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1. ENQUADRAMENTO DO OBJECTO

1.2. Fotografia como arte, arte como fotografia: o médium e a sua origem

O debate sobre se a fotografia é arte é antigo. Quando surge, em 1929, por Niepce (1765-1833) e Daguerre (1787-1851), em Paris, começa por ser, sobretudo, retrato ou fotografia de família. Mas na formação do seu estatuto começam também a publicar-se imagens fotográficas de paisagens, museus, catedrais. Para além de imitar as belas artes, adquiriu ainda um estatuto funcional.

Inspirado por assistentes de Fox Talbot (1800-1877) – outro dos percursores da fotografia, em Londres (em 1839) – o fotógrafo Óscar Reglander (1813-1875), por exemplo, abandonou a pintura para instalar-se como fotógrafo profissional. Iniciou um período da fotografia artística com composições alegóricas em que o principal tema eram as crianças. Utilizando como modelos crianças de rua, fotografou-as nas mesmas posições das desenhadas na capela Sistina, e apercebeu-se de que algumas eram impossíveis de imitar. O trabalho de Reglander contribuiu para que a fotografia adquirisse um estatuto de arte, não só por conseguir reproduzir as imagens dos grandes mestres, mas por ser mais verdadeiro na reprodução do real, retratando posições praticáveis fisicamente. É especialista também na fotomontagem, retrato e fotografia erótica (tendo como modelos artistas de circo), onde se destacam as séries de Charlotte Bacon (1862). Mas, dificilmente, a fotografia se afasta do seu estatuto funcional. Reglander utiliza-a também para identificar criminosos, pois acredita que os indivíduos podem ser reconhecidos pelo tamanho das orelhas, nariz, etc., propondo a criação de um quadro fotográfico para uso policial. Por outro lado, ilustrou fotograficamente, em 1872, a obra de Darwin, A expressão das emoções no homem e nos animais, permitindo a sua classificação e categorização. O que o associa, historicamente, também à ciência e à psiquiatria (Mirzoeff, 1995:124; Sougez, 1996:119).

Júlia Margaret Cameron (1815-1879) procurou também dar enfase à fotografia chamada artística, à base de temas literários, sobretudo, alegóricos (Sougez, 1996:118), combinando o real e o ideal, como devoção à poesia e à beleza (Mirzoeff, 1995:125).

Por volta de 1900 surgiu um movimento contra a massificação do retrato e das “fotografias-cartão-de- visita” instaladas como uma das funcionalidades da fotografia e, que a absorveu em todas as suas vertentes durante o século XIX. Protagonizado por “fotógrafos amadores” ou de hobby, tentavam conferir-lhe um estatuto mais artístico e, menos funcional, revelando as suas outras opções e possibilidades. Em 1920 deu-se uma nova abertura nas artes plásticas com a Bauhaus e o movimento dadaísta. Enquanto a pintura era progressivamente desapossada pela fotografia das suas tarefas e funções sociais originais, artistas como Moholy-Nagy (1895-1946) submetiam-na à reflexão sobre os seus instrumentos e métodos. Ocupavam-se cada vez mais da pesquisa e exposição de imagens abstractas, como os fotogramas de Moholy-Nagy e os rayogramas de Man Ray (1890-1976). Mas, se a influência da imagem fotográfica na pintura foi investigada por vários autores, ao contrário, a influência da pintura na fotografia quase não foi objecto de investigação. Esta situação está relacionada com a ideia, de que a arte do século XIX limita a fotografia a um estatuto mecânico, independente de qualquer processo criativo (Neusüss, 1979:5).

A origem da fotografia artística tem duas raízes, uma no alargamento da fotografia e da sua profissionalização com o fotojornalismo e a fotografia publicitária a partir dos anos quarenta. Outra, no facto da televisão ter subtraído à fotografia a primazia da imagem, aproximando-a dos meios artísticos. Ao mesmo tempo surgem galerias, exclusivamente, dedicadas à fotografia artística. A par da fotografia utilitária onde a criatividade não tinha lugar, houve sempre esporádicos trabalhos livres onde o fotógrafo podia determinar o conteúdo da imagem. Vários autores realizaram este tipo de trabalho que propiciou à fotografia a sua legitimação enquanto arte: Otto Steinert (1915-1978), com a “fotografia subjectiva”; Lucien Clergue (1934-) dedicou-se exclusivamente à “fotografia livre”, apresentando-as ao público através de apoios de figuras ligadas aos museus; Gottfried Jäger (1937-) com a “fotografia generativa” procurou realizar uma expressão fotográfica abstracta, totalmente distinta da realidade, semelhante à imagem do computador. Floris Neusüss (1937-) situou-se também, a partir dos anos 50, com trabalhos numa zona intermédia entre a fotografia e as artes plásticas. Com a perda das funções jornalísticas e documentárias da fotografia, reforça-se desde os anos 70 a formação da “fotografia livre” expressa em fotos originais e exposições. Os americanos chamam-lhe straight

photography, para o qual na Alemanha surge o conceito de “fotografia primária”. Era caracterizada

pela escolha subjectiva de retalhos da realidade, realizados e apresentados com elevado nível fotográfico e, uma fascinante estética fotográfica (Neusüss, 1979:5-6).

