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2. CONCEITOS E DIMENSÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS DE INVESTIGAÇÃO

2.4. Corporalidade como lugar de significação e identidade

Qualquer discurso sobre o corpo parece ter que enfrentar uma resistência. Ela provém certamente da própria natureza da linguagem (…) como para a morte ou para o tempo, a linguagem esquiva-se à intenção de definir: [e] cada definição permanece um ponto de vista parcial determinado por um domínio epistemológico ou cultural particular (Gil, 1997:10).

Inscrita numa linha mais construtivista advinda de autores como Elias, Foucault ou Bourdieu, a

incorporação é um conceito central nas perspectivas sobre o corpo. Dá conta do “processo corporal de

interiorização não-verbal, inconsciente, mimético, automático, de certas disposições de desigualdade e de poder, do modo de interiorização, mas também de reprodução” dessas realidades. Ou seja, refere-se à “dimensão do processo de socialização”, através do qual se constrói e se mantém a vida social, concedendo ao corpo o estatuto de “operador social” onde por um lado, “se revela a eficácia do social sobre o indivíduo e onde, ao mesmo tempo, o social se torna possível” (Vale de Almeida, 1996:6).

Nesta tese é analisada como “duplo movimento de interiorização da exterioridade, acompanhado de um movimento de exteriorização da interioridade” (Ferreira, 2006:100) à semelhança do embodiment, que seria neste caso, mais correctamente traduzido por “encarnação”, através do qual o indivíduo vive e modifica o mundo, para não esquecer a dimensão propriamente carnal do corpo que a perspectiva construtivista da incorporação escondia (cf. ibid: 110):

50 Processo descrito por Becker (1997) como thick description ou “descrição aprofundada do objecto que não

considera apenas o seu valor facial, mas também interroga a diversidade de lógicas e interesses dos actores sociais, a configuração interna das relações sociais e de poder em que o objecto está imerso, as tensões e os processos de produção e reprodução societal” (Becker, 1997 apud Guerra, 2012 [2006]:37).

Adoptando a identidade como a experiência de forma incorporada e centrando a atenção na constituição dos agentes sociais, é possível distinguir duplas naturezas que habitam o corpo, por um lado físico, carnal, mas também entidade social; símbolo primeiro do self e da comunidade, algo que se tem e que se é, individual e único, mas também comum à humanidade; ao mesmo tempo, objecto e sujeito. Neste sentido reforça-se a necessidade de admitir o vínculo cognitivo mais directo com o exterior, o corpo é em si mesmo uma construção social, ou seja, a estruturação sensorial e experiencial varia social e, historicamente, afectando todo o conhecimento, incluindo aquele que se cria sociologicamente (Selgas, 1994 apud Ferreira, 2006:113).

Logo, recorre-se não só de uma “sociologia da incorporação”, capaz de identificar e decompor os mecanismos de regulação e reprodução social, mas também a uma “sociologia da excorporação” através de uma concepção do corpo que integra a “possibilidade de agenciamento [e], capte o enraizamento carnal da acção e a respectiva subordinação a uma intenção reflexiva prévia” (Ferreira, 2006:103).

A intencionalidade refere-se aqui à capacidade do sujeito projectar e planear o futuro, que tal como a retrospecção e (auto)observação estão incluídas no reportório da reflexividade. A intencionalidade é um aspecto importante da mente e da personalidade do sujeito, à semelhança da capacidade reflexiva deste sobre as suas próprias acções – introspecção, implicando o seu reconhecimento ou retrospecção, que se objectiva ao nível da interacção. Ou seja, embora a intenção seja prévia à acção, o seu reconhecimento só pode dar-se retrospectivamente, sendo desta forma coetâneo e parte do seu objecto (Jenkins, 2008 [1996]:55).

As “práticas de excorporação” implicam, portanto, aquele “duplo movimento” de dis-

incorporação, que excede o “estado inicial de incorporação, onde o corpo é naturalizado, tomado como

um dado adquirido no curso da vida”, em direccção a um “movimento de re-incorporação, que passa pela recriação de uma outra corporalidade, voluntária e desejada” (Ferreira, 2006:103-104). Como nas representações do corpo nas obras de HA e JM, por identificação (ou não) dos artistas com o seu próprio trabalho: “um olhar da corporeidade através da excorporação” implica “olhar o corpo numa perspectiva da sua condição expressiva e comunicativa, o corpo transformado em simbolização intentada, para além da simbolização incorporada, que decorre por via da atribuição de significados por parte de outrem ao corpo próprio” (cf. Ferreira, 2006:104).51

51 Porque a “percepção dos objectos” – a “consciência que cria o sentido” depende tanto da capacidade do sujeito

se olhar a si próprio como objecto como do olhar dos outros sobre esse objecto i.e. da voz internalizada do controlo externo - generalized other (Mead, 1934 apud Jenkins, 2008:57). É através deste processo dialéctico interior-exterior que o self é interactivamente construído.

