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7. A REPRESENTAÇÃO DO CORPO COMO PRÁTICA ARTÍSTICA E DISCURSIVA

7.3. O uso de métodos visuais na análise da representação do corpo

De acordo com Rose (2007:6-12), embora a maioria dos estudos sobre imagens visuais se refiram à interpretação do seu significado, há também vários estudos sobre “práticas de visualidade” e sobre a “agência dos objectos visuais”. Estas perspectivas têm sido exploradas a partir de múltiplos pontos de vista, desde a história da arte aos estudos culturais. Nas várias linhas (estruturalistas, pós-estruturalistas

127A representação visual do corpo é, neste âmbito, interpretada como mecanismo com configurações e

instrumentos próprios, que reflecte visualmente o mundo, conferindo-lhe uma ordem sígnica. A visualidade presente neste modo de representação remete, por um lado, para a existência de técnicas, tecnologias e mediatização; e por outro, para linguagens precisas fundadas na visualidade. Ou seja, para médiuns visuais ou audiovisuais (o desenho, a fotografia, a pintura, o vídeo, etc.) e imagens com os seus diversos modos de expressão (pictóricos, ópticos, perceptivos) (cf. Campos, 2010:118).

ou históricas), a maioria dos métodos é qualitativa. Apesar dessa diversidade que dificulta a generalização, a autora sistematiza cinco aspectos fundamentais para a interpretação e avaliação crítica das imagens visuais: i) o modo como as imagens representam ou visualizam a diferença social; ii) a observação do que são as imagens, mas também de como são olhadas128; iii) a ênfase da “cultura visual” como incorporação de imagens visuais numa cultura mais ampla; iv) o argumento de que as audiências procedem a interpretações reforçando o significado e efeitos das imagens; v) a afirmação de que as imagens têm a sua própria agência: “uma imagem é pelo menos potencialmente um local de resistência e recalcitrância, do irredutivelmente particular, e do subversivamente estranho ou agradável” (Armstrong, 1996:28 apud Rose, 2007:11). A agência da imagem não se circunscreve, pois, ao significado em si, a imagem produz efeitos, “faz algo de único pela sua visualidade, que vai para lá do seu significado, algo como a natureza sensorial da experiência do olhar” (Mitchell, 1996, van Eck & Winters, 2005

apud Rose 2007:22).

Uma imagem reflecte significados criados noutros lugares, como catálogos, revistas e jornais, mas funciona em conjunto com outros tipos de representação (e.g., sobre a alimentação, o corpo, o género, a saúde, a biologia, a idade, a política, etc.).129 Em suma, todas as imagens visuais são “multimodais”, ou seja, o seu significado constrói-se sempre relativamente a outros objectos, incluindo textos escritos e muitas vezes outras imagens. Contudo, não são redutíveis aos significados desses objectos (Rose, 2007:11).

Neste sentido, na interpretação de materiais visuais (documentais)130 é possível distinguir vários níveis ou planos de análise: i) o plano da produção; ii) o plano das audiências; e, iii) o plano da própria imagem. E, as modalidades: i) tecnológica (qualquer tipo de dispositivo designado para ser olhado, ou para melhorar a visão natural, desde pinturas a óleo à televisão ou internet [Mirzoeff, 1998:1 apud Rose 2007:13]); ii) composicional (no que se refere às qualidades materiais de uma imagem ou objecto visual, relacionadas com estratégias formais, o conteúdo, a cor, a organização espacial); e, iii) social que se

128 Lembre-se, mais uma vez, John Berger e o que ele designou por “modos de ver”: “Nunca olhamos para um

objecto único isolado, olhamos sempre para a relação entre as coisas e nós mesmos” (Berger, 1972:9 apud Rose, 2007:12).

129 Por exemplo, os cartazes do construtivismo russo que têm a ver com representações sociais e políticas

bastante específicas; o desenho científico, que envolve representações sobre a biologia, ou a saúde; na publicidade, representações sobre regimes de alimentação, dietas, corpo saudável, etc.

130 Found visual objects, por oposição aos que podem ser produzidos pelo investigador. A expressão refere-se a

reporta à diversidade de relações económicas, políticas e sociais, bem como práticas que circundam as imagens (como são observadas e visadas). Estes níveis e modalidades, muitas vezes cruzam-se e a interpretação requer a utilização de múltiplas metodologias: análises de conteúdo, semiológica, antropológica, discursiva, estudos de audiências, interpretação composicional, entre outras.

Outras contribuições para a análise do discurso e da interpretação dos materiais visuais são úteis. Nomeadamente, a análise iconográfica-iconológica de Panofsky (1939), utilizada na história da arte, serve para abordar a própria imagem (nas suas modalidades composicional ou técnica), e no seu significado simbólico. 131 Diversos métodos como a interpretação composicional, a análise de conteúdo e a semiologia, aplicados sobretudo aos anúncios publicitários, reforçaram o conhecimento das imagens.

