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PARTE I – OS VALORES DA ARTE

CAPÍTULO 2 – A DIMENSÃO IMATERIAL DA ARTE EM MEIO AO REGIME INDUSTRIAL

2.2 De artesãos a gênios

A palavra arte é derivada do latim “ars” e do grego “techné”, o que significa qualquer atividade humana executada com habilidade e graça: da confecção de um sapato à pintura de um quadro, da escultura ao governo de um povo. Além disso, assim como ocorre atualmente em diversas culturas, a arte era entendida como uma atividade coletiva: a pintura de afrescos, como a obra de Rafael, envolvia muitas pessoas; as peças de teatro, como as de Shakespeare, eram uma compilação dos textos de muitos autores; e, na época em que Bach compôs suas músicas, era comum o empréstimo de melodias e harmonias, sacras e profanas, entre os diversos compositores. Além disso, escultores, ceramistas e pintores trabalhavam para mecenas, que geralmente especificavam o conteúdo, a forma e o material das obras (ibidem).

A partir da Renascença, artistas e artesãos passaram a ter mais prestígio do que na Idade Média. Os membros da corte precisavam de muitos colaboradores para adornar salões, tocar em festas, encenar peças de teatro, e alguns dos artistas tornavam-se mais conhecidos e gozavam de mais liberdade. O aparecimento de autorretratos e de biografias, como as escritas por Vassari, foi um grande passo em direção à reputação que pintores, escultores, músicos, dramaturgos e dançarinos iriam atingir na sociedade, mas, nessa época, ainda não seria possível atribuir-lhes o caráter de criador individual ou de gênio sem algum exagero (ibidem).

Foi na Holanda protestante, no século XVII, que surgiu um dos esboços mais próximos do que o campo artístico iria se tornar no Ocidente. Como o país não tinha muitas terras para explorar, o investimento em obras de arte era comum e barato. No entanto, havia uma diferença em relação aos pintores e escultores da Idade Média e da Renascença, a não ser que pintassem retratos, os holandeses produziam suas obras antes de vendê-las no mercado. Esse costume proporcionava mais independência aos artistas, que podiam escolher o tema e a técnica utilizada. Por outro lado, eles se viam em contato com o público e com os intermediários, que negociavam os quadros visando ao lucro. Como a concorrência era acirrada, muitos se especializavam em determinados ramos ou gêneros da pintura e chegavam a produzir obras em série. (GOMBRICH, 1981)

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Nesse cenário, um exemplo se destacava: Rembrandt. A historiadora de arte Svetlana Alpers (2010) mostrou como o pintor foi capaz de criar uma nova forma de se relacionar tanto com os mecenas quanto com o mercado, aproveitando as características do capitalismo que estava nascendo. Ele fazia circular papéis que representavam suas obras, trabalhando como em um sistema de crédito e obtendo recursos por meio de empréstimos, assim como o mercado financeiro funciona atualmente. Relacionada a esse sistema de vendas, a característica mais marcante de Rembrandt talvez fosse sua técnica: em vez do acabamento liso dos quadros da época, ele preferia deixar visíveis as pinceladas. Mais do que uma questão de estilo, para Alpers (ibidem), esta era uma forma de transferir para o próprio pintor a decisão sobre o acabamento do trabalho. Como, na época, era comum que o preço dos quadros fosse calculado sobre o tempo necessário para produzi-los, se o acabamento ficasse a critério do artista, era ele quem definia o valor da obra. Dessa forma, Rembrandt adotava a principal característica da arte na era moderna: a fusão entre a obra e o artista. A partir do tratamento peculiar da tinta e do uso de sua assinatura como uma marca, o pintor distinguia seus quadros das mercadorias feitas em série e criava um objeto especial, com uma "aura" de individualidade e, por isso mesmo, um alto valor.

O fato é que o método adotado por Rembrandt iria se espalhar pela Europa e por parte do continente americano. No século XVIII, com a decadência da monarquia absolutista, houve uma queda drástica no número de encomendas feitas pela Corte ou pela Igreja. Com o fim do monopólio real, pintores, escultores, músicos, atores e dramaturgos perderam uma importante fonte de renda. De acordo com um relatório da Comissão de Instrução Pública Francesa, escrito em 1795:

As artes perderam muito com a Revolução. Elas perderam a decoração das igrejas, das casas religiosas; a decoração dos palácios dos reis e seus prazeres, dos monumentos reais construídos por adulação ou das tumbas construídas por luto, das estátuas e pinturas feitas para recepção para a academia; finalmente, as artes perderam tudo o que poderiam esperar das compras de luxo dos indivíduos. (apud SHINER, 2001, p.170-71, tradução nossa)8

Mas os ideais republicanos (liberdade, igualdade e fraternidade), que apontavam para a queda dos privilégios aristocráticos, também inspiravam os

8 The arts have lost a great deal from the Revolution. They have lost the decoration of churches, of

religious houses; the decoration of the places of Kings and their pleasures, of royal monuments built from flattery or tombs from mourning, of statues and paintings for reception to the Academy; finally the Arts have lost all they might expect from the luxury purchases of individuals.

45 artistas a buscarem novos recursos para suas atividades, o que dava a impressão de certo grau de autonomia:

[...] [artistas] são livres por natureza: a essência do gênio é a independência; e certamente eles têm sido vistos, nesta memorável Revolução, entre os mais zelosos partidários. (ibidem, p.171, tradução nossa)9

Novas categorias (poesia, pintura, escultura, arquitetura, música) eram criadas em oposição ao artesanato e às artes populares (confecção de sapatos, bordados, música e literatura populares, entre outros). As artes visuais, por exemplo, deixavam de ser um "ofício ordinário" e convertiam-se em uma disciplina ensinada nas "academias". De acordo com Greffe (2007), essas instituições rompiam com as corporações de artistas, que datavam, aproximadamente, de 1100. Ao contrário do título recebido por herança da família ou por anos de treinamento em um sistema de mestres e aprendizes, elas apareciam como uma associação profissional, estruturada por laços interpessoais, e, com isso, formavam uma "elite" interna à atividade.

As exposições anuais, que passavam a ser organizadas por essas academias, também representavam uma grande mudança. Acostumados a seguir a encomenda de mecenas ou a pintar ou esculpir de acordo com o "gosto" do "grande público", os artistas agora precisavam fazer com que suas obras chamassem mais atenção do que as dos outros participantes (GOMBRICH, 1981). Além da maior preocupação com a forma, para Gombrich (ibidem), um dos efeitos dessas alterações foi que pintores e escultores passaram a se inspirar nos mais diversos assuntos, em vez de se restringirem a temas da mitologia ou religiosos, como faziam anteriormente. Cada vez mais, eles buscavam elementos em sua própria subjetividade. O paradoxo é que, assim como no tempo de Rembrandt, o que mais contribuía para a autonomia dos artistas era o estabelecimento do mercado.10

9 […] [artists] are free by nature: the essence of genius is independence; and certainly, one has seen

them, in this memorable Revolution, among the most zealous partisans.

10 É importante ressaltar que as classificações da história da arte não são estanques. Os artistas certamente imprimiam um traço pessoal às obras antes mesmo do Renascimento e, após este período, elementos da criação em rede e das técnicas artesanais persistem, assim como temas políticos e religiosos. As questões de mecenato ou de mercado também estavam presentes em períodos distintos. No entanto, algumas características são mais iluminadas em determinadas épocas e locais.

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