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4. NOVOS MODOS DE VER, OUTROS MODOS DE SER

4.2. Identidade e mudança – que consequências na modernidade?

A questão da identidade é fundamental nesta tese, porque a análise engloba um processo de identificação pessoal e social, e construções discursivas ligadas às identidades que o mesmo artista pode assumir, face às diferentes opções e escolhas pessoais, transformações das visualidades, usos e representações do próprio corpo, a que está vinculado no contexto das relações e práticas da auto-representação, desenvolvidas nas condições estéticas de “de/singularização” da “transcultura actual”.82

O argumento fundamental desenvolvido pela teoria social, neste âmbito, é o de que a crise da identidade faz parte de um processo mais amplo de mudança que está a deslocar as estruturas e processos centrais das sociedades, alterando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma segurança legítima e/ou ontológica no mundo social (Hall, 1996:7-22).83

82

Sobre as noções de “de/singularização” e “transcultura” ver Conde (2011).

83 Esta mudança/deslocamento deve-se ao aumento do risco e da incerteza, das desigualdades, a novas relações e

quadros de referência baseados na sociedade de informação e comunicação. E, também, em factores sociopolíticos e económicos confluídos na estetização da vida pelo consumo e culto do corpo, em fundamentalismos religiosos ou de risco ambientais (Hall, 1996:7-22). A deslocalização da experiência, com o crescimento do consumismo e do individualismo e das possibilidades de escolhas existentes, tem impacto ao nível da segurança ontológica dos indivíduos porque esta é baseada na existência da estabilidade ao nível das auto-identidades e dos contextos sociais. O retorno da incerteza à sociedade significa cada vez maior número de conflitos sociais. Já não se trata de um problema da ordem e sim de um problema de risco, os quais são distinguidos por uma ambivalência fundamental que pode, em geral, ser compreendida por cálculos de probabilidade, mas que não podem ser resolvidos dessa forma. A ambivalência distingue os problemas de risco dos problemas da ordem, por definição voltados para a clareza e para a faculdade de decisão. A ideia de “destino”, comum nas sociedades tradicionais, relacionada com um agente passivo, dá lugar à ideia de oportunidades, que um agente activo dentro de uma multiplicidade de escolhas, tem que fazer. Face a essas escolhas o sujeito transforma-se num sujeito reflexivo que, além de alternativas, enfrenta também, na

O conceito de deslocamento, segundo Ernest Laclau (1990), não implica “a substituição de um centro de poder por outro, mas uma pluralidade de centros de poder”. O que caracteriza a modernidade tardia é a diferença, as múltiplas divisões e antagonismos sociais entre vários centros de poder, resultando daí uma pluralidade de identidades, para os indivíduos. Para Laclau (1990), a História deve-se a uma estrutura de identidade aberta, que promove a desarticulação das identidades estáveis do passado, e abre a possibilidade para a produção de novas identidades e sujeitos – “a recomposição da estrutura em torno de pontos nodais particulares de articulação”. A identidade passa por diversos estágios de identificação e é o resultado de uma elaboração discursiva, que define e constrói a narrativa particular do eu.

Para além de alterações ao nível da identidade individual, existem também deslocamentos ao nível da identidade cultural, ou seja, ao nível das formas de identificação dos indivíduos a determinados tipos de cultura, raciais, linguísticas, religiosas, cibernéticas, estéticas, ou outras.