No entanto, para a investigação interessam não apenas a composição e o significado das imagens do corpo produzidas por HA e JM, mas igualmente os seus efeitos e “modos de ver” pelos meios de comunicação social. Lembre-se que estes contribuem para o peso excessivo que as imagens visuais têm adquirido nas sociedades pós-modernas. Baudrillard (1988, apud Rose 2007:4) referiu que “o real e o virtual são muitas vezes confundidos, afirmando que o regime escópico da pós-modernidade é dominado pelo simulacro, que não é uma cópia do real, mas a maneira como o virtual se torna verdade na realidade”. “O foco da análise visual deslocou-se gradualmente do conteúdo para os efeitos e estudo da visualidade, porque interagimos cada vez mais com experiências visuais totalmente construídas (Mirzoeff, 1998:1 apud Rose, 2007:4). E, como apontado por Haraway (1991), essas experiências visuais são, actualmente, em grande parte móveis.132

131 Inclui a fase “pré-iconográfica” para a percepção das obras de arte sem conhecimento ou interpretação; fase

“iconográfica” com identificação do referente da obra para aquisição de significação simbólica; “fase iconológica” tem em conta a obra de arte como produto dialéctico de um processo histórico e social determinado (cf. Panofsky, 1995 [1939]:1-33).

132 A propósito Donna Haraway (1991) nota que a proliferação contemporânea de tecnologias de visualização de

uso científico e quotidiano também caracteriza o “regime escópico” associado a estas tecnologias. É a “gula não-regulamentada” da visão móvel e incorporada na prática comum. Haraway está preocupada com as relações de poder articuladas através deste registo da visualidade. Não obstante, argumenta que esta “gula visual não- regulamentada” da sociedade contemporânea está mais disponível para certos indivíduos e instituições, em especial os que fazem parte da história da ciência ligada ao capitalismo, ao militarismo, ao colonialismo, e à supremacia masculina. Segundo ela a visualidade produz visões particulares de diferença social – ou hierarquias de classe, género, raça, sexualidade, etc., relacionadas com a tirania, a opressão capitalista, o patriarcado e o colonialismo. Parte do seu projecto é perceber como certas instituições mobilizam certas formas de visualidade através das quais os indivíduos devem ver e ordenar o mundo. A visualidade dominante nega a validade de outras formas de visualização da diferença social (Haraway, 1991:188 apud Rose, 2007:5).

Assim, a forma como as imagens se transmitem é outro aspecto importante para a análise visual, em particular, quando existe interesse em saber como as imagens alcançam o espectador. As características dos materiais utilizados restringem o formato possível e o conteúdo da imagem, pelo que se deve atender ao médium da imagem. A atenção à materialidade da imagem visual e à especificidade do contexto pode revelar o papel que a imagem desempenha na textura das relações sociais (Banks, 2001:51). O que significa observar quadros de interacção, redes de relações, de divulgação, condições de aceitação das imagens (o que foi dito e escrito sobre elas), outros objectos visuais e discussões (por exemplo, presentes na consciência do espectador).

De facto, “mesmo o significado de pinturas ou esculturas que parecem existir por si (como as que se podem observar na parede de um museu) obtém-se a partir de um contexto formado pelo que está escrito, quer na etiqueta identificativa ou em catálogos, por representações do espectador e discussões sobre o tema, ou por outros objectos visuais que a acompanham” (Becker, 1995:8).

Logo, questionar o significado das imagens é questionar os seus contextos de produção e expressividade, atendendo ao seu poder, funções e efeitos. Em algumas situações criam um sistema visual “em que o médium é o mais importante (…) ” (Banks, 2001:53):

(…) Foi um processo analítico. Havia com certeza muita intuição, mas o processo era fundamentalmente analítico. Foi uma maneira de desmembrar a pintura de uma forma analítica. Eu recorri à fotografia como meio de prosseguir esta análise, mas julgo que também foi importante o conhecimento do trabalho de outros artistas do meu tempo que se interessaram pela fotografia. Era o meu tempo. Fui buscar um

médium do meu tempo (HA, 2000 apud Mah 2000).

A análise do discurso foi um método fundamental para a pesquisa de significados visuais (e sua legitimação) nos casos de HA e JM.133 Na análise discursiva as condições de produção, interacção ou divulgação das imagens, através dos discursos sobre a obra, são elementos da sua “elaboração estrutural” (Archer, 1995) que poderão vir a instanciar novos discursos e colocar em relação os casos dos dois artistas. Quanto aos discursos dos artistas, também recorrem a esquemas culturais (hábitos discursivos, convenções, princípios de acção) vistos como efeito da mobilização de recursos (objectos, capacidades físicas ou emocionais, conhecimento) por parte dos artistas, ao produzirem as obras (cf. Sewell Jr.,

133 Consequentemente, com a análise pretende-se não só “ir para além do seu conteúdo” como defendido por

Sontag (2004) no já clássico Contra a Interpretação, mas também da “forma”, implicando os seus resultados (Berger, 2002 [1972]) ou efeitos (Haraway, 1998).

