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PARTE I – OS VALORES DA ARTE

CAPÍTULO 6 – A DINÂMICA CULTURAL NO NEOLIBERALISMO

6.3 A retórica da liberdade

Como visto, ao mesmo tempo em que a noção de Estética tornava-se corrente no final do século XVIII, as técnicas de governo passavam a incidir sobre sujeitos "heterogêneos", que deveriam saber conduzir suas próprias vidas, articulando interesses de diversas partes da sociedade. Nessa época, segundo Foucault (2008), o problema era "recortar" um "espaço livre", e um dos principais exemplos era o mercado. Entretanto, de acordo com Rose (1999), no final do século XIX, críticos e sociólogos afirmavam que a normalização e a racionalização da vida, que buscavam constituir uma esfera de liberdade, não eram suficientes em face da individualização e da fragmentação da sociedade moderna. Cresciam os crimes, os comportamentos inadequados da juventude, os índices de suicídio. Além disso, os efeitos negativos dos trabalhos nas fábricas tornavam-se mais visíveis, o que encorajava a formação de sindicatos e a atividade de militantes políticos. As respostas a essas questões passavam pela organização de uma sociedade com base em direitos e deveres coletivos. Mais controverso, no entanto, era o debate de socialistas que sugeriam a estatização das empresas, e de economistas liberais, como Keynes, que defendiam que era possível intervir na economia para produzir o bem-estar social, porém sem destruir o livre mercado:

De propostas de permutas de emprego aos trabalhos públicos anticíclicos, e da administração de taxas de câmbio a tentativas de alterar o nível agregado da demanda, os economistas tentaram desenvolver programas e políticas que poderiam criar as condições sob as quais o mercado pudesse prosperar, mas sem destruir a liberdade essencial dos agentes econômicos – empregadores, investidores – de conduzir negócios financeiros de acordo

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com suas próprias escolhas e em busca de seus lucros privados. (ibidem, p.80, tradução nossa)25

Nesse ambiente, o emprego era visto como uma solução para a fragmentação e o isolamento social. Da mesma maneira, a previdência era pensada no formato de benefícios cuidadosamente distribuídos como resultado da contribuição individual. A liberdade era, assim, definida a partir das responsabilidades que cada pessoa tinha em relação à sociedade (ibidem). No entanto, nos últimos sessenta anos, essa forma de governo tem sido desafiada e descrita, muitas vezes, como perversa, por produzir exatamente o contrário do que ela tenta obter: comunidades destruídas, falhas na distribuição das riquezas, paternalismo e interferências de autoridades e especialistas, resultados que colocariam em xeque os valores de liberdade, democracia e progresso. (ibidem)

Nos anos 1980, figuras como Margaret Thatcher, na Inglaterra, e Ronald Reagan, nos Estados Unidos, tomavam medidas como a desregulamentação financeira e as privatizações (HESMONDHALGH, 2013). Mas, para Rose (1999), seria reducionista ver nesse movimento uma simples volta às ideias de livre mercado. Segundo o autor, esta era, na verdade, a emergência de uma nova forma de compreender os seres humanos como "sujeitos livres". Só que "liberdade" deixava de ser apenas um modo de "governar a si mesmo" dentro dos padrões da moral e da "normalidade" e passava a ser sinônimo de "autonomia", compreendida agora como a capacidade de uma pessoa determinar os rumos de sua própria vida:

De modos diferentes, o problema da liberdade agora passava a ser entendido em termos da capacidade de um indivíduo autônomo estabelecer uma identidade mediante a organização de uma vida cotidiana significativa. Liberdade é vista como autonomia, a capacidade de uma pessoa de realizar seus desejos na vida secular, preencher seu potencial por meio de seus próprios esforços, determinar o curso de sua própria existência através de ações de escolha. (ibidem, p.84, tradução nossa)26

25 From proposals for labour exchanges to those for countercyclical public works, and from

management of exchange rates to attempts to alter the aggregate level of demand, economists tried to develop political programmes and policies that would create the conditions under which the market would prosper, yet without destroying the essential freedom of economic agents - bosses, investors - to conduct their financial affairs according to their own choices and in pursuit of their private profits.

26 In different ways, the problem of freedom now comes to be understood in terms of the capacity of

an autonomous individual to estabilish an identity through shaping a meaningful everyday life. Freedom is seen as autonomy, the capacity to realize one’s desires in one’s secular life, to fulfil one’s potential through one’s own endeavours, to determine the course of one’s own existence through acts of choice.

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Esse modelo se estende aos mais diversos grupos sociais, uma vez que as

pessoas agora devem ser ativas, não mais dependentes; e as coletividades, por sua vez, passam a ser múltiplas e fluidas:

[…] pensa-se que uma diversidade de comunidades comanda nossa fidelidade efetiva ou potencialmente: comunidades morais (religiosas, ecológicas, feministas, etc.), comunidades de estilo de vida (definida em relação a gostos, modos de vestir e estilos de vida), comunidades de compromisso (com a invalidez, com os problemas de saúde, com o ativismo local), e assim por diante. (MILLER; ROSE, 2012, p.112)

Ao mesmo tempo, a imagem do emprego como algo contínuo, regular e durável é substituída por laços mais precários, por diversos trabalhos em períodos parciais, e pela administração de risco por parte de patrões e funcionários. No lado positivo, a integração entre a vida e o trabalho se torna novamente possível pelos meios de comunicação. Mas, no viés negativo, estão a insegurança e a informalidade. De uma forma ou de outra, os colaboradores também assumem um grau mais elevado de "autonomia", transformando-se em profissionais que, para vencer a concorrência, precisam investir em sua formação e em sua carreira, "vender" suas habilidades e ter a capacidade de inovar. Nas análises neoliberais, esse perfil ficaria conhecido como o "empreendedor" (ROSE, 1999).