Na perspectiva de Hall e Lacau (1990), a concepção de identidade passou por diferentes fases, desde a proposta do “sujeito do Iluminismo”, evoluindo para a concepção do “sujeito sociológico”, até atingir o que definem como “sujeito pós-moderno”. Do sujeito individualista do Iluminismo, dotado das capacidades de consciência e razão, e extremamente consciente da (auto)identidade, passou-se à noção de sujeito sociológico, o sujeito que pela primeira vez reconhece a importância de outros eus, através dos modernidade tardia, uma série de riscos. O que se relaciona, segundo Giddens (1991:153), com a confiança. A modernidade (tardia) acarreta também mais ansiedade e ambas se ligam à culpa e à vergonha. A culpa tem a conotação da transgressão moral. É a ansiedade derivada de falhas ou inabilidade para satisfazer certas formas de imperativos morais no curso da conduta individual. A vergonha está mais relacionada com a confiança básica do que com a culpa. Induz directamente um sentido de segurança no self e no ambiente circundante. Quanto mais a identidade pessoal se torna internamente referencial, mais a vergonha ganha importância na personalidade adulta. A culpa depende de mecanismos extrínsecos ao sistema referencial interno da modernidade. Mas o indivíduo já não vive com base em preceitos morais extrínsecos, e sim na organização reflexiva do self, e a vergonha toma o lugar da culpa. A este propósito, Bauman refere ainda, que “moralidade tem a ver com escolha. Se não há escolha, não há moralidade, i.e., sociedade, ordem social e cultura seriam inconcebíveis se a moralidade não constituísse o principal atributo das relações humanas”. E, na sua concepção, “a sociedade representa a confrontação dos seres humanos com esta natureza moral, com a necessidade de fazerem escolhas, mesmo que [por fim] concluam que a sua natureza está presa a essas mesmas escolhas. Desta reflexão surge a ideia de que a sociedade grava padrões de ética sobre a matéria bruta e plástica da moralidade, ou seja, que a ética é um produto social” (Bauman 2001:44-45, apud Carapinheiro, 2010:57). E como refere ainda Carapinheiro (2010:57): “Ser moral é estar submetido à necessidade de fazer escolhas, sob o constrangimento das condições mais ásperas e penosas da incerteza. Ser moral corresponde à capacidade de enfrentar dilemas morais e submeter-se à condição de viver a vida sob o signo da vacilação. Nesta condição reside em grande parte o valor da liberdade nas sociedades contemporâneas”.

quais os valores, sentidos e símbolos do mundo por ele habitado são mediados. Este sujeito reflecte a crescente complexidade do mundo moderno, e a consciência de que o seu “núcleo interior” não era autónomo e auto-suficiente, mas constituído na relação com os outros. Corresponde ao momento da tomada de consciência, de uma variedade de visões do mundo e pluralidade de escolhas que envolvem, necessariamente, os outros e, devem ser consideradas. Da individualização para a associação, o eu real permanece, mas a sua postura é modificada pelo diálogo contínuo com o mundo exterior, com a identidade como marcador de estabilização e localização do sujeito no espaço social. Uma vez atingida a condição de modernidade, emerge um sujeito fragmentado, sem identidade fixa permanente, formado e transformado, continuamente, em relação às suas formas de representação e interpelação nos sistemas culturais envolventes (Hall, 1987).

Passou-se da compreensão da identidade unificada como narrativa do eu, construída por cada um, à ideia de que o homem contemporâneo vive em permanente confronto com uma multiplicidade de identidades possíveis e mutáveis com as quais, temporariamente, se pode identificar. Uma identidade reflexiva que deseja ver reconhecida pelos outros. Esta corresponde à terceira categoria, o “sujeito moderno pós-moderno” produzido pelo processo, anteriormente, descrito. É caracterizado como não tendo identidade fixa, essencial ou permanente. O mesmo sujeito possui identidades contraditórias, de tal forma as suas identificações são constantemente desarticuladas. Pensar numa identidade permanente desde o nascimento até à morte deve-se à construção de uma “história” ou “narrativa do eu” (Hall, 1990).84 Mas a identidade, antes concebida como plenamente segura e coerente é uma ilusão. Assim, à medida que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, os indivíduos confrontam-se com uma pluralidade desconcertante de identidades possíveis, nas quais se podem reconhecer transitoriamente. Estas são alimentadas por significados provenientes de textos, imagens e agentes que ancoram uma ordem ontológica delimitada, situando indivíduos e grupos em sociedade (Campos, 2010:119). A identidade tornou-se uma celebração móvel, definida historicamente. O sujeito

84 Hall (1996:20-22), distingue, ainda, dois tipos de identidade, identidade como ser (identity as being) que

oferece um sentido de unidade e de comunidade, e identidade como tornar-se (identity as becoming), ou processo de identificação, que mostra a descontinuidade na formação da identidade. Usa a identidade das Caraíbas, incluindo a sua, para explicar como a primeira é necessária, mas a segunda é mais verdadeira para as suas condições pós-coloniais. Explica o processo de formação da identidade, com base na teoria de Derrida da diferença como suporte, realça a posição temporária da identidade como estratégica e arbitrária e, utiliza as três presenças, africana, europeia e americana, nas Caraíbas, para ilustrar a ideia de traços de identidade, definindo-a genericamente como identidade diáspora.