1992). A representação do corpo, em articulação com a utilização de dispositivos tecnológicos na sua produção/composição (vídeo, fotografia, pintura), socialmente constituem maneiras de inovar, criar e transformar significados, sobre o objecto artístico e o corpo. Para além de tudo o que já se disse sobre as lógicas discursivas e imagéticas é importante adivinhar-se aspectos precisos, como por exemplo, a técnica versus estética; processo versus resultado, forma versus expressão/necessidade. Escute-se, então, Helena Almeida:

As cores, que eu própria preparo misturando as tintas, apareceram de uma forma natural, porque também eram um médium do meu corpo. No começo foi dominantemente o azul. As questões estéticas que então me guiavam o trabalho prendiam-se com a espacialidade e com a própria natureza da pintura. Era um processo abstracto e, ao mesmo tempo, sólido, porque era como se eu quisesse e pudesse agarrar a pintura, chorar a pintura, engoli-la... Queria fazer tudo o que me apetecesse fazer com a pintura, tudo menos ela estar numa tela. Queria libertá-la para o espaço. Não poderia fazer isso com o vermelho, seria como se estivesse a engolir chumbo ou a chorar sangue. Quando ponho o vermelho, a mão parece que pesa. O vermelho é um luxo, uma cor sumptuosa, dramática, uma cor que me enterra mais no chão e foi sobre isso que, a partir de uma determinada altura, me interessou falar. Nuns trabalhos a que chamei o

Perdão também utilizei o branco, cor que me sugere paz. Nunca empreguei as cores por empregar, elas

correspondem sempre aos meus questionamentos sobre a pintura, sobre a matéria em que quero trabalhar. Não houve, como há quem pense, um rompimento do meu namoro com o azul, cor da energia. Esse diálogo não tem fim e ainda o meto, aqui e ali. Mas o que tinha a dizer no começo foi dito. Talvez venha ainda a sentir necessidade de pôr em equação novos problemas cuja natureza me obrigue a que sejam exprimidos pelo azul (HA apud Seixas, 2004).

Os discursos mediáticos, por seu lado, permitem enquadrar as obras no sistema de ideias onde elas surgem, de modo a compreender as estruturas de sentido em que os autores se baseiam.

Com vista a analisar os discursos visuais e mediáticos, o modelo operacional implicou: i) a observação das obras ao vivo, em catálogos e brochuras sobre exposições e eventos onde os artistas participaram; ii) a recolha e análise de textos pessoais e imagens neles publicados; iii) visionamento de filmes sobre os artistas, disponíveis nos suportes vídeo e DVD; iv) documentários sobre montagens de exposições e entrevistas aos artistas em programas televisivos e comunicações online (YouTube, sites de galerias e outras organizações); e, v) a recolha de textos, entrevistas, artigos e ensaios publicados em jornais ou revistas da especialidade, bem como em antologias sobre os artistas.

No cruzamento de modalidades e níveis de análise visuais, os dados confirmam que a singularidade por via da corporalidade em HA e JM comparece na identificação/reconhecimento da obra. Os discursos da e sobre a obra evidenciam a inevitabilidade das formas de (i)mediação na consolidação

do nome do artista, afirmação e recepção da obra. Olhando para as imagens, retém-se a sua agência já que, por vezes, excedem o discurso verbal e textual. Finalmente volta-se à problemática da identidade da obra e do seu sujeito: “não são auto-retratos, são auto-representações” (JM); “Não são auto-retratos, serão auto-retratos?” (HA, 1982), continua a interrogar-se. “Não sou eu”, “é um outro”, mas “as imagens têm a ver connosco. Nós temos a ver connosco com alguma continuidade” (JM, 2010 apud Ribeiro, 2010). “Mas não sou eu! É como se fosse outra pessoa, é, no fundo, é a busca do outro”, contudo, “transponho para o suporte as minhas histórias, os meus problemas” (HA, 1996 apud Machado, 1996). Registe-se mais alguns exemplos para essa contradição ou dualidade (sublinhados nossos):

Resultando que aquilo, não sou eu nem ninguém. Não podendo referi-los como anónimos, posso pensá- los, no entanto, como entidades relativamente abstractas, às quais me liga apenas uma vaga impressão de reconhecimento, como aquela estranha sensação que às vezes nos assalta de termos estado num lugar a que sabemos estar a chegar pela primeira vez (JM, 1994).

São e não são. Não são quadros-vivos no sentido clássico. São ficções porque não sou eu, é como se fosse um duplo, uma outra pessoa. É uma ficção no sentido pictórico. Nos meus trabalhos existe sempre o plano, o plano da tela em que estou lá eu. E como se eu estivesse dentro de uma tela, de uma ficção. Quando usei a tinta foi para que as pessoas percebessem que existe um plano do qual eu não passo, para lembrar a superfície da tela. O foco da fotografia é o espaço dessa tela (HA apud Mah, 2000).

Mas não sou eu que respiro esta respiração. É um movimento quase indelével da minha memória, daquela parte da memória em que recordamos coisas que nunca nos aconteceram. Na nossa memória as coisas que não nos aconteceram são naturalmente mais numerosas do que aquelas que vivemos (JM, 2001b).