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2. CONCEITOS E DIMENSÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS DE INVESTIGAÇÃO

2.3. Mecanismos causais intrínsecos e representativos

A combinação daqueles aspectos permite, através da análise destes casos individuais, detectar os “poderes causais” de ambas (estrutura e agência) na estruturação da trajectória e identidade dos artistas e das obras, da sua singularidade por um lado, e do seu reconhecimento por outro, apresentando diferentes visões, mas complementares do mesmo fenómeno, e reciprocamente envolvidas.

Nesta perspectiva, é possível demonstrar como os estudos de caso permitem aferir mecanismos causais e representativos da realidade dos casos, através da comparação e generalização, à semelhança

do que acontece em estudos extensivos. De facto, como Abell (2009:39-40) afirma, nos estudos de caso pode efectivamente “existir comparação e generalização, mas depois de se determinar a relação causal que originou a relação, ao contrário dos estudos extensivos, em que a comparação e a generalização são prévias à explicação causal”. Ou seja, existe a possibilidade de generalização, mas esta é intrínseca ao próprio caso.

Porém, nos estudos de caso identificar este tipo de relação torna-se, particularmente, difícil porque não existem muitas formas de objectivar, ou decompor, uma determinada realidade de modo a minimizar os efeitos das interpretações dos sujeitos sobre ela. Por outro lado, e como também já mencionado, porque, normalmente, não existe apenas uma causa na explicação de qualquer acontecimento. Aliás, como Abell (2009:42) refere, cada ligação causal é em probabilidade uma abstracção inserida numa rede maior de causas, ou numa série de causas adicionais, cuja decomposição leva a outras decomposições, que convocam trajectórias causais paralelas – “causalidade conjuntiva” – para chegar à interpretação causal particular.

Nos estudos de caso, para que o pressuposto da “explicação causal particular” seja viável, é preciso inferir explicações sobre acções individuais, causalmente orientadas, a partir de um determinado contexto. Ou seja, da especificação das condições e possibilidades em que elas podem ser observadas. Este paradigma explicativo-interpretativo ou “silogismo prático contingente” consiste em descobrir a “causalidade particular” a partir de um padrão relacional sobre a conjunção das acções e mudanças ocorridas na situação em análise, em relação com outras situações. Como por exemplo, a estrutura de significações e padrões conceptuais em que os actores se baseiam para fazerem as suas escolhas (ibid.):

Nestes casos crê-se que os actores têm um sistema de crenças ou significações (parte do qual é incorporado) o qual permite a sua intervenção no mundo social a partir do modo como o compreendem. É imperativo considerar a ligação entre dois acontecimentos e, por outro lado, considerar que as intenções dos actores e as suas crenças são um “postulado estado mental”, uma vez que os indivíduos agem a partir de uma miríade de possíveis factores em que se inserem o sistema simbólico dos valores e sentidos incorporados que causam as suas escolhas. Ou propor, como sugere Boudon (2004 apud Abell, 2009:43), que para o actor, o sentido para a sua acção, é a sua causa. E, consequentemente, os seus efeitos provocarão presumivelmente outras acções, ou seja, uma forma de interacção social (Abell, 2009:43).

Em suma, o argumento da “causalidade particular” assenta em duas proposições: na aceitação de que a acção individual é causalmente orientada; e de que a estruturação das acções no interior dos casos, de

forma particular, faz com que as trajectórias de interacção sejam traçadas como narrativas (Abell, 2009:43-45). A estrutura das acções causalmente orientadas tem mecanismos, que em conjunto com elementos funcionais, práticos, contextuais e intencionais dos artistas, fornecem instrumentos para a interpretação do caso. A narrativa, assim reconstruída, atesta a representatividade ou relevância social dos casos.

Ou seja, no interior da narrativa a acção é em princípio orientada por regras, susceptível de compreensão sociológica, dependendo das condições sociais, contextuais e conjunturais que a produzem. Mas incluem os agenciamentos criativos e práticos, ou seja, os poderes agenciais dos próprios sujeitos, agentes auto-reflexivos e criativos, pressupondo-se mutuamente. A narrativa singular do artista está desta forma, directamente, implicada na narrativa histórica ou estética em que eles próprios surgem, reproduzem, reconstroem e transformam.

