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1. ENQUADRAMENTO DO OBJECTO

1.1. Representação do corpo na arte ocidental desde o Renascimento

Desde a Renascimento o mito do Homem perfeito absorveu a atenção dos artistas. Levou à representação visual do corpo como ícone, em várias figurações. Nicolas Poussin (1594-1665) que iniciou em Paris a tradição da pintura barroca francesa, com A Morte de Narciso (1623-1626, Museu do Louvre em Paris), é um exemplo clássico deste tema. Poussin foi o mais importante pintor francês da escola de Roma. Este quadro corresponde à representação da figura ideal, centrada na aparência de

Narciso, o espelho que reflecte o outro eu, de formas perfeitas, e a beleza do ideal clássico greco-

romano (Blunt, 1990; Gandar, 1860).

Outras das representações do corpo, marcantes da cultura ocidental foi, por exemplo, Jacob

Wrestling with the Angel (1853-61).14 Nesta obra, Delacroix (1798-1863) convida à reflexão sobre a descoberta do homem e do seu próprio limite. A luta com o anjo simboliza a luta do artista consigo próprio, entre o “eu” e o seu “outro”, a sua alteridade, na procura do sentido (perfeito?) da existência.

13 Não só as criaturas artificiais, mas também algumas figuras públicas recriadas pela imagem se tornaram mitos,

como o “corpo do rei”, manifestamente transposto, por exemplo, na figura de Napoleão. Outros exemplos, relevantes são as imagens trabalhadas na revolução Russa pela fotografia, ou no cinema, como e.g., Os

tempos Modernos de Charlie Chaplin. Algumas imagens na política são também exemplos pois transportam

um corpo político nacional relevante para a imagem do Estado e respectiva legitimação, e.g.: a comuna de

Paris (cf. Mirzoeff, 1995:70-97).

14 Óleo e cera sobre gesso 751x485cm, Saint-Suplice, Paris. “Jacob Wrestling with the Angel has been read as a

summary of Delacroix's life and work. Indeed the leitmotif of his career is the struggle - a spiritual combat - between his aspiration to classicism and his romantic genius; between his admiration for Racine and his love of Shakespeare” (Kren & Marx, 1996).

A representação do mito da cegueira é outra metáfora na arte ocidental. Por exemplo, no The

Corinthian Maid (1782-1784) de Joseph Wright (1734-1797).15 O quadro ilustra a visão interior e a compreensão do género masculino sobre o tema feminino, sugerindo que a representação visual é o resultado de uma inter-relação entre a metáfora da visão interior e as estruturas fisiológicas da visão. Metáfora da relação entre o visível e o invisível: tudo o que está visível é invisível, tal que a percepção é (in)percepção, tal que a consciência tem um buraco negro (cego).16 Pois, “ver é sempre ver mais do que aquilo que se vê, entendendo que o visível envolve o invisível” (Merleau-Ponty apud Mirzoeff, 1995:37). Afirma Mirzoeff (1995:15): “o corpo perfeito do revivalismo classicista e a ligação pós- estruturalista da cegueira e do interior depende de conceitos essencialistas do corpo, raça e género

15 The Corinthian Maid, Colecção Paul Mellon’s, óleo sobre tela (106.3x130.8cm). O pintor suspendeu uma

lâmpada atrás de uma cortina, para que os feixes de luz que moldam a sombra realçassem a juventude da donzela. Contrastando com o fulgor delicado da lâmpada, as faíscas e as brasas intensas pulam dentro da fornalha do oleiro. A simetria clássica impregna o projecto; a cortina e o arco flanqueiam a acção focal do estilete da donzela que segue o ideal da juventude. A menina era filha de um oleiro em Coríntia, e o seu amado estava a ponto de embarcar numa viagem às terras estrangeiras (Hayes, 1992; Rosenblum 1957; Nicolson, 1968).

