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1. ENQUADRAMENTO DO OBJECTO

1.3. Apresentação dos casos: delimitação e contexto

1.3.2. Jorge Molder, the Portuguese Dutchman

A Jorge Molder (1947-) coube igualmente um lugar único, com o seu trabalho, surpreendentemente, tão crítico como criativo para o mundo da fotografia e da arte. O seu caminho, sem paralelo, e não exclusivamente artístico, é reconhecido e relevante:

O trabalho de Jorge Molder usa todos os dispositivos artísticos da fotografia clássica: composição, nuances subtis de preto e branco [e de cor], o uso de luz intensa e sombra, registando a intensidade de uma atmosfera ou a captura de um momento poético. Mas antes que a estes seja dado expressão artística são, primeiramente, imagens na mente do artista. A série e os seus títulos perseguem uma ideia, uma visão, nada está lá por acaso ou coincidência (Bergmann, 1999:35).

JM é licenciado em Filosofia pela Universidade Clássica de Lisboa; foi director do Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão (CAMJAP) desde 1994 até 2009 (ano em que abandonou o cargo, por motivos pessoais, no início de Janeiro); em 1990 ingressou na Fundação Gulbenkian como assessor, tendo sido depois director adjunto do Arquitecto Sommer Ribeiro, primeiro Director do CAMJAP. Como fotógrafo, JM possui um relevante percurso nacional e internacional. Foi artista convidado na Bienal de S. Paulo em 1994 e representou Portugal na Bienal de Veneza em 1999 (Jürgens, 2006).

Como referido, estreou-se em 1977 com a primeira exposição individual, Vilarinho das Furnas

(Uma Encenação), Paisagens com Água, Casas e um Trailer. Consistia num conjunto de imagens de

uma instalação de Ana Hatherly “sobre uma aldeia comunitária do norte de Portugal que, nesse ano, foi evacuada e submergida pelas águas de uma barragem. Essas imagens inauguravam o sentido nostálgico de toda a primeira fase da obra de Molder, em torno da ideia de perda, que se viria a manifestar sempre, mas noutras formas, até às séries mais recentes” (Sardo, 1998:25).

A partir de 1978 o seu trabalho ganhou uma inclinação literária através de contributos com poetas como Joaquim Manuel Magalhães e João Miguel Fernandes Jorge, como no livro Uma exposição (1980) (Sardo, 2005), ou O Gosto do Pão (1989). Começou aqui a esboçar-se o interesse pela referência narrativa e o viés cinematográfico da sua fotografia. A partir de 1987 começa a utilizar a auto-

representação. A opção pela série, “categoria estruturante da obra, intensifica o seu carácter cinematográfico”. Em conjunto com “o interesse quase obsessivo” pela prática do auto-retrato, a série irá funcionar como “o dispositivo de produção de sentido mais omnipresente no desenrolar do seu percurso fotográfico” (Sardo, 2005: passim). Em Joseph Conrad (1990) ou The Secret Agent (1991), por exemplo, apresenta um conjunto de cenários que evocam uma “narrativa suspensa”, como “pistas numa novela policial ou num conto fantástico cujo desenrolar permanece obscuro” (ver www.jorgemolder.com).

Como um homem na Linha do tempo (2000) “percorre uma casa, que vemos estar abandonada, como se procurasse algo, que suspeita estar ligado ao seu passado, seguindo um fio ténue de sentido que poderia encontrar nas coisas ainda presentes e mesmo nas marcas de destruição” (Molder, 2000). E que representado pelo artista, pode ser qualquer um.

Figura 1.3.2.1. Jorge Molder, Linha do Tempo. Vídeo 5’ 40”, Preto & Branco, Som, 2000, Colecção CAV, Coimbra. Fonte: Sardo, 2005: imagem nº22, n.p.

O auto-retrato, embora presente desde cedo, só mais tarde veio a atingir o seu actual simbolismo. Ao ser trabalhado também em séries, adquiriu um estatuto de auto-representação, “o rosto da máscara”, no qual o eu do artista se revela e oculta, através da adopção de um outro enquanto protagonista da representação.

Entre o filme noir e o romance vitoriano, entre o agente secreto e Mr. Hyde, o outro é aquele que se libertou do corpo para abraçar plenamente a sua condição espectral, sendo que esta é a condição da fotografia ela

própria”. Como testemunho último dessa condição ver, por exemplo, a série Nox (Bienal de Veneza 1999) na qual “a densidade do negro ameaça subsumir as suas personagens” (Anon, 2010a).

Eis porque JM tem vindo a desenvolver uma profunda e sistemática exploração da imagem fotográfica enquanto modelo e veículo para a auto-representação, tendo o próprio corpo e rosto como matéria primordial. As suas fotografias confluem para um universo ficcional, onde impera a figura do duplo no qual o artista encarna personagens que “resistem a dissolver-se inteiramente numa eventual narrativa”. De tal forma, cada imagem pode funcionar autonomamente, apesar do carácter serial das suas representações. Muitas vezes o seu trabalho é marcado pelo confronto do olhar do artista com a sua aparência, como em Pinocchio (2009), ou do duplo, como em The Portuguese Dutchman (1990) (Marchand, 2009). As fotografias de JM são “presenças, quase abstractas, em que o recurso ao próprio corpo do artista constitui uma marca dessa abstracção” (Sardo, 2005:14).

Estes são algumas das ideias associadas a Jorge Molder e à sua obra, amplamente reconhecidas e divulgadas. Contudo interessa perceber como tiveram lugar. Qual a sua origem e “estatuto normativo”. Que posição o artista adopta e como percepciona estes discursos? Qual o seu papel na sua produção? O que é auto-representar-se?

Para responder a estas questões fez-se um desdobramento da questão dos usos e representações do corpo no trabalho de HA e JM segundo duas dimensões, profissional e discursiva, para reconstruir as narrativas da singularidade e do reconhecimento nos dois artistas. A primeira dimensão estuda o objecto do ponto de vista do indivíduo criador, relacionando as questões do corpo e das suas representações com a problemática da identidade, com diversas vertentes (e.g., social, narrativa, singularidade); na segunda dimensão, o objecto é abordado do ponto da vista da prática da representação, relacionando as questões do corpo com o seu sentido visual e simbólico.

No próximo capítulo sistematiza-se a abordagem teórico-metodológica utilizada nesta investigação, para compreender como o corpo é, visualmente, construído como identificação pessoal e símbolo icónico da identidade do artista e da obra.