assume diferentes identidades em diferentes momentos, não unificadas em redor do eu único e coerente, mas múltiplo e descentrado. Mas, se as identidades estão a ser descentradas e fragmentadas pelas consequências da modernidade, estão ao mesmo tempo, a ser desenvolvidos novos tipos de identidade e novas “figurações”85

no espaço social actual, procurando a sua apropriada identificação cultural. São “processos de de/singularização e pluralização” dos indivíduos que se confrontam com a “dupla temporalidade e espacialidade da condição contemporânea: presentista, transnacional, entrecruzadas por fluxos de vários tipos, que podem ser considerados como mediações transversais, em paralelo com mediações específicas que vêm reconfigurar (…) os espaços culturais e artísticos” (Conde, 2011b:53).

Os artistas modernos constroem novas identidades, estruturadas noutros pilares, talvez mais transitórias, mais fugidias, mais flexíveis, porém com capacidade mais rápida de assimilação e de integração ao processo de mudança, pelo duplo umbral “das interferências e interdependências” (cf. Conde, 2011a e b). O dinamismo da modernidade avançada é transferido para o artista e para a obra em termos da sua adaptação a esse novo espaço-tempo multifacetado. Este processo abrange o duplo deslocamento do artista, tanto de si mesmo, como da cultura assimilada, de forma recíproca, convergindo com fluxos e mediações transculturais recentes. O que significa que a própria modernidade (tardia) está em crise, ou seja, está também ela a ser transformada. É o retomar da questão agência/estrutura indicando que estas se influenciam mutuamente, não em sentidos opostos, mas convergentes, num

continuum em que a transformação, a dar-se, afecta ambas.86

Neste contexto, o self deve ser explorado e construído como parte de um processo reflexivo de conexão entre mudança social e pessoal (Giddens, 1991:32-33). A reflexividade individual é condição da

85 Sobre a reconceptualização do conceito de “figuração” introduzido por Elias (1994), ver Conde (2011b). 86 Uma das características centrais do espaço-tempo da modernidade avançada é, segundo Giddens (1992), o

ritmo da mudança, constante, rápida e permanente. A identidade assume contornos específicos, devido ao carácter desta mudança, sendo definida não apenas como a experiência da convivência com essa mudança rápida, mas também como forma altamente reflexiva de vida, na qual as práticas sociais são constantemente examinadas e reformuladas (Giddens, 1990:6). Com especial relevo para as transformações do tempo e do espaço e para o deslocamento do sistema social, ou seja, a extracção das relações sociais dos contextos locais de interacção e a sua reestruturação ao longo de escalas indefinidas de espaço-tempo. A transformação da identidade e a globalização são os dois pólos desta dialéctica do local e do global. Neste contexto, o self torna-se um projecto reflexivo explorado e construído como parte dum processo de conexão entre mudança social e pessoal, sendo que as transições nas vidas individuais sempre exigiram uma organização física das sociedades (mesmo nas sociedades tradicionais) (Giddens, 1991:32-33).

reflexividade institucional na actualidade (Giddens, 1991:35).87 À semelhança de outros indivíduos e práticas, o artista produz e reproduz estéticas e conhecimentos nas suas actividades quotidianas, de forma reflexiva, promovendo interpretações discursivas sobre a natureza e as razões para essas acções/actividades, (re)construindo estruturas e formações culturais vigentes.

Os artistas emitem discursos verbais para acompanhar o discurso visual, reflexivamente construindo uma identidade para a própria obra. Em termos conceptuais ultrapassa a interpretação do conteúdo da imagem. Nestes contextos, os artistas empregam um conjunto de capacidades reflexivas, interactivas, conhecimento interpessoal, e embodiments transculturais actuais, de modo a controlar e manter as relações e formações sociais e simbólicas, mas por outro lado, com pequenas acções, transformando essas situações e influenciando os seus resultados (cf. Goffman, 1999). Por exemplo, ao influenciarem o reconhecimento da obra pela discursividade, influenciam a direcção da sua própria trajectória, e da estrutura institucional e de mercado que a envolve. Mais, reconstroem as identidades (e a das obras) envolvidas nessas capacidades, probabilidades e acontecimentos discursivos, com as especificidades das suas interdependências, incluindo memórias, situações e envolvimentos que expressam a sua “pluralidade interna” (cf. Conde, 2001b:10-12).

