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4. NOVOS MODOS DE VER, OUTROS MODOS DE SER

4.3. Imagem e representação – reedificação e duplicidade

A (auto)multiplicação do artista em várias figuras ou representações de si pode ser interpretada de duas formas: como a imagem repetida de um indivíduo único ou como a representação da (re)duplicação de uma pessoa. Ou seja, considerando a imagem como representação pictórica de uma impossibilidade (da unicidade do eu pessoal) ou, em alternativa, considerando-a como expressão de múltiplas experiências pessoais. A primeira é figuração, a segunda ficção. Mas se a representação figurativa do corpo tende a residir na dimensão do óptico, a dimensão da experiência do corpo próprio, tem a ver com o sentido e experiência de habitar um corpo, em vez de representar, simplesmente, uma experiência do olhar, pois a experiência do corpo vivido está, intrinsecamente, ligada à existência do corpo vivo.

A identidade exprime uma certa adesão do estar ao ser, de tal forma a percepção do corpo, a incorporação de esquemas culturais, influencia a construção do self como projecto e a demanda da definição de uma identidade mutável, porém contém, igualmente, o seu carácter permanente.

A auto-imagem (como expressão da autoconsciência) permite avaliar esta duplicidade, contudo este reconhecimento não faz com que se rejeite a distinção entre o idem e o ipse no sentido de Ricoeur (1990), porque se pode sempre distinguir a acção do seu agente. Distinguindo entre a “obra” e o “sujeito da obra”, mas também porque existe uma dialéctica entre a ipseidade ou continuidade ininterrupta da mudança e a mesmidade ou permanência no tempo que definem a identidade pessoal (Ricoeur, 1990).90 Esta permite a dupla referência ao corpo, por um lado como entidade (o meu corpo), por outro como ontologia ou identidade (sou um corpo) (Le Breton, 2006 [1992]).

Contudo, outras duplicidades são aqui detectáveis. Primeiramente, interpretações do self na sua complexidade e profundidade, e do corpo como médium e metáfora, para explicar a diferença entre corpo como realidade vivida e corpo como imagem. Depois, entre imagem no domínio do óptico e imagem no domínio do eu (auto-imagem). Se a identidade pessoal não é algo dado, simplesmente, como o resultado da continuidade do artista no sistema de acção social, mas rotineiramente, criada e sustentada nas suas actividades reflexivas (Giddens, 1991:53), o corpo torna-se, igualmente, socializado e desenhado no

90 Constituindo-se num paradoxo esta definição de identidade pessoal só pode ser resolvida, segundo Ricoeur

(1990:150), pela “teoria narrativa”, como reedificação recíproca entre a acção e o si, entre reflexividade e discursividade, onde a memória, as “disposições” ou o “conjunto das identificações adquiridas” – habitus – cuja “sedimentação tende a ser reconstruída e redescoberta no decurso da prática e no limite que tende a abolir a inovação que a antecedeu” têm um papel importante.

decurso da organização reflexiva da vida diária de HA e JM. E, portanto, da prática específica da auto- representação. Assim, aquilo que se aplica ao self aplica-se, também, à esfera do corpo. O corpo e a sua imagem são vistos como interpretações de experiências e manifestações de vivências interiorizadas pelos artistas, igualmente produtoras de sentidos práticos e discursivos.

A experiência da auto-representação, mais do que uma “imagem de si”, é uma prática discursiva, envolve diversos mecanismos técnicos, tecnológicos, estéticos, expressivos, a identificação/identidade e a imediação do corpo. É uma construção simbólica através da qual os artistas reconfiguram a identidade, incluindo a da obra, transformando-a e transformando ou mantendo o universo simbólico em que têm origem. Heuristicamente envolve os “momentos internos e externos da dialéctica da identificação”, isto é, a afirmação individual do artista ou da obra e algum tipo de reconhecimento alheio (Jenkins, 2008:172). O seu estudo permite reconstituir a trajectória profissional dos artistas referidos como “sujeito(s) da obra”, mas também fazer uma análise das formas de significação do corpo como discurso, estabelecido e legitimado pela alteridade, através das várias versões da imagem do corpo adoptadas nas

personas que se constituem como os “sujeito(s) na obra”.