Um outro ponto de partida da fotografia artística reside nas próprias artes plásticas com o Action

Painting e Happenings iniciados nos anos 50-60. Acontecimentos que atribuíram à fotografia o papel

de documentalista sendo, posteriormente, ela a sobreviver a estas acções. Pela primeira vez foi utilizada abertamente pelos artistas, tanto como imagem a transportar para a pintura, e como colagem. Começa a esboçar-se uma linguagem fotográfica assente na pesquisa das leis da imagem do médium fotografia (Neusüss, 1979:6).

Devido à utilização e expansão massivas da fotografia e à forma como se transformou em ofício, compreende um outro campo profissional além do artístico, sendo por isso difícil para muitos fotógrafos moverem-se dentro do campo das artes plásticas e, exprimir problemas e posições artísticas. A confrontação de conteúdo e representação realiza-se na tensão entre documentação e ficção. Para que a fotografia seja considerada arte, o autor tem que compreender e continuar as correntes das artes plásticas agora presentes no médium fotografia. O “erro histórico da fotografia” foi considerá-la apenas como “filtro que reproduz e reduz a uma posição falsificada uma determinada situação original”, compreendendo a sua “impossibilidade em transmitir uma situação vivida pelos seus meios de difusão, entendidos como objectivo da linguagem da própria fotografia” (Neusüss, 1979:8-9).

O desenvolvimento técnico da fotografia pode considerar-se terminado, o que nunca aconteceu no médium filme. Porém, a fotografia digital abre novas possibilidades como médium, e como arte. Está disponível para todos, em qualquer lugar e momento, dando origem à formação de dois grupos diferentes de utilizadores. Por um lado, os que a utilizam sem explorar as leis específicas do médium imagem, ou seja, os amadores. Por outro, os que são conscientes dos meios imagéticos da fotografia e que se encontram na fotografia profissional. Embora se revele como expressão e linguagem imagística do tempo actual, mais legíveis e compreensíveis, do que muitas exteriorizações de artistas plásticos com outros meios. Perante isto, a expressão na fotografia é puramente visual e abre-se ao observador, sobretudo, sensorial e emocionalmente. Uma ligação entre os dois campos conduzirá a uma nova cultura da imagem (Neusüss, 1979:9):

O mundo contemporâneo tornou-se na civilização da imagem. Esta permite uma comunicação mais rápida e total do que na civilização do livro. Mas originou, igualmente, estrito controlo na produção e circulação das imagens destinadas a penetrar a vida quotidiana. Em grande parte, o interesse de tantos artistas contemporâneos pelo audiovisual e pela fotografia derivou da urgência de uma consciência crítica perante tais imagens, constituintes da linguagem comunicativa do tempo actual (Pernes, 1979:10).

A técnica fotográfica é uma incisura na experiência directa do real. Constrange o espectador a ver em diferido, com a transformação das imagens em molduras ideológicas dos factos. E, o mundo inteiro surge como “enorme iconosfera reduzida à sedução do espectador, à fabricação da aparência”. Inversamente, todo o “processo evolutivo da arte moderna, se desenvolveu pela negação ou provocação das aparências, ou seja, no desmistificar das mitologias do progresso mecanicista. Desde o Dadaísmo, a fotografia deixou de ser entendida como duplo da realidade”, abandonando “uma tradição submissa a códigos cuja desmontagem implica, consequentemente, um esforço para a compreensão do comportamento sociológico, no campo das artes” (Pernes, 1979:10-11). Como afirma, ainda Fernando Pernes:

Uma arte do comportamento, como as manifestações conceptuais, recorrendo aos meios fotográficos, conjugam a dupla vertente anti-ilusionista do Abstraccionismo e do Dadaísmo, onde a objectividade e subjectividade se encontram no definir possível de uma nova vanguarda (internacional), onde para além do imediatismo fotográfico parece ecoar o célebre aforismo de Paul Klee, quando diz que a função da arte não é reproduzir o visível, mas revelar o invisível (Pernes, 1979:11).