A corporalidade é tratada, nesta tendência, como o “lugar sígnico” da construção social do corpo que reflecte uma determinada posição social na estrutura das relações de poder. O social deixa de ser da ordem da abstracção, para corresponder ao “implícito”, expresso pelo corpo no decorrer da interacção. Uma ideia, por sua vez, traduzida pelo conceito de embodiment ao assinalar duplamente o sentido da incorporação e da excorporação (Csordas, 1994:1-16). E, enquadrada também pelo habitus (e a sua reprodução), ou seja, pelas disposições incorporadas, discursivamente, reproduzidas e, criativamente, reconfiguradas e excorporizadas pela prática da auto-representação.

A corporalidade é a manifestação do corpo físico e símbolo do que se diz sobre ele. Revela o corpo “vivo e vivido” (Le Breton, 1990 e 1992; Turner, 1992 e 1996), eixo estruturador das relações humanas e fundamento da sociabilidade. Operador prático e teórico de regras sociais, e mediador de realidades físicas e abstractas, inerentemente, ligadas, o corpo, representa o paradoxo da existência, por um lado, dada, por outro, construída. Na prática, as auto-representações são vistas como manifestação do efeito de regimes simbólicos, socialmente, determinados, mas também como resultado de um “estar no mundo, culturalmente situado”, mais do que material, vivo e em devir, essencialmente, pragmático e discursivo (Csordas, 1994):

O corpo tende a perder toda a substancialidade que lhe é própria, em detrimento de uma cadeia infinita de signos socialmente instituídos ou difusos. O referente, deixa de ser, ele próprio, objecto do conhecimento, para passar a ser significação (semântica) e a eficácia pragmática dos enunciados que através e a propósito dele são feitos. (…) É assumido, do ponto de vista epistemológico, como operador social e discursivo, sendo analisado enquanto manifestação e efeito de regimes simbólicos, socialmente, determinados (Berthelot, 1992:16-18 apud Ferreira, 2006:109).

A corporalidade designa, neste sentido, também, “o ambiente geral no qual os corpos se situam uns em relação aos outros” (quer sejam os corpos pessoais, os corpos metafóricos, institucionais ou grupos, os corpos naturais ou místicos). É o “horizonte da comunicação (…) pano de fundo da exacerbação da aparência” (Maffesoli, 1999:134-135). Neste processo, comunicacional da corporalidade, uma lógica da identidade assume um outro aspecto – o da identificação. Concebida através da sociabilidade, relativiza a individuação, enquanto exacerbação narcísica do eu pessoal, pois a procura de identificação designa também um ser comum, ou melhor, um querer ser comum e, não apenas a auto-afirmação.

A convicção na identificação com o colectivo obedece a uma lógica da aparência, ou até a uma

(Maffesoli, 1999:306). A existência do eu constrói-se a partir de uma lógica/relação comunicacional, pela consciência reflexiva do sujeito sobre o seu eu pessoal, na sua relação com os outros significativos (incluindo os múltiplos eu(s) do próprio sujeito).

Único, mas também comum à humanidade, o corpo é, ao mesmo tempo, objecto e sujeito individual (e social). Algo evidenciado nas expressões – Eu tenho um corpo; Eu sou um corpo. Estas apontam em simultâneo, para uma consciência intrínseca e, para uma consciência extrínseca do corpo. Representam também, o sentimento de propriedade do eu pessoal sobre o próprio corpo, ou a distinção entre a consciência de si e a da imagem de si. E designam, respectivamente, a dimensão pessoal e comunicacional da corporalidade.52

Sintetizando, a corporalidade, aspecto central dos discursos dos artistas, representa não só as formas de construção do corpo segundo os diversos contextos espácio-temporais, mas a incorporação e a excorporação, a percepção do mundo e a experiência dela, os sentidos e a formação cultural. É um conceito fundamental para compreender o processo de construção identitária e as práticas dos usos do corpo na obra. As imagens, marcas expressivas e distintivas na construção da identidade pessoal e social integram os projectos de vida particulares, redes e relações sociais dos artistas e, são causas de fenómenos sociais determinados, como a fundação e reconhecimento dos seus nomes e obras.

