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PARTE I – OS VALORES DA ARTE

CAPÍTULO 1 – ARTE, ECONOMIA E TRABALHO IMATERIAL

1.3 A inteligência coletiva

Na década de 1980, Barry Wellman realizava suas primeiras análises sobre o "capital social". Posteriormente, com o desenvolvimento da internet, o autor voltou suas pesquisas para este meio de comunicação (apud SANTOS, R. d., 2008). De qualquer maneira, o importante em seus estudos é o foco nas redes de contatos que se formam entre as pessoas e que antecedem o uso de tecnologias digitais, como o Facebook, por exemplo. Para Ranie e Wellman (2012), a sociedade não é a soma dos indivíduos, mas um conjunto de relações que oferecem oportunidades ou riscos; não é um grupo coeso e bem-definido, mas é formada por pessoas que se conectam umas às outras de maneira esparsa e fragmentada. Essas características, de uma forma ou de outra, sempre estiveram presentes, mas se intensificaram a partir da segunda metade do século XX, em razão de fatores como o desenvolvimento do transporte e das mídias e da interconexão global em que opera grande parte das empresas, como discutido anteriormente.

31 O fato é que, no capitalismo cognitivo, essa ação coletiva, ou em rede, produz "valores imateriais" que "sobrecodificam os valores materiais ou bens de consumo" (SANTOS, 2008, p.62). Toda essa produção de conhecimento e de inovações requer o investimento em capital humano, por meio da educação, além de grande quantidade de pessoas qualificadas para o trabalho coletivo, por meio das novas tecnologias de comunicação. Assim, questões como propriedade intelectual, redes sociais, alianças e gestão de projetos tornam-se cruciais, uma vez que as estratégias capitalistas são determinadas pela capacidade de engajamento em processos criativos e pela captura de seus benefícios (MOULIER-BOUTANG, 2011).

Certamente, os bens de consumo materiais continuam sendo importantes para a economia, e os recursos naturais (finitos) não cessam de ser explorados. Porém, em referência a Lazzarato, Moulier-Boutang (ibidem) ressalta que a principal potência do trabalho não está mais somente na força que transforma a matéria, mas também – e principalmente – nas possibilidades de "invenção". Embora muitos autores critiquem esse ponto de vista, receosos de perder a análise crítica sobre a exploração do "proletariado", os capitalistas perceberam que é possível extrair riquezas não somente do trabalho assalariado, mas também das atividades de criação de toda a sociedade, vista agora uma fonte de recursos praticamente ilimitados.

Antonio Negri (1999) compartilha essa ideia. Para propor uma mudança no modo de compreender o trabalho no capitalismo contemporâneo, o autor usa o conceito de afeto adotado por Spinoza (2009, p.152). Segundo o filósofo, o afeto, ou a "paixão do ânimo" é uma ideia pela qual a mente "afirma sua força de existir". É essa força, ou a potência da própria vida, que se revela na atividade diária das pessoas, expande-se de forma difusa e se expressa no trabalho "vivo", "autônomo" em relação ao capitalismo. Cada ser esforça-se por permanecer em sua existência e, para isso, compõe-se com outros seres a sua volta, ou seja, quando cooperam, as pessoas aumentam sua potência de agir. Para Negri (1999), é justamente essa energia produtiva que pode ser capturada para fins econômicos, mas ela antecede qualquer divisão do trabalho e vai além de seus efeitos.

Outra maneira de entender o resultado da cooperação é a noção de "bens comuns", que, segundo Lazzarato (2006, p.135):

[...] não são simplesmente aqueles que pertencem a todos – como a água, o ar, a natureza –, mas são criados e realizados segundo as modalidades que Marcel Duchamp descreveu para a criação artística: a obra de arte é

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metade o resultado da atividade do artista e metade o resultado da atividade do público (os que olham, leem, escutam).

