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PARTE I – OS VALORES DA ARTE

CAPÍTULO 1 – ARTE, ECONOMIA E TRABALHO IMATERIAL

1.5 Mas, afinal, a arte é trabalho?

É a partir desta pergunta que Kate Oakley (2009b) faz uma revisão da literatura sobre o trabalho nas indústrias culturais. Apesar da relutância de pesquisadores que se dedicam a essa área, especialmente no que se refere à "materialidade" das lutas entre os diferentes grupos sociais e ao apego à noção de "identidade", as questões discutidas sobre o capitalismo cognitivo e sobre o trabalho imaterial fazem sentido quando aplicadas às artes. Afinal, por mais que precisem de suportes materiais, como uma tela, um palco com cenário e figurinos, um disco ou um instrumento musical, as obras de arte apresentam uma dimensão intangível decisiva. Os artistas lidam com os "bens comuns" por excelência, que, segundo a definição de Lazzarato (2006), têm as características de serem inteligíveis,

37 inapropriáveis, não permutáveis e não consumíveis, o que quer dizer, por exemplo, que uma obra de arte não é propriedade exclusiva de uma pessoa, mas pode – e deve – ser compartilhada sem que isso esgote suas possibilidades.

Por outro lado, toda essa produção é passível de ser capturada pelo sistema capitalista, por meio das leis de direitos autorais, do investimento financeiro em obras de artes visuais, do patrocínio de espetáculos de cunho comercial, da reprodução em série de músicas, textos e imagens, e da venda desses bens por grandes conglomerados de comunicação com o propósito de obtenção de lucro. Além disso, uma situação ambígua muitas vezes se estabelece entre o exercício da arte por "prazer" e os diversos modos de "abuso de si": são comuns jornadas que chegam a 16 horas de trabalho diário, entre ensaios, apresentações, gravações e confecções de obras, ao lado de planejamento, redação e implementação de projetos. Assim como em qualquer outra atividade profissional, condições como estas podem levar à angústia, ao estresse e à depressão.

Entretanto, essas duas características – a arte como uma espécie de bem comum e a atividade dos artistas como produção de valores imateriais que podem ser convertidos em riquezas pelo sistema capitalista – nem sempre foram compreendidas dessa maneira, tampouco diretamente relacionadas. Por isso, ainda soa tão estranho tratar artistas como empreendedores ou como profissionais. Mesmo quando a atividade artística é remunerada (afinal, os artistas também precisam de alguma fonte de renda) e mesmo quando há excessos como os citados acima, "fazer arte" nem sempre foi considerado um "trabalho". A discussão é antiga. A arte já foi vista como a produção de "bens não essenciais", relacionados ao prazer, ao divertimento ou à vocação. Em outros casos, foi percebida como a própria antítese do trabalho, como a celebração de uma produção cultural comum (ABRAMS, 1953; EHRENREICH, 2006; apud OAKLEY, 2009b).

Além disso, Moulier-Boutang (2007) lembra que a cultura, seja ela aristocrática ou popular, nunca foi vista como um bem puramente mercadológico. O teatro, na Idade Média ou na Grécia antiga, era uma atividade religiosa. A construção de catedrais, por exemplo, fomentou as artes e o artesanato, mas suas obras eram resultado do esforço coletivo e eram gratuitas ao acesso do público. Já no Renascimento, a subvenção da Corte ou da Igreja era fundamental para a economia das artes, que continuavam a ser percebidas como fruto da colaboração, embora fossem usadas como forma de poder e, muitas vezes, fossem acessíveis

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apenas às camadas mais favorecidas da população. Ora, assim como ocorre atualmente com o "trabalho imaterial", essa ideia da cultura como "bem público" revela a dificuldade em mensurar diretamente os ganhos financeiros relacionados à atividade dos artistas e dos artesãos:

