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PARTE I – OS VALORES DA ARTE

CAPÍTULO 3 – ARTE, GOVERNO E LIBERDADE

3.3 A construção da liberdade

Em uma ressalva à obra de Bourdieu, o pesquisador inglês Thomas Osborne (ibidem) ressalta que a arte autônoma não é, necessariamente, aquela que nega os aspectos sociais – senão, como explicar artistas que são também ativistas em prol de alguma causa, além de obras que relatem as lutas políticas ou que sejam construídas a partir de assuntos religiosos? Todos esses fatores podem ser incluídos nas obras, na forma de "seleções", "apropriações" e "combinações” (SALLES, 2011). O que ocorre é que, apesar de a arte ter elementos do mundo material, ela procura uma organização intrínseca, orgânica, que não quer se deixar determinar por nenhum objeto externo. Remetendo a Deleuze e Guattari, Osborne (1998) sugere, então, que a obra deve "manter-se de pé sozinha", ou seja, "o composto de sensações criado" deve "conservar-se em si mesmo":

O jovem sorri na tela enquanto ela dura. O sangue lateja sob a pele deste rosto de mulher, e o vento agita um ramo, um grupo de homens se apressa em partir. Num romance ou num filme, o jovem deixa de sorrir, mas começará outra vez, se voltarmos a tal página ou tal momento. A arte conserva – e é a única coisa no mundo que se conserva. Conserva e se conserva em si (quid júris), embora, de fato, não dure mais que seu suporte e seus materiais (quidfact), pedra, tela, cor química, etc. (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p.213)

Talvez sejam raras as obras que realmente alcançam esse objetivo, aquelas que são capazes de resistir à ação do tempo ou ultrapassar barreiras espaciais (DELEUZE, 1999), porém é justamente esta busca – não tanto o resultado em si – que assinala a produção artística. Mas há uma especificidade: mesmo que as artes do Egito Antigo ou de outras civilizações permaneçam até os dias atuais, elas foram criadas como um subproduto de outras funções. Portanto, mesmo que a proposta de Deleuze e Guattari possa ter como exemplo obras de diferentes épocas, a preocupação em criar algo que resista por si só à ação do tempo tornou-se mais clara apenas a partir do século XVIII.

61 Mais do que comparar as ideias de Deleuze e Guattari às de Bourdieu, Osborne (1998) propõe-se, então, a discutir essa tendência à luz do pensamento iluminista, aquele que se esforça por compreender a própria época, em uma incessante busca por "verdades", não necessariamente as "absolutas", mas as que são constantemente revistas ou criticadas, sempre com certo ceticismo, seja na ciência, na economia ou nas linguagens. A partir dessa abertura, o autor analisa diferentes aspectos: a emergência da razão e da crítica, o desenvolvimento da ciência, a medicina, a estética, a ética e os intelectuais. Mas surge outro problema, que perpassa todos esses domínios: no século XVIII, já não era suficiente conhecer os processos de que emergem as verdades, era preciso criar um espaço para que elas pudessem se manifestar: um campo de "liberdades".

Nesse ponto, o texto de Osborne, que certamente remete a Kant (e à crítica de Bourdieu), também se refere, explicitamente, à obra de Foucault, não somente no método genealógico, mas especialmente no tema abordado. O assunto em comum, a "liberdade", é uma palavra fundamental tanto para o regime estético quanto para a economia de mercado. No entanto, aqui, ela aparece revestida de um sentido que complementa os anteriores. Além de remeter à libertação de amarras religiosas e de hierarquias sociais, relacionando-se com a razão e a moral, ela se torna um atributo de cidadãos "livres", que já não são submetidos a um poder soberano, mas que devem saber conduzir suas próprias vidas conforme certo grau de "normalidade", definido em cada época pelo conjunto de instituições em vigor (ROSE, 1999).

Ocorre que a liberdade também não é uma situação natural, é preciso produzi--la. E, para isso, seria necessária uma forma de governo que não interferisse diretamente na vida dos indivíduos, como faziam os reis absolutistas, por exemplo, mas que refletisse sobre os interesses vindos de diversas partes da sociedade (ibidem). Assim emergia o liberalismo econômico, ambiente em que tanto o regime de produção quanto o mercado de artes se desenvolveram no século XVIII e que, como a vida e as linguagens, ocupava políticos e pensadores da época.