Os sentidos dos usos do corpo na obra e suas representações em HA e JM dependem, assim, das lógicas simbólicas subjacentes, num encontro permanente com a “corporalidade” e “identidade” dos artistas. A sua relação é um processo dialéctico que pode ser recriado a partir do modo como constroem as narrativas da auto-representação, pois a corporalidade define como se cria, a partir da imagem/obra, a alteridade; e, demonstra como os próprios artistas virtualizam os discursos produzidos sobre a sua

singularidade – autodefinições individuais e, definições colectivas externas, com as quais acabam por se

identificar, construídas no decurso da prática (artística e discursiva) da representação.

52 A corporalidade é a qualidade da condição corpórea, com significância simbólica e social, que liga o corpo a

diferentes áreas culturais, tanto pela materialidade (ou seja, da sua condição e existência física primordial) como pela experiência vivida e expressiva. Os significados culturais e simbólicos distinguidos no âmbito da sua definição, em conjugação com as técnicas corporais (cf. Mauss, 1980 [1936]) praticadas através do corpo (e.g., posar para a câmara fotográfica ou movimentar o corpo utilizando diferentes posturas) fazem dele o lugar de mediação do sujeito social e unidade fenomenológica do sujeito no mundo. Torna-se, progressivamente, num ícone cultural, simbólico e estético envolvido no mundo da aparência, da estetização e da representação (Maffesoli, 1999).

A singularidade notabiliza os artistas enquanto autores e personalidades reconhecidos no mundo da arte, é o suporte da sua identificação e reconhecimento. Uma singularidade autoral, mas também biográfica:

A singularidade introduz um suplemento de diferença na noção de individualidade, tal como Elias a entendeu. Isto é, produto de um processo psico e socio genético, pois, se o “que chamamos de individualidade de uma pessoa é, em primeiro lugar, uma particularidade das suas funções psíquicas”, moldam-se pelo quadro de interdependências sociais e pessoais, é a orientação co-relacional de toda a individualidade. A condição artística acrescenta a esta definição geral a especificidade de serem auto e hétero-reguladas pelo primado de uma diferença. Que diferença? A da obra, que todos os criadores desejam, suficientemente, convincente e reconhecida para fazer do seu nome uma referência. Na arte, a singularidade advém deste efeito de mútuo reforço da diferença nos vários planos, pessoal, interpessoal e social dos espaços artísticos que assim se distinguem de outros domínios profissionais. É, em síntese, tanto uma causa, como consequência. [Enquanto isso] o que a investigação biográfica pode fazer é superar na reconstituição das trajectórias mais pessoais dos artistas. O fundamento que a elas se liga (…) é o contexto. A percepção das características do espaço artístico; a posição que cada indivíduo ocupa e os seus vários atributos: localizações no tempo, país de origem, de residência ou de passagem, geração, família, entre outras redes e círculos de relações. Contudo, sem esquecer que assim como a arte transcende a biografia, os indivíduos não se reduzem apenas à representatividade dos seus contextos. Especialmente, aqueles que se distinguem, eles próprios, pela forma pessoal como desafiam ou se colocam em relação a esses contextos. Perspectiva que acolhe outra faceta da singularidade e, já antes referida, a da individualidade (Conde, 2011b:40-53).

Esta lógica prevê considerar os artistas como sujeitos das/nas obras (pressupondo uma acção reflexiva por parte destes na sua construção, e autodeterminada); e actores (desempenho de múltiplos papéis sociais e os vários papéis representados nas imagens). Estes relacionam-se com outras figuras do mundo da arte relevantes ao estabelecimento de redes de comunicação e discursividade e, imprescindíveis à concretização dos artistas como autores reconhecidos. E, por fim considerá-los como agentes das práticas (os artistas, e outros agentes, potencialmente re/produtores de contextos, transformações e significações discursivos).

Os usos do corpo na obra são observados como processo e projecto discursivo de construção de sentidos para a identidade, corporalidade e obra. Estão em causa, quer um sentido semântico potencial directamente implicado, mas não determinado, das leituras possíveis dos usos do corpo na obra, seu principal fundamento; quer a captação da relação de sentido dos usos do corpo na obra, numa concepção weberiana do termo, ou seja, conhecer este fenómeno a partir da sua compreensão como facto, cujo sentido aponta para outros factos significativos.