Através da reflexividade, as práticas da auto-representação são, constantemente, reformuladas. O seu carácter é alterado, o que na perspectiva da teoria dos sistemas pode ser equacionado como a “retroacção dos produtos dos processos sobre os próprios processos”. Isto é, da obra enquanto produto discursivo final, sobre a própria prática de se auto-representar, modificando as suas características ou legitimando-a. Faz-se acompanhar, ao nível da vida social dos artistas, por processos de reorganização espácio-temporal, desligados de processos tradicionais, alocados a processos transnacionais e globais. Actualmente, discursos tecnológicos, mediatização e conhecimento mundialmente transversais informam as obras e os seus processos, numa rede complexa de fluxos e significados, também para o eu do artista que interactivamente age nesse meio.

87 A reflexividade do agente é a condição específica da reflexividade institucional da modernidade. O agente

produz e reproduz as convenções sociais nas actividades diárias de forma reflexiva, estando normalmente habilitado a prover interpretações discursivas sobre a natureza, e as razões para o seu comportamento (Giddens, 1991:35). Estas libertam o homem de todos os tipos tradicionais de sociedade. E, mais profundas do que a maioria das mudanças dos períodos anteriores, servem no plano da extensão, para estabelecer formas de interconexão social globais; e no plano da intensidade, para alterar algumas das características mais íntimas e pessoais da existência quotidiana, como planos e trajectórias (Giddens, 1990:21).

Segundo Giddens (1991), todas as transformações da modernidade tardia trazem uma reordenação do local e do global, o que se traduz em mudanças substanciais para o eu, relacionadas com a organização reflexiva da vida e com a narrativa da auto-identidade. Neste contexto, também o corpo se torna cada vez mais um local de interacção e de apropriação, disponível para ser trabalhado pelas influências da modernidade tardia e para ser refeito reflexivamente perante uma diversidade de opções, possibilidades, e estilos de vida (Giddens, 1991:59).88

Em síntese, o conceito de identidade mudou devido a todas as transformações sociais e culturais e às opções de vida alternativas que com elas surgiram. A deslocalização da experiência, do esteticismo e individualismo, pelas possibilidades de escolha disponíveis, tem impacto nas identidades e contextos sociais. Influencia os percursos profissionais e de vida dos indivíduos, requerendo maior reflexividade para essas escolhas e opções de vida (cf. Giddens, 1991:2).89 Logo, se a identidade apresenta uma natureza flexível e dinâmica construída em interacção, através de trocas reais e simbólicas, multiplicidade, mudança e adaptação são características que se aplicam à sua formação. Os indivíduos/artistas podem pertencer a diversos grupos, separados por fronteiras móveis, podendo também abandonar determinados papéis para encarnar outros. E os seus percursos são também mutáveis, caracterizados por momentos transitórios de fundação e reconhecimento, mais ou menos duradouros e, por embodiments (ou encarnações) e discursividades específicas desses percursos.

88 Os próprios estilos de vida, embora rotineiros são, reflexivamente, abertos à mudança devido à natureza mutável

da auto-identidade (Giddens, 1991). A vida social é modelada por preocupações modernas, que implicam a reorganização reflexiva das relações sociais, através de critérios internamente referenciais (Giddens, 1995). Para Bourdieu, as variações de estilos de vida entre os grupos sociais são, também, factores estruturantes da estratificação. A cultura de classe é corporalizada através do habitus, e expressa pelos usos do corpo no trabalho e no lazer, numa luta pela distinção social, onde os corpos e os estilos de vida dos diferentes grupos sociais têm pesos sociais e simbólicos distintos (Cunha, 2004:62).

89 Como refere Giddens “para todos os indivíduos e grupos as oportunidades de vida condicionam as escolhas

dos estilos de vida”. Planear a vida não significa preparar-se estrategicamente para o futuro como um todo: “o planeamento e as escolhas dos estilos de vida não são apenas constituintes do quotidiano, mas de cenários institucionais que ajudam a planear as acções individuais”. As estratégias de planeamento e os planos de vida são o conteúdo substancial das trajectórias reflexivamente organizadas do eu pessoal” (Giddens, 1991:85-86). O que no âmbito do estudo resulta de práticas incorporadas, reorganizadas e transformadas discursivamente,