2.3.1. Narrativas

A narrativa46 designa uma sequência temporal ou uma cronologia de acontecimentos que descreve, heuristicamente, as relações causais no interior do caso (Abell, 2009), bem como as suas formas sociais específicas – relações e mecanismos causais, lógicas sociais e de acção, processos recorrentes presentes no contexto analisado (Bertaux, 2001 [1997]:11). A experiência humana é, intrinsecamente, formada e interligada no tempo. E, como tal, a narrativa, na (re)criação de intenções, expectativas e memória implica, necessariamente, uma dimensão temporal (Ricouer, 1988 apud Andrews et al., 2004:6). Assim, quanto mais a construção da narrativa remontar ao passado, mais explícita será a história da sua origem causal (mecanismos). Porém, normalmente, uma sequência temporal por si só, não constitui um caso, mas um caso pode conter uma sequência temporal ou várias, ou seja, várias narrativas. A nível externo, o

46 Ao longo desta tese o conceito “narrativa” é utilizado de forma fluída entre as conotações ligadas a

construções narrativas da identidade e do reconhecimento através dos discursos, como à narrativa/não- narrativa da imagem. Considera-se, ainda, a reconstrução de acontecimentos numa cronologia, por exemplo, as trajectórias curriculares, como micronarrativas no interior dos casos, e ainda que os casos, a nível macro sejam reconstruídos como meta-narrativas (Abell, 2009). Privilegiam-se, as inter-relações entre as dimensões da experiência – relações, mecanismos e lógicas de acção (Bertaux, 2001) –, e a sua articulação simbólica nos discursos, vistos como modalidades narrativas, pois o tempo articulado de modo narrativo torna-se tempo humano. Por sua vez, a narrativa é significativa na medida em que esboça os traços da experiência temporal do sujeito (Ricoeur, 1988).

seu grau de generalização, torna-se uma questão de comparação de narrativas. Logo, para verificar se há um laço comum entre duas ou mais narrativas é preciso analisar mais do que uma narrativa (Abell, 2009:46). Assim, considera-se a narrativa como a descrição, eventualmente sequencial, de relações causais contextuais no interior do caso (micronarrativas), mas também que cada caso, a nível externo, pode ser reconstruído como (meta)narrativa.

Resumindo, encontrar a interpretação causal particular, i.e., atestar a representatividade de um caso, processualmente, envolve a decomposição da narrativa através de um raciocínio probabilístico baseado no pressuposto da simultaneidade das acções individuais, na orientação causal da acção, e na existência de um sistema de crenças dos sujeitos (em parte incorporado) que determina essa acção. Por outro lado, a interpretação narrativa permite reflectir sobre as formas de mediação entre os dois níveis, (macro e micro), ou entre diferentes visões do acontecimento (eventualmente, níveis ou estruturas intermédias), incluindo na análise não só a procura dos mecanismos causais, a nível interno, mas a análise das suas estruturas de significação, a nível externo.

Para o efeito é necessário considerar as formas de relação e mediação entre os vários níveis estruturais (e.g., entre discurso e prática do discurso, entre narrativa e construção da narrativa, entre a auto-representação e o seu reconhecimento), para inferir como, através delas (e da sua acção ou mecanismos), se geram as transformações dessas realidades/estruturas. Estas formas de mediação podem ser, por exemplo, a “reflexividade”, o embodiment (in/excorporação socialmente contextualizadas ou culturalmente situadas) ou o “sentido prático”. O que permite afirmar que a explicação sociológica envolve mais do que a procura de mecanismos causais para os acontecimentos, baseia-se também na contextualização, descrição e interpretação das relações fundamentais entre fenómenos (e.g., entre a auto-representação, identidade e corporalidade) e, diferentes níveis estruturais de análise, em diferentes graus de profundidade e influência (e.g., linguagem; mercado da arte; trajectória reconstruída; sistema cultural).

