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2. CONCEITOS E DIMENSÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS DE INVESTIGAÇÃO

2.2. Estudos de caso e sociologia

2.2.1. Estruturas e níveis de análise

A noção de “estrutura” deve reconhecer tacitamente a agência dos actores sociais, ultrapassando visões materialistas e semióticas de estrutura (Sewell Jr., 1992:6-23), pois esta não constrange apenas, também capacita, é o médium e o resultado das práticas constituintes dos sistemas sociais (o que implica a ideia de dualidade). Consequentemente, as acções têm a capacidade de transformar as estruturas que as possibilitaram. Logo, as estruturas duais são potencialmente mutáveis, pressupondo um processo em vez do estado imutável dessas estruturas (Sewell Jr., 1992:4; ver também Giddens, 2002 [1979]).39

As estruturas são agenciadas por “sujeitos cognoscentes” que actuam segundo o seu conhecimento estruturado, inovador e criativo, ou seja, reflexivamente (Giddens, 1979 apud Sewell Jr., 1992:4), de acordo com “regras” ou “esquemas culturais”, mediante a mobilização de recursos.40

Os esquemas culturais são “procedimentos generalizáveis” (que podem ser transpostos e alargados a novas situações) através da mobilização de recursos na acção/reprodução da vida social. As estruturas ou esquemas culturais tem diferentes graus de profundidade (há regras mais superficiais do que outras, embora igualmente, importantes no processo de estruturação da vida social) e poder.41

39 Ideia implícita, também, na proposta de Archer (1995) através do conceito de “elaboração estrutural”, mas na

qual as estruturas sociais são anteriores, exteriores, autónomas e exercem influência causal sobre os indivíduos. Porém, para que essa influência seja exercida, é necessário que os poderes causais das estruturas sejam activados pelos agentes. Por sua vez, os agentes possuem também poderes emergentes tendo eficácia causal sobre as estruturas. A activação dos poderes agenciadores dos sujeitos pode resultar naquilo que Archer (1995:79) apelida de elaboração estrutural, ou seja, na transformação das estruturas iniciais.

40 Segundo este autor, a definição de “regra” ou “conjunto de procedimentos gerais aplicados no agenciamento da

vida social” (Giddens, 1984:21 apud Sewell Jr., 1992:7) implica “não apenas o conhecimento de regras no sentido formal ou burocrático do termo, mas também os recursos no sentido material e operativo do termo, assim como metáforas, proposições e esquemas informais, nem sempre conscientes, pressupostas por tais afirmações formais”. Assim, segundo Sewell, Jr. (1992:7-10), aquilo a que Giddens chama regras são de facto esquemas culturais, os quais implicam recursos nas suas formulações, agenciamentos e a transformação social, e são reais e não virtuais. A ideia de regra deve incluir o conjunto dos esquemas culturais, tais como ferramentas de pensamento, hábitos, convenções, princípios de acção, discursos e gestos.

41 Sewell, Jr. (1992:11) defende que, para serem virtuais em vez de reais, as estruturas devem ser vistas como

“sistemas de regras” ou “esquemas culturais” e não como “sistemas de regras e recursos” (como em Giddens). Os recursos são um “efeito das estruturas”, cuja distribuição é estruturada pelos esquemas culturais. Todavia, esta ideia tem implícita uma relação unilateral, logo admitindo a dualidade da estrutura é preciso concebê-la, reciprocamente, como “efeito do agenciamento dos recursos”. Os recursos são usados para exercer o poder e desigualmente distribuídos. Mas apesar da existência desta desigualdade, conceber os seres humanos como agentes significa que estes são (mais ou menos) capacitados pelo acesso aos recursos (Sewell Jr., 1992:6-23). O

A profundidade refere-se à dimensão dos esquemas culturais e o poder refere-se à dimensão dos recursos. E, têm a ver, respectivamente, com mais ou menos, durabilidade e dinamismo dessas estruturas (Sewell Jr., 1992:19-25). Quanto mais profundas forem as estruturas, como a linguagem, mais tendência a ser mais duráveis. Quanto menos profundas forem as estruturas e com mais concentração de poder, como as indústrias culturais, a tendência é serem menos duráveis, e, portanto, mais dinâmicas.42

Assim, se a linguagem da obra tende a ser mais durável, já os discursos sobre ela são estruturas mais ou menos duráveis, e com considerável concentração de poder. Logo, também, relativamente dinâmicas, envolvendo diversos recursos (nomeadamente ao nível das mediações, gatekeeping, comissários, coleccionadores). A obra, legitimamente reconhecida perdura no tempo e, dificilmente perde estatuto ou é esquecida. Embora possa vir a ser excedida por outras, o valor acumulado não é desvirtuado, ela é uma marca. Contudo, carece de investimentos e agenciamentos (discursivos, mediáticos, criação de redes) para se manter, sendo por isso, impossível prever a sua acumulação, i.e., a dimensão do seu poder/reconhecimento.