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3.4 Arte e subjetividade: o governo do público e dos artistas

Foucault (2008; 2010), no final da década de 1970, estudou o liberalismo a partir de um conceito novo, criado por ele: o de "governamentalidade". O filósofo percebeu uma relação direta entre as técnicas de governo dos Estados, que se renovavam com o pensamento liberal, e as condutas individuais de cidadãos que deveriam seguir o caminho da liberdade, mas sempre prestando atenção ao próprio comportamento.

O liberalismo, no sentido que eu o entendo, esse liberalismo que podemos caracterizar como a nova arte de governar formada no século XVIII, implica em seu cerne uma relação de produção/destruição com a liberdade. É necessário, de um lado, produzir a liberdade, mas esse gesto mesmo implica que, de outro lado, se estabeleçam limitações, controles, coerções, obrigações apoiadas em ameaças, etc. (FOUCAULT, 2008, p.87)

Em seus primeiros textos, Foucault dava ênfase ao poder exercido por instituições como escolas, prisões, hospitais – e por que não expandir também para os teatros, os museus e as academias de arte? Mas foi somente no final de sua vida, já na década de 1970, que ele uniu essa perspectiva aos processos de formação de subjetividade. Dessa maneira, ele se propôs a estudar o conjunto de ações que buscam "conduzir" as "condutas" dos indivíduos. Foi essa noção que permitiu ao filósofo explicar como, na formação dos Estados liberais, no século XVIII, as técnicas de poder e as formas de conhecimento, as racionalidades e os regimes de representação passaram a afetar o modo como as pessoas conduzem suas vidas: o "governo de si" (LEMKE, 2011).

Como visto, nessa época, os grandes Estados Nacionais estavam se consolidando e as monarquias absolutistas finalmente entravam em declínio. O ato de "governar" deixava de ter como objetivo expandir o próprio território ou exercer o poder diretamente sobre os súditos e, com isso, emergia uma pergunta inédita para aqueles que estavam no comando: "por que, então, é preciso governar?". A resposta vinha de um problema que também era novo para a época: a "sociedade". O desenvolvimento da estatística (ciência do Estado) mostrava, aos poucos, que a população tem regularidades próprias, como o número de nascimentos e de mortes, de doenças e acidentes. E, nesse contexto, "governar" passava a ser uma maneira de agenciar interesses vindos de diversas partes da sociedade, entendida agora

63 como um conjunto de relações sociais, jurídicas, econômicas e culturais, tecidas por sujeitos "livres" e heterogêneos. (LAZZARATO, 2005)

Mas como organizar um espaço para que a liberdade pudesse ser exercida? As fábricas, as prisões e os asilos para loucos eram instituições que buscavam remodelar o caráter de cidadãos que transgrediam a conduta considerada civilizada. Entretanto, a civilidade também era instituída por meio de estratégias que buscavam "construir" uma forma de liberdade regulada por práticas de "normalidade" e de "racionalidade". Ser livre, a partir do liberalismo, significava comportar-se de acordo com certos códigos de conduta, ser governável como um "sujeito normal". Para Nikolas Rose (1999, p.76, tradução nossa):

Ser livre, no sentido moderno, é ser associado a um governo em que certos modos de conduta da existência de uma pessoa são identificados como normais e, simultaneamente, ser vinculado àqueles "engenheiros da alma humana" que irão definir as normas e disciplinar indivíduos aos modos de viver que irão efetuar a normalidade.15

Com essa premissa, foram inventadas técnicas que envolviam a vigilância de indivíduos em espaços abertos, além da patrulha e do mapeamento realizados pela polícia, que não atuava tanto pelo terror ou pela violência, mas que buscava assegurar o bom comportamento no espaço urbano (ibidem).

Ora, a arte, como foi entendida desde o século XVIII, também pressupõe uma determinada conduta tanto dos artistas, que se voltam para si mesmos, quanto do público, que adota a perspectiva da "contemplação desinteressada". Por isso, nos anos 1980, a tese de Foucault foi rapidamente apropriada por pesquisadores da cultura. A corrente de estudos culturais, que se desenvolvia na Inglaterra, é um exemplo. Porém, divergências teóricas logo separaram novamente seus modos de pensamento, e foi Tony Bennett que deu continuidade ao assunto, associando-se ao grupo de Nikolas Rose sobre os Estudos do Presente.