16 Blind-spot é o ponto onde o nervo óptico se junta à retina. Logo, diz Derrida (1993c), é necessário para a

representação visual, como peça integral, constitutiva e fundamental da representação. Como um processo de memória (Derrida, 1993c, apud Mirzoeff, 1995:37). Analisando o The Corinthian Maid, Derrida detectou “um momento de cegueira no coração do desenho”. O seu argumento é o de que a cegueira é representada como doença e condição moral característica do género feminino, moldada pela visão moderna e pelos conceitos de género. O mito nasce no século XIX, a partir das ideias que contrastam o interior masculino (a visão do artista) com a cegueira feminina (o tema da criação) e, é também descrito como o mito da

debutante. Derrida explica que à semelhança dos habitantes da caverna de Platão (preconizados pela

debutante) que imaginariamente tentam ver a essência das coisas – a partir das sombras na parede da caverna quando há fogueira; embora, os habitantes da caverna não pretendam sair, pois à luz do dia não conseguem ver nada – também o artista, não pode conceber o acto da representação, seeing the seeing and not the visible,

it sees nothing (ibid.). Em Portugal este “mito” é representado, por exemplo, por Júlio Pomar (1926-), com os Cegos de Madrid (1957-1959), ou pelos Cegos de Praga, XII (1998) de Pedro Cabrita Reis (1956-),

evocando “um dos mais comoventes riscos humanos: termos olhos e estarmos privados da visão. Mas para a arte, a cegueira (La Cecité des Peintres, […]) é um território metafórico: representa-se o que se vê, o que se sonha, o que se esquece?” (…) Num caso remetendo para Goya, (…) os cegos, nem sequer têm corpo, representando pobreza e humilhação; no outro, para o icónico rosto de um auto-retrato (…) são dispositivos produtivos distintos, mas de um para o outro, corre um fluxo energético: à falta de melhor, perscrutemos

todas as águas paradas procurando algo que não está lá, disse Cabrita Reis (…) ” (Silva, 2006: 222). Ainda

em Portugal, mas na literatura, o escritor José Saramago (1922-2010) preconiza esta metáfora, precisamente, no Ensaio sobre a cegueira de 1995.

respectivamente. A visão modernista privilegia um modelo fragmentário do corpo construída com base nestas diferenças”.

A figura da Madonna e da Virgem foi também um dos principais temas da arte, assim como o nu feminino. As Madonnas de Rafael17 são dos vários paradigmas desta figura de mulher ideal. Recuperadas na actualidade e utilizadas em diversas representações visuais, como no cinema, na música ou na publicidade, representam o corpo espiritual na figura da mulher e substituíram a figura do anjo. São utilizadas como fetiche, substituto visual do sexo feminino. Os papéis, normalmente, a elas vinculados eram o de mãe, o de virgem, e o de prostituta. A mesma figura pode ter diferentes conotações, pois os sinais têm significado devido à sua relação diferencial com outros sinais. E, não devido a nenhum significado natural e intrínseco que possuam. O papel da prostituta é interpretado, por exemplo, em La Fornarina de Rafael (1483-1529) ou na Grande Odalisca de Ingrés (1780- 1867)18. Ingrés e depois Picasso (1881-1973) passam desta figuração para a representação do harém como tema, de que são exemplo, as Démoiselles D’Avignon (1907). A representação do corpo feminino encarna o tema da sexualidade, de forma subtil e disfarçada, ao longo de várias épocas (e.g., a cantora Madonna personifica esta representação no século XX) (Mirzoeff, 1995:172).

Em suma, desde Poussin ou Ingrés, a Paul Strand (1890-1976) ou Ansel Adams (1902-1984), etc., como exemplos mais recentes na fotografia, as imagens do corpo vão sendo recuperadas por vários autores. É nítida, a importância da cultura visual das representações do corpo nas sociedades. Estas imagens acompanham várias passagens, como das sociedades de soberania às sociedades disciplinares, destas para as sociedades de controlo e, mais recentemente, na sociedade da informação e do conhecimento.19 Requerem, uma mudança de conceitos e de perspectivas de avaliação face ao corpo, pois estes paradigmas obrigaram também a mudanças nas formas de o representar.

