• Nenhum resultado encontrado

6. PARADOXOS DA (I)MEDIAÇÃO E (DES)CONSTRUÇÃO

6.4. Autor, Sujeito, Obra e Espectador posições relacionais

A partir da intertextualidade o conceito histórico de autor, institucionalizado ao longo do século XIX, sofre posteriormente vários processos. O termo é reintegrado pela reflexão sobre o textual e literário na actualidade.109

O projecto da modernidade iniciado no século XVIII e até ao século XIX, com a divisão social do trabalho, e a especialização da ciência e da arte, representa o período em que a noção de autor tem o momento forte na história das ideias, da literatura e das ciências (Foucault, 1969). O “autor” unifica este projecto pela unicidade do sujeito e da sua obra, da sua coerência conceptual e da sua originalidade.

Nos termos de Foucault (1969) a “função autor” é económica e social, a partir do século XIX. Liga-se à questão do direito autoral: legalmente esses direitos pertencem à propriedade intelectual ou artística. Mais, protegendo de forma abrangente os interesses económicos. O direito autoral também assegura a posição no campo (status, saber, etc.). O que acontece para os artistas, por exemplo, através

109

O autor, tal como descrito ao longo do processo histórico, biográfico e psicologista do séc. XIX, é o autor empírico, ou seja, o sujeito portador de uma identidade biográfica e psicológica factualmente reconhecível extra-texto. Este autor é sobretudo o escritor. Uma relação com origem, anterioridade e responsabilidade para com a obra são, entendidas como fundadoras. Mas com dupla redução: do autor ao escritor, e deste à sua psicologia. No entanto, a noção de autor tem uma história muito antecedente ao século XIX, reconhecendo-se na noção de auctor medieval, no autor do Renascimento, bem como, na noção de génio, popularizada pelo Romantismo. Para o pensamento mais contemporâneo, um problema que Foucault relacionou com as mutações epistemológicas do séc. XVIII, postas em causa pelas tendências modernistas, em que ao autor é dada a forma/produto. O autor passa para fora do texto. A falácia intencional é querer constranger o texto e os seus múltiplos sentidos à existência de uma vontade prévia no sentido autoral. O sentido do texto, paradoxalmente, obriga a repensar a noção e papel do autor/sujeito. Afastando a ideia de um sujeito psicologista, autocontrolado e total, que se manifesta e expressa na obra, de forma completa e intencional. Afasta-se do paradigma intencionista, psicologista e expressivo das relações entre autor e obra literária (Buesco, 2005: passim). Nos anos 60 surgem as duas obras emblemáticas para esta questão, A morte do autor de Barthes (1968) e O que é um autor de Foucault (1969). Barthes declara-se na noção de escrita plural de que resulta a noção de intertextualidade. Descentramento, anonimato, pluralidade irredutível, que liga na concepção de Barthes, a morte do autor ao nascimento do leitor. Foucault retoma a polémica um ano depois. Reconhece igualmente a inanição do conceito tradicional de autor, mas não a faz equivaler ao desaparecimento autoral. O conceito de autor excede o que pode ser pensado como autor empírico, em suma como escritor. Foucault (1969) reconhece, isso sim, a função autor, para substituir a de autor empírico, definido como característica do modo de existência, de circulação e de funcionamento de alguns discursos no interior de uma sociedade. Para Foucault é a noção de discurso, bem como a inscrição social e simbólica do sujeito, que estão na raiz da reconfiguração da noção de autor (Buescu, 2005).

das representações em colecções e galerias, aquisições de obras por particulares ou por instituições, e venda de obras em leilões. Outra forma regular do reconhecimento do autor é a atribuição de prémios e distinções honrosas ao longo da carreira, observada também em HA e JM.

A “função autor” (Foucault, 1969) permite assim, “retirar do sujeito o papel de fundamento originário”, analisando-o como uma variável do discurso. Logo, o autor é apenas uma das funções possíveis (ou necessárias) da “função sujeito”. A desconstrução da identidade do sujeito (estática e imutável na modernidade) sugere a ideia de identificação. Distingue diferentes papéis que um mesmo sujeito pode desempenhar, aplicada à multiplicidade das identificações sociais para um mesmo indivíduo, na sua relação com os outros (cf. Jenkins, 2008).

Ainda para Buescu, a óptica de Barthes, e de Foucault assentam numa “perspectiva biografista, cuja ideia central é a de que qualquer referência ao autor é uma ingerência do extraliterário no literário, ingerência não só, funcionalmente impertinente, como semanticamente injustificável” (2005: n.p.). Por um lado, a dissolução da noção de autor não foi total; por outro, a sua problematização permite questionar a ordem da enunciação do discurso e do seu funcionamento interpessoal e social: “O autor não é um demiurgo, ele é o limite (…) assim como é um nome para a alteridade do texto [ou imagem] que por sua vez, preserva a possibilidade de autoformação do [espectador] como outro” (Gusmão, 1995:488-489 apud Buescu, 2005).