De acordo com Bennett et al. (2007), quando induz o livre acordo entre a imaginação e o entendimento – e esse acordo não é ditado por nenhuma regra ou conceito determinante –, a Estética, como proposta por Kant e levada adiante por outros teóricos e artistas, simboliza um campo de produção de subjetividade:

Não é nenhuma surpresa, portanto, que a visão de Kant da estética deva ter tido um papel central no que se refere à relação entre cultura e governo

15 To be free, in the modern sense, is to be attached to a polity where certain civilized modes of

conducting one’s existence are identified as normal, and simultaneously to be bound to those ‘engineers of the human soul’ who will define the norm and tutor individuals as to the ways of living that will accomplish normality.

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liberal, uma vez que o encontro estético entre o indivíduo e a obra de arte é o local de produção de uma interioridade na qual uma relação reguladora do

self é livremente introduzida. (ibidem, p.10)16

Foi com base nesse raciocínio que Bennett (1998) estudou a crescente instrumentalização da cultura no interior do governo, tendo como objeto principal os museus. Em comentário a essas pesquisas, Rose (1999) descreve que os visitantes dessas instituições, já no século XIX, eram instruídos por escrito sobre as maneiras como deveriam se vestir e se portar, além de passarem pela vistoria de guardas, de funcionários e do próprio público. Dessa maneira, criava-se uma rede de visibilidades e de códigos de conduta que fazia com que as pessoas prestassem cada vez mais atenção a seus próprios atos, educando a si mesmas.

Além dessas estratégias, que permanecem até hoje (basta observar como museus, teatros e galerias são organizados), há outras mais elaboradas, que afetam indiretamente a população. Pode-se pesquisar o comportamento em relação ao consumo e, em seguida, aumentar ou diminuir os impostos, incentivando ou não a compra de determinados bens; ou realizar campanhas em veículos de comunicação de massa, visando a obter ações esperadas nos campos da saúde ou da educação. Na área cultural, especificamente, pode-se oferecer descontos na compra de ingressos para museus e teatros; criar campanhas de incentivo à leitura; realizar projetos em comunidades, entre outros exemplos.

Todas as técnicas de governo citadas até aqui – e exploradas à exaustão por diversos pesquisadores – referem-se principalmente ao público, embora remetam sempre à subjetividade dos artistas. Mas será que o tema da governamentalidade não pode ser aplicado também ao fazer artístico propriamente dito? Na passagem do século XVIII para o XIX, o impacto das artes para a economia crescia consideravelmente. A cultura ainda demoraria mais de um século para ser realmente considerada como um recurso econômico, mas sua visibilidade fazia com que os artistas emergissem como uma das partes em uma vasta rede de interesses.

Portanto, mesmo com toda a fundamentação romântica, de Kant a Schiller e Schopenhauer, o cotidiano dos criadores era muito mais prosaico. Beethoven, Van Gogh, Rilke, Wagner, dentre tantos outros, foram, em algum momento, vistos como gênios, durante a vida ou após a morte, mas talvez não fosse exatamente o dom

16It is small wonder, then, that Kant’s account of the aesthetic should have played so pivotal a role in

accounts of the relations between culture and liberal government since the aesthetic encounter between the individual and the work of art is the site for the production of an interiority in which a regulative relationship to the self is freely entered into.

65 natural que, no livre mercado, fizesse de suas obras uma fonte de valor. Talvez fosse o contrário: apesar de terem suas atividades entendidas como algo à margem do regime produtivo desenvolvido nas fábricas, os artistas precisavam se relacionar com diversos profissionais, curadores, galeristas, publicitários, e com o próprio Estado, que, por sua vez, podia encontrar nas artes uma riqueza ou um modo de subversão ou de resistência. Era esse movimento – que se prendia à figura dos gênios e à busca iluminista pelas verdades, mas que emergia somente nas relações interpessoais – que começava a chamar a atenção.

Em meio à rede que girava em torno do mercado e da produção das artes, surgia, então, outro problema: como governar os artistas, que ocupavam a ambígua posição de estar fora das relações formais de trabalho e, ao mesmo tempo, tomar parte na geração de riquezas de seus países? Como extrair deles valores econômicos ou sociais sem influenciar diretamente suas obras? Como inseri-los nos processos capitalistas sem cercear por completo sua liberdade? Como fazer com que gênios, "às margens da economia", produzissem obras que fossem "saudáveis" para os gostos do público e ajudassem a compor a imagem de suas nações?