Assim, para a reconstrução desta (meta)narrativa que é o(s) caso(s), além da análise das trajectórias curriculares dos artistas (numa cronografia47 de eventos), foi importante adicionar outros

47 Utiliza-se o termo cronografia ao invés de cronologia, para designar o espaço-tempo das actividades dos

artistas que foi reconstruído com base em múltiplos elementos (não só temporais, mas espaciais, através da ACM). Assim reconstruído oferece não uma cronologia, mas uma grafia de acontecimentos, devido à disposição dos objectos (nestes casos, as participações dos artistas em exposições e outros eventos) num espaço de análise multidimensional.

elementos i.e., decompor outras narrativas, por exemplo: a das imagens propriamente ditas, a da identidade e do corpo, em várias dimensões (identitária e prática/discursiva ou singularidade vs. reconhecimento) e, níveis de análise (e.g. trajectória individual vs. trajectória comum).

Para analisar a experiência subjectiva dos artistas, mormente, sobre o uso do corpo na obra, pela via da narrativa, as dimensões actantes da trajectória e do discurso tornaram-se bastante importantes. O recurso a materiais visuais e currículos enriqueceu esta perspectiva, trazendo para a análise uma dimensão cronológica e outra, espacial-geográfica que redefiniu e explicitou as lógicas de interacção e as dinâmicas de desenvolvimento dos percursos artísticos e das obras. Em conformidade com a dimensão discursiva aportou a questão da produção de sentidos, da sua reprodução e dinâmicas de transformação. Claramente, nenhuma delas pode ser separada dos artistas, que ocupam nestes casos uma condição, duplamente, central como sujeito(s) e objecto(s) da prática da representação.

Logo, para “identificar a natureza do corpo cujas lógicas sociais e culturais se pretendem questionar” (Le Breton, 2006 [1992]:31), e sem rejeitar, a ideia de acção causalmente orientada subjacente às acções individuais (e.g., o uso dos títulos), procurou-se compreender os interesses e motivações dos artistas dentro do sistema global de acções onde eles tiveram lugar (Bourdieu et al., 1968:38-41 apud Santos, 2002 [1989]:34).48 Porque, apesar destes se revelarem muitas vezes pessoais e singulares, estão envolvidos num sistema simbólico, social e cultural que lhes é anterior e os transcende (Giddens, 1997).49

Assim, porque os artistas criam um alinhamento da acção com base nas suas intenções, mas também no conjunto de significados que pensam estar-lhe atribuídos, o objecto de análise não é só a auto-representação, mas todo o processo através do qual ela é feita e refeita (Becker, 1982:200). Ou seja,

48 “A ruptura epistemológica obedece a dois princípios: o princípio da não-consciência e o princípio do primado

das relações sociais. O primeiro estabelece que o sentido das acções sociais não pode ser investigado unicamente a partir das intenções ou motivações dos agentes que as realiza porque transborda delas, residindo antes no sistema global em que tais acções têm lugar. O segundo estabelece que os factos sociais se explicam por outros factos sociais e não por factos individuais (psicológicos) ou naturais (da natureza humana) ” (Bourdieu et al., 1968:38-41 apud Santos, 2002 [1989]:34).

49 Sistema que sobressai deles, mas que os sujeitos refundam recursivamente através de práticas realizadas no

as práticas, o modo da configuração dos discursos sobre as práticas e sobre as obras, o seu contexto e condições de possibilidade, as experiências que as envolvem (embodiment) e, as apreciações sobre elas.50

Foi útil considerar, ainda, outras condições estruturais previamente determinadas na construção dos casos, como elementos biográficos, conjunturas, discursos instituídos, acções e condições, por sua vez, em conjunto determinantes destas narrativas, em que o corpo, como abstracção pictórica, ligado a universos simbólicos alternativos, é fonte de inspiração para novas formas de significação e identidade.