Finalmente, Buescu refere que a alteridade marca a passagem do binómio narrador/leitor (leia-se narrador/espectador), à tríade autor textual/narrador/leitor (mais uma vez, ou espectador). O que significa não ser possível demarcar formas de recepção, separando-as das formas de produção das obras. Ambas se inscrevem nos textos, sendo social e historicamente formuladas. Ideia que reequaciona o conceito de obra; o autor textual pode não coincidir com o autor empírico (ou sujeito pessoal), mas mantém com ele relações de funcionalidade a evidenciar e a não esquecer. Por um lado, trata-se de uma representação textual de uma série de traços operando a inserção do texto, e da obra, no contexto mais lato das práticas sociais e simbólicas. Por outro, estas relações não devem implicar uma concepção psicologista do autor empírico, reduzindo o indivíduo ao psicológico, ou à sua individualidade. Nem o autor empírico é tão só psicológico, como o autor textual não é, apenas, uma representação ou expressão psicologista desse autor empírico (Buescu, 2005: n.p.).

A obra compreende, assim, um lugar de transitividade: vem de alguém e vai para outro; movimento de relações de partilha e alteridade. Nesta óptica, a assinatura é uma marca transformadora,

não só da natureza material do objecto, como da sua forma social (Bourdieu, 2003 [1984]). As obras moldam-se por referências pessoais e igualmente sociais do artista/autor. Como diz Idalina Conde, “a partir da criatividade situada nas coordenadas de uma época, contexto, percurso e referências específicas. Mas, enquanto processo e produto do trabalho estético, conceptual e operativo, as obras têm sempre uma autonomia formal, técnica, expressiva e reflexiva não conciliável com relações lineares com a dimensão, nomeadamente, biográfica dos indivíduos/autores” (Conde, 2011b:49-53). Neste trabalho, a identidade da obra é assim, auto-referencial e reportável a certos discursos, porque também, reflexivamente, construída por referência a eles. Nomeadamente, os discursos mediáticos que a acompanham, intertextualmente, pelos artistas e agentes culturais. Segundo a perspectiva de Bourdieu (2003) o poder da obra e do produtor advém da crença na sua singularidade; a condição para o reconhecimento marcado pelas posições dominantes, e legitimidade sintética das posições, relativamente, dominadas do espectador.110 Isto é, há a reciprocidade entre a diferença da singularidade e o reconhecimento aos “diversos níveis, pessoal, social, interpessoal”. Continuando com Idalina Conde (2011b:49), “as particularidades subjectivas dos indivíduos e o que hoje se considera como auto-reflexividade têm aqui um “objectivo” (criar, exprimir-se, produzir), um “estatuto público” (individualidade) e “direitos de instituição” (… museus e colecções): o facto de a autoria (dimensão nuclear da singularidade) só existir com a intertextualidade de que depende e agência num espaço hoje saturado de imagens e linguagens”.

Concluindo, não se pode pensar a noção de autor sem relativizar a noção de sujeito, com o poder de agir e de pensar. O autor deslocou-se no mundo das indústrias culturais. Pode mesmo ter deixado de ser o único referencial, ou figura central, por exemplo, em áreas como o cinema. Outro regime, em que a obra é produto de um trabalho colectivo de toda uma equipa. Os significados de autor variam no cinema, na literatura, ou nas artes plásticas. E, assiste-se, na era digital, a outra libertação para a multiplicidade de autores/registos pelo hipertexto. O texto até pode perder registo de identidade, como “sem autor” ou “autores vários”. A marca é a escrita em si, a declaração de uma ideia, pressupondo autores subentendidos e desconhecidos. Linguisticamente, o autor é quem escreve.

110 Quanto ao papel do espectador, uma vez que as revoluções parciais visam destruir a hierarquia, mas não a

estrutura do jogo, reside a dúvida se Bourdieu coloca o espectador dentro ou fora do campo. “Quando uma teoria estética não providencia uma legitimação lógica e defensável para o que os artistas e, mais importante, do que as outras instituições do mundo da arte fazem – especialmente organizações de distribuição e audiências – (…) os profissionais da estética providenciarão uma nova racionalização” (Becker, 1982:162). Howard Becker, ao referir nesta passagem, a produção de discursos, nomeadamente, o discurso estético, como parte integrante do mundo da arte, coloca, claramente, o público “dentro” do mundo da arte.

O “regresso” do autor observa-se em HA e JM também. Por convocarem o próprio corpo para a obra, representando-o pela fotografia, pelo desenho ou pela pintura. Transforma-se num “outro discursivo”, como na literatura o autor literário dá vida às suas personagens. Neste sentido, não se partilha da ideia de Barthes, da morte do autor; antes se subscreve a de Foucault, que contém um espaço para ambos; autor e sujeito da obra, e leitor/espectador. 111 Pode pensar-se nas propriedades do texto, a intertextualidade, diferença e desconstrução, sem necessidade de “matar o autor”, pois a ideia de obra (literária ou outra) implica, necessariamente, a ideia de autor, como a ideia de leitor/espectador.Da mesma forma, se recorre à noção de discurso, mais abrangente do que a noção de texto, permitindo a múltipla referência à obra, linguagem visual, corporal, verbal, textual, etc. E porque se visa com o sentido e condições de possibilidade das obras, não exclusivamente, as propriedades lógico-formais da linguagem.