As constantes reconfigurações do “sujeito na obra” são o resultado desta inter-relação entre o eu pessoal e o mundo social, entre a identidade e a prática. Mais especificamente, o resultado da experiência imediata da existência corporal considerada num determinado tempo e espaço. Assenta na relação pressentida e indeterminada, no sentido da intuição ou da sensibilidade, entre o corpo do sujeito e dimensões culturais particulares como a arte, a tecnologia, ou a comunicação. Assim, a prática da auto- representação abrange tanto a corporalidade como a identidade do artista. A identidade como projecto auto-reflexivo é tanto o resultado da experiência de se auto-representar, como da reconstrução e reedificação quotidianas, do “eu” perdurável, porém inconstante, fugaz, múltiplo.

A matriz lógica destes casos relaciona-se com esta duplicidade da identidade do artista, com relevo, por um lado, para a “consistência”, do sujeito da representação, assente na identificação pessoal, e, por outro, para a “contingência” (Craib, 1998 apud Jenkins, 2008:51) do sujeito representado (i.e., do espaço e do tempo específicos da representação), cujo significado atende a uma lógica da diferenciação ou singularidade (e, por sua vez, do reconhecimento).91 Por exemplo:

91 Reciprocamente são essenciais para as suas identificações no mundo cultural e social. Contudo, não dependem

apenas da autodeterminação. Passam também, por um processo de reconhecimento e legitimação externo dependente dos outros e das instituições que governam os indivíduos (Jenkins, 2008:172-173).

Se eu trabalho comigo próprio, há um ponto em comum. Quando um artista trabalha sempre com o mesmo modelo, isso inevitavelmente implica uma constância e uma variação. Uma constância porque há um elemento que é reconhecível; uma variação porque essa constância vai sofrendo transformações que são perceptíveis. Por exemplo, não podem fugir à tirania do tempo (Molder apud Vieira, 2009).

Como se considera que o “sujeito pessoal” também pode mudar, utiliza-se a designação “sujeito da representação” em seu lugar. A consistência refere-se ao facto do indivíduo representado ser sempre o mesmo, e não ao facto da identidade pessoal ser sempre a mesma. Aliás, de acordo com Jenkins (2008), que realça a divisão utilizada por Craib (1998 apud Jenkins, 2008:51), entre “a consistente identidade pessoal” e a “contingente identidade social”, mas não a subscreve na totalidade, porque para ele a identidade é sempre social. Opta por distinguir entre “identificações pessoais e colectivas”, constructos que definem a identidade, todavia como se disse, sempre socialmente. Reconhece a consistência da identidade, algo que permanece ao longo do tempo, mas que por sua vez, também muda no seu decurso.

Como Ricoeur (1990:139-141) que, no entanto, fala da “identidade pessoal” como campo de confrontação da mesmidade e ipseidade. A permanência no tempo faz sobressair esta confrontação e remete para a identidade narrativa do sujeito. Por estas razões é preferível utilizar o termo “constância” como JM de forma eloquente faz, referindo-se à constância do modelo, ou seja, à sua repetida utilização. O corpo (sempre o mesmo) é o meio e o fim da (re)produção da sua imagem (sempre outra). Transforma cada obra num caso singular, porém estas são partes intrínsecas (da vida) do artista (que é único). Ambas identidades (do artista e da obra), se (re)constroem, reciprocamente, no seu decurso. Este processo resulta de relações criadas num determinado tempo e espaço, entrecruzadas com as diversas etapas da vida pessoal e social do indivíduo (e.g., condição artística, protagonismo e trajecto), adicionando-lhe outras dimensões, como o conhecimento in/excorporado, as experiências, a memória e os seus projectos: “o percurso do artista é um processo de individuação que corresponde a “diferentes graus de individualização, em horizontes de vida dissemelhantes e, correlativamente, as formas de identidade pessoal variam consoante os lugares sociais onde se inscrevem” (Conde, 1993b:202). Correspondem aos vários momentos das suas trajectórias profissionais, analisados no capítulo seguinte, através da interpretação das relações entre as variáveis contidas nos currículos. Com relação directa com a sequência cronológica da vida dos artistas, a reconstrução das trajectórias curriculares é essencial para descrever os dois casos. Estas afectam as múltiplas reconfigurações identitárias e os projectos pessoais, em ambos os casos, na extensão da singularidade e do reconhecimento.

5.