O sentido, quando se manifesta, dá à acção concreta o seu carácter, seja ele político, económico ou religioso, artístico ou estético. O objectivo do sociólogo é compreender este processo, desvendando as ligações causais (conjunturais e outras) que dão sentido à acção social em determinado contexto (Aron, 2010:469-470; sobre esta questão ver também Habermas, 2010:29-31).

Em suma, nesta tese, o corpo é a unidade primordial do sujeito no mundo, o meio pelo qual este exerce a sua experiência/actividade e, simultaneamente, um fim em si mesmo, como objecto da representação. Considera-se a representação, ao mesmo tempo, experiência subjectiva, incorporada e excorporada, do sujeito e, prática discursiva, objectivada na obra, transversalmente ao processo de significação e interpretação onde é gerada. Ou seja, pelas condições materiais e discursivas contextuais que a originam como linguagem visual, textual e simbólica.

Através desta análise crítica53 pretende-se compreender as narrativas subjacentes aos casos HA e JM, em que o corpo é sujeito e objecto da obra de arte, lugar social do eu pessoal (sujeito da obra) e ao mesmo tempo ocupa o lugar privilegiado da obra (sujeito na obra), constituindo-se posteriormente na própria obra, autêntica, imanente, e mesmo condição de possibilidade autoral, i.e., espaço social para o nome do artista.

Uma obra onde o corpo aparece como médium da identidade/reconhecimento, e onde a estética de uma corporalidade erigida à luz da própria imagem, faz parte das escolhas e constrangimentos que delimitam a construção identitária e o projecto pessoal, como uma ética plural, socialmente aceite.

Este processo de auto-recriação é constante pela predeterminação, mas também indeterminação contínua da obra, um universo plástico pleno de significantes, ao qual é necessário aceder, constantemente, numa muito pessoal, procura de sentidos. Ao fazê-lo os artistas usam conhecimentos, linguagens próprias, especificações técnicas e tecnológicas, sobre as quais também investigam. Muitas vezes o seu trabalho é uma experimentação, uma prática que explora diversos elementos, como a

53 Porque não-absoluta e ultrapassável; esta perspectiva é apenas uma construção de sentido, neste caso

sociológico, para os usos do corpo e suas representações em HA e JM, a acrescentar aos muitos outros sentidos já existentes sobre a obra dos dois artistas. O sentido, este ou outros, são, no entanto, sempre mutáveis (e construídos). Portanto, o ponto de vista crítico é a única forma de empreender uma análise deste tipo. Mesmo o sentido que se diz subjacente é construído a posteriori. No mínimo, adopta-se a ideia da existência de uma intenção reflexiva prévia, por parte do agente (como “motivação” ou “ideia para”, orientadas causalmente, ou mesmo uma “necessidade” como os artistas por vezes referem), mas o sentido é impossível de prever neste estádio (de intenção), porque ele nasce com a própria obra, através de um processo relacional de construção e criatividade, em contextos particulares.

fotografia, e o corpo. Ao realizá-la, é construído um sentido e, concomitantemente, um discurso que o acompanha. Logo, trata-se de uma prática quotidiana, não só produto de conhecimentos, saberes, experiências, mas também (re)produtora do pensamento artístico e do universo estético onde ela própria tem lugar. É neste sentido uma prática criativa e transformativa das estruturas estéticas mais duráveis, em que ela própria assenta.

Mas, para lá da obra e/ou da experiência criativa, é construída e gerada uma prática discursiva, em termos alargadas, em que intervêm outros mediadores. Um discurso, nomeadamente, sobre o corpo, sobre o lugar, o espectador e o olhar, sobre a narrativa da obra e o carácter da auto-representação, sobre o “eu” e o “outro”, sobre o “tempo”, o “espaço”, a “ficção”, com dimensões de carácter imperativo no reconhecimento e fundação de ambos – obra e nome do artista. Com alguns exemplos observa-se:

(…) Persona implica uma dualidade inevitável … não acho que um espelho possa determinar a minha singularidade. Isso é outra questão. Mas a verdade é que produz um efeito estranho porque descubro alguém que, em certa medida, é um duplo. Reconheço-o. Reconheço certos traços que tenho a certeza que me pertencem, mas, ao mesmo tempo, não me reconheço no espelho ou (…) nas imagens que produzo. (…) Mas passemos dos espelhos às fotografias: quando vejo uma imagem que não coincide comigo e não reconheço ninguém em particular, ainda assim reconheço que está ali alguém que não é ninguém em particular. Acho que é uma experiência espantosa e diria que essas imagens são abstractas. (…) Às vezes essa persona inventada está próxima daquilo que aparento, outras é bastante diferente e não tenho para isso a menor explicação. Nalgumas fotografias estou bastante bem, se assim posso dizer mas, infelizmente, nessas fotografias quase nunca me reconheço. É fantástico, mas reconheço-me nas mais estranhas (JM, 1998e).