Nesta análise, distinguem-se, pois, duas dimensões: o corpo socialmente construído e discursivamente representado, como obra de arte. A arte constitui um processo racional e dinâmico de criação de imagens, com recurso à imaginação do real. Esse trabalho tem um processo criativo público, imagens visuais e sonoras ou performativas, que circulam de autores para espectadores e para diversas mediações.112

A arte é uma manifestação crítica do universo. Coloca o indivíduo no mundo, recria-o e interpreta- o de acordo com as suas possibilidades. Exprime a realidade dentro dos limites do conhecimento (e das mediações) numa determinada época, ajudando a criar significados e propósitos naquilo que muitas vezes parece irrisório e/ou irracional. Porque pode abraçar a harmonia e o aprazível, tal como o feio drama e a morte – enfim, o sublime em toda a amplitude. A singularidade do artista é relacional, baseada em dois sentidos: relativamente ao seu contexto (o campo ou espaço artístico), e à identidade da obra, na interacção com o mundo.

Na interacção social quotidiana cada sujeito tem a vida como vivida, experimentada (experiência), narrada e representada, como expressão. A antropologia da experiência, por exemplo, distingue entre realidade e expressão subjectiva, por seu turno enquadrada em diferentes conjunturas, dimensões (como

111 Para Ricouer a mimése, traduzida por e.g., nestes casos, pela narrativa da obra proporciona uma ligação ao

mundo cultural, ainda não figurado, ou seja, pré-narrativo, e a construção poética ou o momento final dessa relação, não se esgota na sua configuração pelo artista (e/ou outros autores), mas no leitor a que chama ponto de chegada. A mimése não se encerra no acto de configuração (pelo artista/autor), mas na actividade de leitura ou acto de refiguração do leitor/espectador (Ricoeur, 1988:56-58).Ver, também, a posição de Idalina Conde face a Foucault no início do seu texto “Artistas, indivíduo, ilusão óptica e contra ilusão” (1996b).

simbólicas e discursivas) e práticas (Bruner, 1886 apud Vale de Almeida, 1996). Aí, do ponto de vista fenomenológico e hermenêutico não se pode pensar o assentamento do eu reduzindo-o a normas (conceptuais e verbais) que olham para as práticas como símbolos de algo exterior a elas mesmas. O corpo é o assentamento do eu que o experimenta (até inconscientemente) a partir de duas possibilidades, também, com vários registos na arte. Suporte e expressão da individuação, não incompatível com o facto de ser participante integral dos processos sociais. O predomínio de certas disposições, comportamentos ou práticas, visíveis nas suas formas de expressão, dão uma outra evidência ao corpo, entendido numa perspectiva corporificada.113

Relativamente às obras de HA e JM interessam, sobretudo, as inúmeras maneiras de representar os corpos e as suas diferentes conotações.114 Mas, as imagens, sobre as quais existem diversas perspectivas, devolvem aqui o corpo como “experiência primordial” do espelho. Presença do outro como eu, e do eu como outro, a incisura ou mediação do espelho, que impossibilita o sujeito de atingir o real. Neste jogo de espelhos, a realidade é um fantasma, caixa negra, interruptor do desejo de perscrutar, de ver mais, de ampliar o conhecimento, de expandir o eu por via do outro, que o reflecte. Um jogo das aparências, ou a presença especular, contínua (Jorge, 2008). Entender o lugar do “corpo” e do “visual”, neste jogo de espelhos/imagens, é portanto, fundamental para a compreensão dos sentidos no uso do corpo pela prática e representação artística.

113 “O corpo tornou-se hoje num objecto de primeira ordem, objecto de cuidadas atenções e investimentos

quotidianos, sob a forma de saúde, beleza, sedução, força, poder, contestação, etc. A saliência social que vem adquirindo valeu-lhe o despertar inaugural do interesse sociológico, traduzido, nomeadamente em qualificativos como corporeista, somática, para designar a sociedade contemporânea ocidental. São designações que convocam a atenção para a actual centralidade do corpo na vida social, quer enquanto campo destacado de actividade política e cultural (performance e body art), quer enquanto matéria reificadora de um conjunto de valores expressivos em ascendência como por exemplo, o primado do individualismo e da diferença, do hedonismo e da ludicidade, da estetização da experiência quotidiana e da ética da experimentação” (Ferreira, 2003:265).

114 Estas funcionam em conjunto, proporcionando esquemas de visualidade e regimes escópicos de comunicação,

dentro dos quais os sujeitos se devem situar. Um regime em que a visão é distinguida sobre os outros sentidos e modos de conhecimento.