O poder não é um atributo, é uma relação. O poder não é um recurso. O poder é gerado na relação/prática através da mobilização de recursos, que depende de outras condições, como da posição dos sujeitos no espaço da(s) prática(s). Influi através da capacidade transformadora na produção de códigos de significação, não apenas a partir das estruturas de dominação,43 mas nas relações entre múltiplas estruturas ou entre estas e agentes, criando estruturas (in)formais, plásticas e mutáveis de significação e sentido, mesmo a níveis intermédios, com relevância em processos de decisão e organização. São exemplos, na arte, os discursos de vanguarda e novas linguagens, nascidas por vezes, a partir do trabalho de um número reduzido de indivíduos.

autor distingue os recursos em humanos (a força física, destreza, conhecimento, compromissos emocionais); e não-humanos (alocativos, no sentido de Giddens, ou objectos materiais; incluem, stocks de armas, fábricas, terras, etc.). São médiuns de poder, incluindo o conhecimento para ganhar, reter, controlar e propagar os recursos, em geral, disponíveis. É impossível prever a sua acumulação, são polissémicos, envolvem a reflexividade e a incorporação, sendo o seu significado sempre ambíguo ou múltiplo (Sewell, Jr. 1992:10-19).

42 Por exemplo, “o capitalismo é uma estrutura altamente dinâmica e ao mesmo tempo durável” (ver Sewell, Jr.

1992:25).

43 Segundo Giddens (1989: 24-25), o poder é relacional, instanciado na acção como fenómeno regular e rotineiro. É

a capacidade dos actores para assegurarem os resultados desejados no decorrer da interacção, mas por outro lado, consiste na mobilização de preferências, edificada sobre a forma de instituições. O poder actua através da capacidade transformadora, gerada nas estruturas de dominação, sendo esta a própria condição de existência de códigos de significação (Giddens, 2000:83; ver também Pires, 2003:21).

Mas essa é a própria dinâmica da esfera artística, depende de factores sociais e/ou políticos, assim como a relevância da obra depende de factores circunstanciais como, do já referido, acesso dos artistas a recursos e relações, ou seja, das posições ocupadas nesta esfera.

No desenvolvimento do seu trabalho, os artistas mobilizam diferentes recursos (corporais, imagéticos, materiais), permitindo-lhes aceder e criar diferentes códigos e relações (políticas, de mercado, culturais), em função dos quais constroem as trajectórias curriculares, pois as estruturas são múltiplas e intersectam-se tendendo a variar entre diferentes esferas institucionais. Por exemplo, as estruturas operativas ou criativas têm lógicas e dinâmicas distintas das estruturas estéticas e políticas, com variação dentro de cada esfera. Isto é, podem incluir formas autoritárias, proféticas, ou teóricas, e operar em harmonia e cooperação, como conduzir as reivindicações pelo poder entre agentes e artistas, originando mudanças e transformações nas trajectórias, como a forma como os artistas passam de desconhecidos a reconhecidos (cf. Sewell Jr., 1992).44 A intersecção das estruturas tem lugar em ambas as dimensões (profundidade e poder). Os recursos são mobilizados pelos actores envolvidos em

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Sewell Jr. (1992:14-16) afirma que a teoria da prática de Bourdieu é compatível com esta ideia de dualidade da estrutura, porque reconhece a reprodução mútua de esquemas e recursos que constituem essas estruturas temporariamente duráveis ou habitus. Contudo, o termo retém a ideia de um agente pré-determinado que reproduz as estruturas – sistema adquirido de esquemas generativos objectivamente ajustados a condições particulares, que engendra todas os pensamentos, todas as percepções, todas as acções consistentes com essas condições e nenhuma outra (Bourdieu, 1977:95 apud Sewell, Jr., 1992:15) – colocando a transformação social como um acto não-reflectido e pressuposto às escolhas e vontade dos agentes-sujeitos humanos. Porém, é preciso pensar os sujeitos dotados de consciência e vontade, agentes com acesso diferenciado ao poder (acesso a recursos) cujas capacidades para usá-lo, pensar e reflectir sobre estas categorias, lhes permite actuar no mundo social. Mas não uma consciência necessariamente separada ou independente das estruturas, pelo contrário, implicada nelas, ou seja, na sua vertente incorporada (questão onde reside precisamente uma das fraquezas da proposta de Archer: na “ausência da vertente de interiorização da exterioridade de que falava Bourdieu” [mas não determinada], cf. Caetano, 2011:158). Se noutras concepções o habitus é visto como um “princípio de improvisação” (Meagher, 2007:9), porque encerra uma actualização feita pelas condições do momento, ainda assim, é evidente esta predeterminação do sujeito existente na formulação do conceito de inspiração marxista e ideal-estruturalista de Bourdieu, em que a subjectividade é sempre objectivada, e mesmo a liberdade de acção e das escolhas é condicionada: “Escapa ao subjectivismo ao aceitar a existência de determinações objectivas da percepção” – “A ilusão da criação livre das propriedades da situação e dessa maneira, dos fins da acção encontra (…) justificação (…) no círculo característico de todo estímulo condicional que deseja que o habitus não possa produzir a resposta objectivamente inscrita na sua fórmula se não enquanto atribui à situação a sua eficácia impulsionadora ao constituí-la de acordo com os seus princípios” (Bourdieu, 2009:86- 89). “A teoria de Bourdieu é [pois] vítima de uma objectivação impossível e de uma concepção sobre totalitarista de sociedade” (Sewell Jr., 1992:15).

diferentes complexos estruturais, e os esquemas podem ser atribuídos e empregues diversamente entre eles. As estruturas artísticas incluem um modo de produção, baseado em regimes estéticos reconhecidos e um modo de organização do trabalho baseado na singularidade; a obra e o conhecimento aparecem como um recurso em ambas, e os seus significados e consequências, para artistas e espectadores são, contudo, abertos e contestáveis.