Lazzarato (ibidem) baseia-se na obra de Gabriel Tarde, filósofo e sociólogo que viveu na segunda metade do século XIX. Tarde (1976), por sua vez, refutava a visão individualista predominante em sua época, que explicava as mudanças ou inovações a partir da genialidade de poucas pessoas. Embora não dispensasse o criador individual, para ele, as mudanças são resultado do aparecimento "mais ou menos fortuito" de um grande número de ideias, importantes ou não, geralmente anônimas, de origem obscura e nem sempre ilustres, mas sempre novas. A essas ideias, o autor dava o nome de invenções ou descobertas, qualquer tipo de inovação referente às linguagens, à religião, à política, ao direito, à indústria ou às artes. No momento da descoberta, não há mudança significativa na sociedade. Mas aos poucos, por um processo chamado de "imitação", as mudanças atingem grande parte das pessoas.

Uma combinação de ideias que cria, que inova, é feita por uma pessoa antes de se espalhar pela sociedade. Mas ela depende também da troca de informações e percepções realizada anteriormente (TARDE, 1976). Por isso, Lazzarato (2006) ressalta que as invenções, sejam elas ciência ou arte, são sempre associações entre "fluxos de crenças e de desejos", agenciadas de uma nova maneira. Cada invenção, mesmo quando anônima, é uma "singularidade", uma "diferença", uma "criação de possibilidades":

Cada novo começo, cada nova invenção, recai sobre um tecido de relações já constituídas. A integração de um novo começo na rede de cooperações é, por sua vez, o início de outro processo de criação, de uma série de outros acontecimentos imprevisíveis. (ibidem, p.44-45)

Os efeitos da invenção são infinitos porque sempre podem participar de novas combinações. Outra característica é que a criação está aberta a todos, "ela se dá diante dos olhos, dos afetos, das inteligências e das vontades de todos", uma vez que convida ao "encontro", aos "possíveis". (ibidem, p.47)

A partir dessas ideias, Lazzarato (ibidem, p.138) opõe os bens comuns à economia da escassez, fundada sobre o "trabalho produtivo". O software livre é um exemplo, uma vez que o importante, nesse caso, não é a gratuidade do produto, mas são "as possibilidades abertas pela liberdade de acessar, modificar e difundir o código--fonte, e de aperfeiçoar o software". Com as redes de criação artística, a situação é semelhante, mesmo quando as obras são autorais, protegidas por órgãos como Ecad (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição) ou SBAT (Sociedade

33 Brasileira de Autores) ou expostas em museus ou galerias, sempre há a possibilidade de apropriação pelos outros artistas e pelo público, sempre podem ser feitas novas interpretações, leituras e traduções, sempre podem ser inspirados novos trabalhos.

É com este olhar que Lazzarato (ibidem, p.33) chama a atenção para uma mudança fundamental no modo de entender o capitalismo. Segundo o autor, "a cooperação entre subjetividades quaisquer precede a cooperação entre trabalhadores e capitalistas", ou seja, não é a divisão do trabalho, nos moldes da produção industrial, que promove a criatividade e a inovação, pelo contrário, "a expressão e a constituição de maneiras de sentir, em vez de depender do modo de produção, são anteriores ao funcionamento da economia". Ocorre que o capitalismo busca capturar esses processos de forma a extrair deles também um valor econômico, o que gera os diversos modos de exploração do trabalho na sociedade atual.

Este é um tema que interessa aos pesquisadores das indústrias culturais e da economia criativa ou da cultura, principalmente porque, nesses setores, os profissionais tendem a investir toda a sua potência, muitas vezes em troca de salários baixos e poucos benefícios, sem ao menos se darem conta dos limites da vida pessoal, o que torna as formas de abuso mais visíveis. No entanto, os autores que se dedicam a essas áreas nem sempre concordam com as ideias propagadas por Negri, Hardt ou Lazzarato. Essas nuances serão detalhadas a seguir.