Se o belo ou o espetacular, o divertimento ou o sublime produzem os efeitos que vão do desvio da ira popular, da sublimação das pulsões, do efeito multiplicador do emprego à manifestação do poder e da majestade reais (são, portanto, os custos incidentais de toda forma de poder), seu balanço contábil não é mensurável diretamente: só os custos aparecem enquanto as vantagens e os ganhos são indiretos. (ibidem, p.91, tradução nossa)7

Por isso, para Moulier-Boutang (ibidem), o fomento às artes apresenta uma dimensão política essencial. Também, por esse motivo, é comum encontrar em vários países e nas mais diversas cidades do mundo instituições como ministérios da cultura, conselhos para as artes, fundações culturais e de educação. Nesses casos, embora o suporte às artes seja muitas vezes frágil, a questão econômica tem apenas um papel secundário, já que o investimento em "cultura" geralmente é justificado pela sua capacidade de "transformar as vidas não apenas de indivíduos, mas de toda a comunidade" (BELFIORE; BENNETT, 2008, p.10).

Mas será que esta é uma situação natural ou ela foi construída em um tempo e um espaço específicos? Se é verdade que, desde a antiguidade, a arte foi usada para propósitos comuns, como o culto religioso, por exemplo, foi somente no século XVIII, quando as obras se dissociaram de suas finalidades práticas, que elas puderam emergir como um bem "universal". Desde então, o caráter público das artes não somente foi permeado por relações de poder de cunho político, mas também foi atravessado pelo desenvolvimento do sistema capitalista. A burguesia foi transformada em cliente dos artistas e estabeleceram-se instâncias propriamente estéticas de avaliação da arte, que, assim como a ciência e a economia, desenvolvia--se com pretensa autonomia (CANCLINI, 2012). Com menos interferências da Igreja e do Estado, os artistas entraram em relação também com o mercado, com o público anônimo dos museus, dos teatros e das galerias. Ao mesmo tempo, surgia o conceito de História da Arte, com períodos demarcados por estilos bem-definidos e obras que devem ser contempladas com "desinteresse".

7 Si le beau ou le spectaculaire, le divertissement ou le sublime produisent des effets qui vont du

détournement de l’ire populaire, de la sublimation des pulsions, de l’effet multiplicateur d’emploi à l’inculcation de la puissance et de la majesté royale (ils sont donc les faux frais de toute forme de pouvoir), leur bilan comptable n’est pas mesurable directement: seuls les coûts apparaissent tandis que les avantages et les gains sont indirects.

39 Contudo, quanto mais os artistas se aproximavam da economia, mais o novo sistema os afastava do conceito de "trabalho", entendido desde então como o esforço produtivo de que se extrai o valor de um bem de consumo. É essa ideia que ainda hoje se opõe à noção do artista como um trabalhador. Por outro lado, também é este o conceito que vem se transformando no modelo de um profissional autônomo, o que se estende para outras categorias, diluindo os limites entre a vida e as atividades produtivas em geral. Por isso, é válido aprofundar um pouco mais o estudo dessa época, a fim de compreender os processos que levaram aos modos de inserção da arte no capitalismo contemporâneo – e também a todas as críticas que esses mecanismos recebem. As análises de Foucault são bastante úteis para verificar a emergência da "vida", da "economia" e das "linguagens" na passagem do século XVIII para o século XIX, pois foi a partir de certo grau de autonomia que esse cenário passou a proporcionar às artes que a estética pôde desenvolver.

Também é importante observar como, em meio à aspereza da produção industrial que definiu esse período, a arte distinguia-se justamente por seus elementos intangíveis ou imateriais. Ao contrário das noções de Lazzarato, Negri ou Moulier-Boutang sobre os bens comuns, frutos da combinação de ideias e do trabalho coletivo, as obras passavam a ser vistas como produto de um gênio, cultivado como um dom especial e não como uma característica de todas as pessoas. Assim, em vez da abundância, as artes tinham valor por sua raridade, ou por sua aura, o que, no entanto, não impedia que os artistas se relacionassem com outros profissionais e com os mais diversos interesses, em uma sociedade marcada também pelo desenvolvimento do pensamento liberal.

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