O TRAÇADO DA TRAJECTÓRIA: IDENTIDADE E RECONHECIMENTO EM

HELENA ALMEIDA E JORGE MOLDER

O desenvolvimento de uma estratégia planeada de um projecto profissional implica a prossecução de um determinado trajecto. Este processo abrange inúmeros aspectos das identidades e obras dos artistas, cuja reconstrução exige um conhecimento específico de técnicas e metodologias de trabalho, de pesquisa e análise, de interrogações na procura de uma singularidade própria de cada artista, construída durante essa mesma trajectória profissional, porquanto a sua inserção e afirmação no campo se vai consolidando.

As trajectórias de JM e HA originam um lugar social para o nome, bem como o reconhecimento estético e artístico da sua obra. A trajectória representa uma série de posições sucessivamente ocupadas por um mesmo agente ou grupo, num espaço em devir e submetido a transformações incessantes, permitindo assim, desprender-se do sujeito e situar os acontecimentos em alocações e deslocamentos no espaço social (Bourdieu et al., 1999a). A trajectória pode ser considerada parte de uma história de vida ou de uma biografia, um determinado percurso, itinerário ou ciclo de vida, que desperta o interesse do investigador, tais como a trajectória ocupacional, migratória, ou laboral e, nos casos em investigação, as trajectórias curriculares de HA e JM.

Como categorias teórico-metodológicas, as trajectórias não são realidades ontológicas, nem possíveis abstracções, são construções sócio-históricas produzidas e reproduzidas nas relações entre condições estruturais e acção dos artistas no seu espaço de actuação, implicando a mobilização de determinados recursos, nas suas formulações. O conhecimento e a reprodução dos esquemas culturais requerem a capacidade para agir criativamente, na medida do controlo das relações sociais em que os artistas se vêm envolvidos, como no âmbito dos seus poderes transformativos. O poder agêncial de HA e JM tem a ver com as suas intenções, desejos e perspectivas no âmbito das posições que ocupam. O objectivo é realizar projectos, e coagir ou promover efeitos simultâneos das suas práticas artísticas individuais e alheias (legitimidade) (cf. Sewell Jr., 1992:21).

A reconstrução das trajectórias, através do modelo de análise do CV artístico apresentada seguidamente, possibilitou resgatar as práticas expositivas das obras, enriqueceu a reconstrução das suas narrativas, e o desvelamento da sua identificação pessoal e social. Traduzidas nas expressões pictóricas, opções estéticas, tomadas de posição, decisões sobre exposições, conquistas (e.g. de prémios) representações (nacionais em eventos de grande relevância), figurações e estilos, permitiu compreender

os significados e implicações das suas criações discursivas, valorizando a trama das relações sociais que compõem o universo dos dois artistas.

Como forma de sistematizar e classificar os dados contidos nos currículos de cada um dos artistas, foi construída uma Base de dados com utilização do software SPSS, versão 17, que contém todos os dados retirados dos referidos currículos, ou seja, algumas referências pessoais, mas sobretudo relativas ao seu percurso expositivo, incluindo listas de exposições individuais e colectivas ao longo dos anos, em Portugal e no Estrangeiro (1961-2009 em HA e 1977-2009 em JM). O total da informação originou 522 entradas na base de dados, para o conjunto dos dois artistas, com as quais se trabalhou sempre na sua totalidade (não há missing cases na análise, em nenhum dos exemplos/resultados que se apresentam). O conjunto de variáveis construídas circunscreve-se à informação disponibilizada nesta fonte. Pelas características substantivas da informação, sobretudo qualitativa, as variáveis assumem também esta forma. Algumas foram, posteriormente, transformadas em variáveis métricas com vista à realização de uma análise de correspondências múltiplas (ACM), com o objectivo de caracterizar e interpretar qualificativamente92 as relações que definem as trajectórias, cuja cronografia foi designada como espaço

social multidimensional de realização pessoal e profissional dos artistas.

Estudar o modo como a prática da auto-representação e a identidade se intersectam através da reconstrução das trajectórias curriculares dos artistas ilustra como o reconhecimento não é uma construção fixa, automaticamente gerado a partir da singularidade, mas progressivo e mutável, requerendo por parte dos artistas vários investimentos e relações. Os dados sugerem que o pressuposto da singularidade por via da corporalidade em HA e JM é originário na formação do percurso artístico de ambos, como na identificação/reconhecimento da sua obra. Evidenciam também a centralidade da forma expositiva “clássica” (em galerias, etc.) na divulgação da obra, em detrimento de outros meios.