mas não há fuga possível. No entanto, o personagem não faz da queda uma tragédia. A sua atitude poderá ser de tristeza, mas é também corajosa, implicando necessariamente a coragem de tentar alcançar a utopia, sair, persistir no desejo de voar apesar de estar por terra. Reflecte a obsessão de sair, de “abrir novos espaços” que percorre o trabalho de Helena Almeida. Reflecte também uma impossibilidade, uma derrota, e no entanto, transmite um sentimento em que a consciência da realidade e a esperança se misturam (Martinez, 2001: n.p.).69

O corpo e os estados emocionais juntam a natureza e a cultura num mesmo interface, com repercussões a nível das funções discursivas. Estas constituem distintas configurações das experiências e manifestações se através de expressões corporais. A “subjectividade” diz respeito às condições de interpretação (dimensão cognitiva) da incorporação dessa mesma realidade objectiva, bem como, às condições de excorporação, quer pelo discurso quer pelo próprio corpo (experiência e expressão).

69 Trecho sobre a obra Voar de HA em que a artista tenta experimentar a sensação de voar, a partir de um banco

corporais e, afectam as formas identitárias e as suas representações.70 A obra surge como um outro espaço de apresentação e manifestação expressiva, para o artista, no mundo simbólico e social do seu envolvimento. Para Grosz (1994:117), não há oposição entre o corpo material e as suas diversas representações culturais e históricas. Estas, praticamente, constituem corpos e ajudam a produzi-los como tal. Como uma condição do seu íntimo, ou talvez como consequência da sua abertura orgânica à competência cultural, os corpos devem tomar a ordem social como núcleo produtivo, porque parte da sua natureza é uma incompletude orgânica ou ontológica, assim como, uma disposição para a compleição social, ordem social e organização discursiva.

Figura 3.4.2. Helena Almeida, Voar, 4 Fotografias em tons de azul 124 X 180cm, 2001. Colecção Ordoñez Falcon, San Sebastian. Fonte: Intus, Helena Almeida. Catálogo da Exposição, FCG, 2006:58.

Porém, como Mirzoeff afirma (1995:2), o “corpo, na arte, deve ser distinguido da carne e do sangue que imita”, surgindo na representação não como si próprio, mas como signo. Representa-se a si e a um conjunto de significados que o artista não controla completamente, e que delimita pelo uso do contexto, pelo enquadramento e pelo estilo. Assim, cada corpo físico é um todo individual, mas cada figura do corpo pode representar muitos corpos, com numerosas significações. Elas próprias um produto social, construído no contexto de uma situação particular. A forma como a representação é interpretada e

70 “Pode compreender-se a natureza sociocultural dos corpos e das emoções observando os discursos e os

comportamentos que as envolvem, os quais são formas de reproduzir sensações incorporadas ou estados internos de sentir (através de imagens, gestos ou palavras), para transportar as suas propriedades aos outros” (Grosz, 1994:116-117).

apresentada, visualmente, pelo artista faz parte dessa construção. Tanto que o significado da imagem artística do corpo, embora, epistemologicamente, distinto do seu referente, emerge da inter-relação entre sujeito e ordem cultural.

O corpo na representação é, simultaneamente, produtor de objectos artísticos e discursivos, e produto discursivo desses mesmos objectos. Através da relação com a técnica e com a arte esboça novos limites espaciais e temporais, técnicos, visuais e discursivos, para a sua apresentação.

Estes novos espaços de apresentação trazem também novos usos para o corpo e suas extensões. São outras afinidades electivas que oferecem novas possibilidades de interpretação e investigação. Novas construções discursivas e novos “modos de ver”, sentir e agir dos corpos dão lugar a outros modos de ser. Efeitos de práticas incorporadas/excorporadas e articuladas simbolicamente, estabelecem identificações/identidades com as especificidades das suas múltiplas vertentes.71

71 Os mecanismos de representação, modos através dos quais se produzem discursos sobre o eu e os outros, estão

intimamente ligados às dinâmicas de construção identitária (Hall, 1996; Woodward, 2005). A identidade vive das fórmulas de representação, pois é assim que se exprime e, manifesta socialmente, servindo como matéria de comunicação. Os processos de monitorização e transformação identitária abastecem-se dos diversos modos de representação e vice-versa. A forma como o individuo olha e se expressa está, intimamente, ligada à forma como é olhado e contemplado pelos outros, e ao modo como estes o exteriorizam, num jogo de olhares cruzados (Goffman, 1999). Este olhar funciona como espelho que ajuda a configurar a imagem pessoal. Logo, a representação visual de alguém tem implicações no modo como esse alguém se apresenta e representa visualmente e, portanto, naquilo que se pode definir como a sua identidade visível ou visual. Processo complexo constituído de uma multiplicidade de agentes, canais e aparelhos de comunicação, a identidade em elaboração é o resultado transitório da sinalização e avaliação de múltiplas representações e de negociação, à luz das várias possibilidades de apresentação/representação (Hall, 1996b; Woodward, 2005 e Goffman, 1999 apud Campos, 2010:119-120).