Se a cultura visual representa o encontro da modernidade com a vida quotidiana, a fotografia é o exemplo desse processo. Veio democratizar a imagem criando uma nova relação entre passado (memória), tempo e espaço. Com a criação de meios digitais para manipular a fotografia pode-se dizer que a fotografia morreu. Mas há quem diga também que foi com a fotografia que a pintura morreu, porque esta deixou de ser o meio necessário para reproduzir a realidade exterior (cf. Mirzoeff, 1998). Walter Benjamin, na Era da Reprodutibilidade Técnica (1992 [1936-39]), refere-se à perda da aura da obra de arte, revelando que a reprodução mecânica da obra de arte muda a reacção das massas à arte. Lacau (1977) refere-se à fotografia no museu, evidenciando a diferença entre arts e crafts. Para Susan Sontag (1973:15 apud Mirzoeff, 1998:73) a fotografia representa um momento irrepetível: “all

photographs are momento mori. To take a photograph is to participate in another person (or things), mortality, vulnerability, mutability. Precisely by slicing this moment and freezing it, all photographs testify to time’s relentless melt”. Roland Barthes (1981:97 apud Mirzoeff, 1998:74) diz da fotografia, the impossible science of the unique being, afirmando ser paradoxal o seu individualismo e realismo,

pois esta não consegue captar o indivíduo. O mesmo se pode dizer do cinema. Ainda, quanto à fotografia ela já não é só memória, é informação.20

A fotografia e o cinema transmitem a sensação de que a observação do real é o que se vê na dialéctica das imagens, pois, desenvolve-se uma relação entre o observador (no presente) e o passado, que a imagem representa, na fotografia, ou com aquilo que o observador projecta (no futuro). A imagem é sobretudo o limite do sentido, permitindo considerar uma verdadeira ontologia do processo de significação. Como é que o sentido atinge a imagem, onde é que ele acaba, e se acaba, o que está para além dele? São estas as questões que Barthes (1998:70) pretende esclarecer submetendo-o à análise espectral das mensagens que a fotografia pode conter. E fá-lo através da análise da imagem publicitária, pois o seu sentido é, indubitavelmente intencional, formado a priori, para uma inteligibilidade das qualidades dos produtos publicitados. Mas, e o que acontece na imagem plástica, na obra de arte? Este sentido continuará a ser assim tão determinantemente intencional?

Para Barthes (1998), se a imagem contém signos, na publicidade, estes são colocados de forma a produzir uma leitura objectiva. A imagem, imediatamente, suporta uma mensagem cuja substância é linguística. Ora na fotografia artística, embora possa existir uma intenção de sentido objectivo a priori, pode-se questionar se a leitura oferecida não será, certamente, subjectiva. Pois, os elementos pictóricos postos à disposição do observador possuem um carácter aleatório ou ambíguo. Só em leituras posteriores outros sentidos serão observados, a partir da série de objectos disponíveis, do conteúdo da exposição, ou até mesmo da personalidade do próprio artista e da percepção do espectador.

Segundo Barthes (1998:72), pondo de lado a mensagem linguística, sobra a imagem pura.21 Ela fornece uma série de signos descontinuados. Não pode ser separada do seu significado, como acontece com a palavra. Afirma que a imagem literal é denotada enquanto, a imagem cultural é conotada. Em suma, a imagem publicitária é, sobretudo, funcional, o que não acontece com a imagem fotográfica na arte. A obra de arte sendo, basicamente, liberdade como criação ou conceito, não tem necessariamente,

20 Só recentemente se usam fotografias, textos, ou narrativas de viagem como fontes para estudos e crítica

contemporânea. A crítica dita pós-moderna usou-as para fazer a crítica do moderno, enquanto esta ignorou estes documentos. Esta leitura é mais flexível e é encarada como uma reavaliação do moderno (ver Mirzoeff, 1998:74).

21 O autor distingue entre mensagem linguística, mensagem icónica codificada e mensagem icónica

descodificada. A mensagem linguística pode ser lida independentemente das outras duas. Mas como partilham a mesma substância icónica, recebe-se simultaneamente a mensagem perceptiva e a mensagem cultural (Barthes, 1998:72).

uma função ou significado fixo. Não mais do que, o talvez utópico, puro prazer estético, ou o que obedece ao acto de criar, a função e significado da arte são equívocos.22 Pode, ainda assim, ser descodificada em termos de mensagem. É também conotada culturalmente, assim como, denotada por signos, simbolos e figurações que os autores e outros agentes lhes imprimem em contextos diversos.