Concluindo, as estruturas são conjuntos de esquemas e recursos sustentados que capacitam e constrangem a acção social e tendem a ser reproduzidas por essa mesma acção social. Mas a sua reprodução não é automática. Comportam risco, em todos os domínios de sua actuação, por serem múltiplas e se intersectarem, porque os esquemas abstractos são transponíveis e extensíveis a outras situações, e porque os recursos são polissémicos e acumulam-se de forma imprevista.

Colocar a relação entre esquemas e recursos no centro desta concepção permite demonstrar como a mudança social, não menos do que a estabilidade social, pode ser gerada pelo agenciamento estrutural na vida social, o que implica um conceito de agência constituinte, em vez de exterior, a essas estruturas (cf. Sewell Jr., 1992:20). O agenciamento de recursos por parte dos artistas e outros agentes culturais é interno às estruturas artística e estética, eles não operam a partir de fora, eles são a própria estrutura ou parte dela.45

Se a existência de estruturas pressupõe a existência de agência “constituinte” em vez de externa às estruturas sociais, a agência pressupõe a existência de estruturas, não só autónomas, exteriores e transcendentes ao indivíduo (Archer, 1995; Giddens, 1984), mas também incorporadas (Bourdieu, 2009). Tendo em conta a dimensão do poder das estruturas (que depende do acesso a recursos), nem todos os indivíduos têm a mesma possibilidade de agenciarem “modelos criativos na definição das suas condutas” (cf. Caetano, 2011:161). Tendo em conta a dimensão da profundidade das estruturas (i.e., esquemas mais

45 Os agenciamentos são gerados ao nível da interacção, na qual “todos os membros da sociedade empregam

complexos de habilidades interactivas e conhecimento interpessoal, de modo a controlar e manter as relações sociais, como demonstrou Goffman” (1999 apud Sewell Jr., 1992:21). O conhecimento dos esquemas culturais implica, assim, “a capacidade para agir criativamente, e na medida do controlo das relações sociais em que os actores se vêm envolvidos, como no âmbito dos seus poderes transformativos”; pequenas acções podem, portanto, ser transformativas de uma determinada situação, influenciando resultados. Neste sentido, para Sewell Jr. (1992:21) a agência difere em termos de “tipo” (intenções, desejos e perspectivas dos sujeitos individuais) e de “âmbito” (posições ocupadas). E pode ser individual ou colectiva, por exemplo, no caso de “acessos organizados a recursos” ou do “acto comunicativo” que estes implicam, no sentido de “formar projectos colectivos, coagir ou promover efeitos simultâneos de actividades individuais e alheias” (ibid.).

ou menos duráveis), nem todos têm o mesmo poder/efeitos na sua transformação, embora tenham essa capacidade, que é desigual porque a distribuição e o acesso aos recursos, também, é desigual; e, porque, os modelos criativos/reflexivos, também, são diferentes.

Falar em “agência e criatividade, reflexividade ou acesso a recursos nos comportamentos humanos implica fazê-lo, sempre, por referência às estruturas sociais”. Para a sua compreensão “não é, por isso, necessário escolher entre estrutura e agência. Essa escolha apenas faria sentido caso se pretendesse adoptar perspectivas, excessivamente, deterministas ou voluntaristas, que não integram a combinação dos poderes causais de ambas na explicação do mundo social” (cf. Caetano, 2011:160). Na verdade, como afirma Costa (1999:488 apud Caetano, 2011:159):

A reflexão sobre a análise dos sujeitos, das suas opções e do seu lugar no mundo social implica que as estruturas sejam perspectivadas como entidades externas porque são tomadas como objecto que capacita ou constrange. [Mas, por outro lado], as deliberações reflexivas não assumem em exclusivo o papel de orientação da acção. Os processos de interiorização das estruturas sociais permitem desenvolver nos sujeitos um conhecimento prático do real que engendra acções ajustadas às suas probabilidades objectivas.

Assim, as perspectivas dualista de Archer, da dualidade de Giddens e Sewell Jr., ou da prática de Bourdieu, “reportam-se a diferentes componentes da relação entre estrutura e agência”, e entre estruturas que “devem ser entendidas como variáveis e combinadas para que se consiga elaborar um entendimento, mais completo e complexo, das práticas sociais” (ibid.). Como pretendido da análise da auto- representação, como prática artística e discursiva, de modo a aferir não só os seus mecanismos causais intrínsecos, mas representativos.