17 Rafaello Sanzio (1483-1520) sob a influência, sobretudo, da obra de Da Vinci, absorveu a estética

renascentista e executou diversas madonnas, entre as quais a Madonna Esterházy (1508) e A Bela Jardineira (1507/1508). Fez uso das grandes inovações introduzidas na pintura por Da Vinci a partir de 1480: o claro- escuro, contraste de luz e sombra, o esfumado sombreado, levemente esbatido, ao invés de traços, para delinear as formas. O destaque de Miguel Angelo, através da Pietà (1498-1499) e na Madonna do

Baldaquino (1506-1508), deveu-se principalmente à exploração das possibilidades expressivas da anatomia

humana (Honour & Fleming, 1982).

18 1518-19, Galeria Nacional de Arte Antiga, Palácio Barberini de Roma, Itália; e 1814, Museu do Louvre, Paris. 19 Foucault afirma que foi a invenção, nos Séculos XVII e XVIII, de novos dispositivos de poder, a responsável

para a passagem a um outro tipo de sociedade, precisamente porque esses mecanismos eram incompatíveis com as relações de soberania. Apontando várias diferenças entre os dois modelos, refere que o “velho

Novas imagens, juízos, mundivisões, estratégias de acção. A invasão tecnológica e a era das ligações em rede mundiais são temas de relevo no qualificar da mudança ao nível das relações e representações. Transformações técnicas/tecnológicas e sociais são responsáveis, no mundo da arte, por alterações nas formas de representação do homem e do corpo, alterando visões e perspectivas. A cultura transforma-se num conceito complexo. Indica tanto o que se designa por movimentos artísticos e literários, como formas de pensar, crenças, conhecimento, moral, leis, costumes, capacidades, visões e hábitos de uma determinada sociedade.

É desta forma que a representação do corpo levanta questões históricas e sociológicas importantes para a sua avaliação. É importante, pois, não separar o tema da obra do seu contexto (informação sobre acontecimentos contemporâneos pertinentes na vida do artista, ou sobre e para o tema fundamental das obras). Organizar a matéria da representação à volta de temas e períodos e, reconsiderar quem e o quê deve merecer o foco da atenção (Mirzoeff, 1995). Conciliar a arte, a cultura visual e a teoria sociológica criando um fluido e uma abordagem diversa à sua interpretação, não limitada às metodologias formal, histórica ou teórica, mas que as use de forma unificada e, sobretudo

modelo” assentava “na terra e nos seus produtos, para extrair deles bens e riqueza e, era exercido descontinuamente através de taxas e obrigações”. Enquanto, o “novo modelo” assenta “nos corpos e nos seus actos, para extrair deles tempo e trabalho e, é exercido, continuamente, através da vigilância e do controlo”, pressupondo um “rigoroso sistema de coerções e, não, a presença física de um soberano”. Foucault acrescenta que o novo mecanismo de poder representa uma nova economia, pois, pressupõe a “necessidade de estimular a força dominada e a eficácia da força dominante”. Logo, o poder, a que Foucault chama de “disciplinar” foi um instrumento essencial para a constituição do capitalismo industrial e do tipo de sociedade que com ele surgiu (Foucault, 1986:187-188). Por sua vez, enquanto a sociedade disciplinar era constituída por poderes transversais dissimulados através das instituições modernas e de estratégias de disciplina e confinamento, que implicavam a presença e vigilância do observador em tempo real, a sociedade de controlo, surgida no pós II Grande Guerra, é caracterizada pela “invisibilidade” e pelo “nomadismo” que se expande junto às redes de informação. Nestas, a “vigilância torna-se rarefeita e virtual” (Deleuze, 1992:219-226). Já a sociedade de informação e conhecimento está associada ao aparecimento da globalização e encontra-se em desenvolvimento. A sociedade contemporânea está inserida num processo de mudança onde a informação, como forma de conhecimento, e as novas tecnologias são as principais responsáveis por um novo modelo de organização social e pela emergência de novas formas sociais de identidade. Uma sociedade “líquida” que avança em vários sentidos, porém, questionável nas atitudes e no seu contexto enquanto sociedade. Um lugar onde tudo é volátil e onde as relações ganham dinâmica, mas perdem consistência e estabilidade (ver Giddens, 1991; Giddens et al., 1994; Bauman, 2001b, etc.).

relacional. Numa condição de modernidade avançada, em que o corpo é objecto de fabricação e da técnica, a sua representação em novos médiuns, como o vídeo ou a fotografia, revela-se determinante na análise e investigação sociológica.