Faço o cenário e coloco-me nele exactamente como eu quero e com a expressão que desejo. Mas não sou eu! É como se fosse outra pessoa, é, no fundo, é a busca do outro, é o outro que lá está (HA apud Machado, 1996).

Apesar de a auto-representação sempre ter sido um espaço privilegiado para a apresentação do eu interior, nestes discursos, há uma tendência para a coisificação do corpo-objecto representado, para a dissolução do eu pessoal, na sua relação com a imagem. Neles, a analogia entre a “ausência do eu” e o “espelho” é muitas vezes referenciada. O espelho reflecte uma imagem ou um olhar, que pode ser de qualquer um – “A fotografia é então um espaço-outro (ficcionado) (…) o outro lado do espelho de Alice, território ficcional e alucinatório onde o corpo anónimo [dos artistas] se transforma em pintura e em

desenho” (Duarte, 2009: n.p.).54 Ao (auto)retratarem-se os artistas posicionam-se como “objecto de desejo” ou “apreciação do olhar dos outros”, que interferem neste “jogo”, como espelho reflectindo várias imagens fragmentadas desse objecto (cf. Leite, 2001).

A ideia da “fase do espelho” foi introduzida por Lacan (1949), para formalizar o modo de formação do eu. O espelho é uma metáfora para representar o outro. O outro é o meio pelo qual o sujeito encontra a sua própria imagem (por identificação) e é ao mesmo tempo aquilo que o separa dessa imagem (diferenciação). Algo evidente nas expressões referenciadas.55

A utilização do corpo na obra pelos artistas constitui uma ligação ao quotidiano e ao “outro” através da dimensão tecnológica ou instrumental (técnicas, forma, conteúdo, imagem, corpo), e discursiva (saberes e influxos produzidos no decurso do acto criativo). Desta forma, as experiências quotidianas de criação de obras de arte são também geradoras do pensamento e reflexão sobre arte. Os discursos constituem-se por isso, como mecanismos causais da interacção (nestes casos englobam a percepção visual e a visualidade, e referem-se a modos de exposição e divulgação da obra). A sua desconstrução implica considerar todas as suas formas e modelos, redes (como se ligam a outros), signos, imagens e representações. Deste modo, a par do sujeito individual, consideram-se também a dimensão actancial (agência) da trajectória do artista e da obra, cuja “dinâmica expressa uma concepção contemporânea de identidade na sua articulação colectiva com posições relacionais, contingentes e transitórias dos sujeitos. Pelo que, a narrativa da identidade é dinâmica, ou seja, a trajectória tem uma dimensão actancial, cujo fundamento é a acção individual” (Arfuch, 2002).

54 “De início as imagens foram feitas para evocar a aparência de algo ausente. [Lentamente], porém, tornou-se

evidente que uma imagem podia sobreviver àquilo que representava; nesse caso, mostrava como algo ou alguém tinha sido – e, consequentemente, como o tema havia sido visto por outras pessoas. Mais tarde ainda, a visão específica do fazedor de imagens foi também reconhecida como parte integrante do registo. (…) Constitui isso o resultado de uma crescente tomada de consciência da individualidade, acompanhada de uma crescente consciência da história (…) pelo menos desde o início do Renascimento (Berger, 2002 [1972]:14).

55 A construção do corpo em imagem reflecte o eu pessoal, simboliza a imagem de si. Mas, ao mesmo tempo,

essa imagem é a imagem de um corpo que não vê, apenas consegue captar a imaginação ou a ideia desse corpo, porque o esquema óptico (L’Schèma) de Lacan (1949) introduz o sujeito no lugar do simbólico, no lugar onde nós (outros) vemos a fotografia. No esquema óptico de Lacan a imagem de si é só imaginação, não é uma imagem real. Não é o reflexo, porque naquela posição o sujeito não se consegue ver a si próprio, só se consegue imaginar, pensar como sujeito através do outro. O significante (representação mental da forma e do objecto material) só tem significado (representação mental do conceito associado ao signo) na sua relação com o outro. A estrutura da linguagem implica que o significante em si não significa nada, só adquire sentido por referência a outro é, portanto, relacional (Leite, 2001; ver também Krauss, 1993).

No seu aspecto relacional a análise discursiva permite demonstrar, também, que a própria obra de arte